"Amigos da família"
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- Sabrina Aquino
- 08/10/2019
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A agenda “Amigos da Família” vem ganhando destaque nos discursos de lideranças políticas ultraconservadoras. Uma evidência é o recente apelo da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, em um evento organizado do dia 5 de setembro na Hungria. O evento em questão era a III Cúpula Demográfica de Budapeste, que sob uma ótica de extrema-direita, se propõe a discutir questões que os europeus qualificam de “inverno demográfico”, rejeitando a ideia da imigração como solução para o declínio demográfico na Europa.
A Cúpula Demográfica é organizada pelo governo de Viktor Orbán, o premier nacionalista e conservador, que cumpre seu terceiro mandato sustentando um discurso xenófobo e anti-imigrante, e consegue apoio entusiasta de líderes da República Tcheca, Sérvia, Polônia, outros líderes religiosos e diplomatas estrangeiros para realizar eventos internacionais “pró-vida e pró-família tradicional”. Camufla toda a agenda de controle dos corpos das minorias sociais como uma “questão demográfica”, usa-a como verniz para impulsionar discurso de ódio contra feministas, comunidade LGBTQI e imigrantes – principalmente mulçumanos.
É sob esse contexto que Damares costura uma aliança global “pró-família” com o apoio do Itamaraty, e na Hungria discursa fazendo um apelo de adesão à iniciativa para “o resgate de valores”. Para isso, o governo brasileiro necessitaria de apoio internacional para aceder o assento não permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, pois segundo Damares seu objetivo na ONU seria “defender e resgatar os valores que alguns setores tendem muitas vezes a ignorar”. Neste exato momento de sua fala, a ministra foi aplaudida por parte daqueles que estavam na plateia.
O discurso de Damares apelando a esse alinhamento político de governos conservadores cristãos vai de encontro com a agenda de uma organização norte-americana chamada “International Organization for the Family” (Organização Internacional para a Família – IOF), que é a principal articuladora do “World Congress of Family” (Congresso Mundial das Famílias).
A internacional conservadora
Igualmente de posse de um discurso religioso conservador, a IOF tenciona governos a modificarem suas políticas educacionais em assuntos como educação sexual e problematização das questões de gênero – políticas para eliminação do sexismo, promoção da igualdade de direitos entre homens e mulheres etc. –, almejando modificar como esses temas têm sido tratados nos últimos 25 anos na ONU, OMS e outros organismos internacionais.
Levantando a questão moral de “resgate dos valores tradicionais” para promover o modelo restritivo de família, aquele que faz menção unicamente à “junção de um homem e uma mulher, unidos com o propósito de procriação”, para intervir com propostas de controle da natalidade e uma agenda anti-imigração nos debates políticos internacionais.
O Congresso Mundial das Famílias (WCF) funciona como uma rede internacional de ativistas e ONGs conservadoras que atuam desde a década de 90 nos EUA. Seus parceiros organizacionais trabalham em áreas que vão da orientação de uma forte base de pensamentos conservadores nos espaços das Igrejas, ao lobby para inserir juristas e legisladores religiosos nos parlamentos dos países em que atuam.
Segundo informações do próprio site da Organização Internacional para a Família, a IOF possui uma rede de mais de 40 associações articuladas, entre elas a CitizenGO, organização espanhola que se denomina como “uma comunidade cidadã que se reúne com a finalidade de impulsar participação na vida pública dos países onde atua”, é a principal financiadora da agitação publicitária conhecida como ônibus de cor laranja, que roda o mundo pregando contra as políticas dos direitos LGBTQI com a consigna “com os nossos filhos não se metam”, pano de fundo para implementar discurso de ódio contra feministas e ativistas pelos direitos humanos.
Entretanto, a respeito de seu orçamento e as doações que recebem para seu funcionamento tão organizado a nível global, a Organização Internacional para a Família não é nada transparente. De acordo com um artigo do jornal “The Guardian”, que data de 2015, a IOF contava com um orçamento anual combinado de mais de 200 milhões de dólares em doações, possuindo um alcance de mais de 50 milhões de pessoas em todo o mundo.
Além disso, podemos verificar em seu próprio site que há um fluxo regular de declarações, publicações, informes de “ciências sociais”, que basicamente se trata de uma coletânea de pseudociência usada estrategicamente como “discursos seculares”. Mas não passam de pura doutrina religiosa conservadora, apresentando-se como “grupos de investigação” ou comitês de especialistas de “think-tank”, além de documentos de diagnósticos políticos com informações que assinalam para a missão chave do Congresso Mundial das Famílias (WCF). Ou seja, estar constantemente apontando seu discurso para a articulação global de “reforma nos princípios dos direitos humanos”, contando com uma conferência internacional regular autodenominada “Olimpíadas do conservadorismo social”, onde o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, atualmente figura como “grande exemplo de liderança”.
É muito evidente a forma como os discursos conservadores do governo Bolsonaro e da Organização Internacional para a Família se articulam, e não somente como uma questão de mera simpatia entre cristãos na conformação do “bloco dos tiozões do whatsapp”, que “por acidente”, encontrou uma marionete útil. Não é bem assim, e sem sombra de dúvidas, há uma linha política bem articulada que ganha forma e está em plena campanha para conseguir um assento não permanente na ONU. Por isso é importante dar-nos conta de que este discurso está alinhado e cumpre à risca um plano de “dominação evangélica” em constante disputa com o poderio católico.
Contudo, não se trata de simplória teoria da conspiração, pois claro, sempre é mais cômodo pensar que Jair Bolsonaro é um ignorante que não tem a menor ideia do que está fazendo no poder Executivo, e Damares é uma mulher cheia de frases incoerentes ditas sem pensar para o mundo não gospel, e que possivelmente não passaria de uma lunática a dizer frases sem sentido sobre cores de roupas enquanto declara suas alucinações ao “ver Jesus na Goiabeira”.
Não que eu esteja aqui defendendo a ideia de que Bolsonaro é na verdade um gênio político. Mas um presidente sem plano político, completamente deslocado, ele não é. Outra verdade incômoda é: quem está deslocada é a esquerda hegemônica, ao demonstrar-se completamente perdida perante os discursos de Damares e demais representantes do governo bolsonarista. Uma esquerda sem horizonte estratégico revolucionário, sem plano tático, sem a menor proximidade com os discursos do mundo cristão evangélico que domina o senso comum, mas ainda tenta, em vão, apelar para a defesa de um consenso universal dos Direitos Humanos, que hoje é totalmente rechaçado por esse mundo gospel, um mundo com bastante poder econômico e político e que repudia a Constituição Federal, sonhando com uma reforma cristã neopetencostal em todos os tratados internacionais.
The Handmaid’s Tale ou uma nova temporada de Caça às Bruxas?
Em 2018, Viktor Orbán declarou que “para o governo da Hungria os mulçumanos não são refugiados, são invasores”, e dessa maneira, o premier húngaro reforça a ideia racista e xenófoba que ganha forte respaldo no senso comum predominante nas argumentações da ultradireita conservadora europeia, a do estereótipo do “mulçumano perigoso e estuprador”, que, inclusive, tem a simpatia de alguns setores das feministas europeias para o desenvolvimento de propostas de leis “mais duras” que, supostamente, se propõem a “combater estupros”.
Dessa maneira, a ultradireita na Hungria usa a justificativa de “segurança e proteção das mulheres” para expandir seu apoio, e tais discursos populistas reacionários vêm de encontro aos apelos de setores conservadores e neofascistas para instaurar uma narrativa xenófoba e criminalizadora que usa o velho argumento do “inimigo externo”. Sem dúvida, um forte catalisador dos receios e ódios de caráter político econômico, étnico e racial.
Também nessa linha, Orbán anunciou em 2019 um pacote de incentivos financeiros às famílias como meio de estimular a procriação, que inclui isenções de impostos para toda a vida às mulheres húngaras que derem à luz a quatro filhos ou mais. Orbán defende que as políticas pró-família devem estar asseguradas pelas Constituições nacionais, que devem protegê-las de “ataques” proferidos por decisões “antifamília” da Justiça e por ações de ONGs que, segundo afirma, conseguem influenciar o processo decisório do país.
Os grupos conservadores da Europa usam suas mídias para exaltar as políticas conservadoras da Hungria, e as descrevem como um grande exemplo a seguir, propagando “notícias” recheadas de apelo ao lugar tradicional da mulher como mãe e esposa, e sem dúvidas, ataques contra a luta pelo aborto legal, seguro e gratuito, como por exemplo, a notícia destacada de um site ultraconservador Espanhol, que declara que “a Hungria tem conseguido reduzir suas taxas de aborto em 23% e ainda desenvolve várias políticas para combater o “inverno demográfico” que a União Europeia e as Organizações das Nações Unidas ignoram”.
A consigna de “proteger a família” e a referência constante com a preocupação do “bem estar das crianças” (de forma seletiva e hipócrita) é um apelo muito forte também no Brasil, considerando o avanço neopetencostal no país, que ganhou muita projeção principalmente através das lideranças evangélicas dentro da política institucional, com influência econômica e política, além de sustentar um discurso muito alinhado ao defendido por Viktor Orbán e também pelo World Congress of Family.
Por essa razão, é muito comum ver setores progressistas no Brasil associarem as incontáveis medidas de ataques aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres brasileiras à série The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia, em português).
Reprodução Elitedaily
Entretanto, tendo a discordar dessa conexão, apesar de reconhecer as excelentes discussões instauradas pela série baseada no livro homônimo da escritora canadense Margaret Atwood. Ao trazer algumas questões caras para o feminismo anticapitalista, como por exemplo, a divisão sexual do trabalho reprodutivo e de cuidados (trabalhos ditos domésticos, invisibilizados e não pagos), a série relata uma distopia sobre o futuro dos Estados Unidos, que, ao passar por um momento de crise ambiental e demográfica, sofre um golpe de Estado e se transforma em uma ditadura teocrática. Assim, as mulheres que viviam ali eram obrigadas a se tornar escravas reprodutoras do Estado teocrático de Gilead, expostas a todo tipo de violência misógina.
E a respeito da suposta conexão com a nossa realidade política atual, tendo a pensar que a série reforça algumas teses de políticos conservadores sobre a necessidade de repovoar o mundo “de uma forma natural, seguindo as orientações das escrituras sagradas, conforme os desígnios de Deus”. A versão fictícia acaba assumindo a premissa dos líderes políticos da nossa realidade, como as narrativas de Viktor Orban e demais líderes conservadores da Europa, onde propagam argumentação reacionária sobre o “inverno demográfico” para destilar ódio anti-imigrante.
A série recria um universo distópico teocrático fascista, inspirado nas sagradas escrituras cristãs para repudiar o fundamentalismo religioso e alertar para um futuro (talvez não muito distante) de líderes religiosos sedentos e dispostos a tudo para levar seus planos de dominação adiante, ainda que seja necessário abrir mão das vias democráticas. Não obstante, a série não questiona em nenhum momento o argumento de “suicídio demográfico”, o qual conservadores levantam em seus discursos na política global atual, construindo tecido social e ganhando eleições com narrativas populistas anti-imigração, clamando pelo “renascimento demográfico de um hemisfério norte branco, próspero e jovem”.
E nesse sentido, a série acaba por reforçar uma visão muito romantizada da maternidade para o público que não domina as discussões políticas do feminismo anticapitalista, que tem como uma das discussões centrais a divisão sexual do trabalho (funções e produtividade assentadas nos papéis de gênero, “trabalho de homens”/”trabalho de mulheres”) e no trabalho reprodutivo (limpar, cozinhar, cuidar etc., feito maioritariamente por mulheres).
Assim, as associações com o cenário da política atual e a série ficam centradas somente na questão dos governos que usam argumentos tirados do fundamentalismo religioso para cercear direitos sexuais e reprodutivos, mas não consegue plasmar a problematização contida no modelo do sistema atual dentro de um Estado Democrático de Direito, ainda sem estar em uma situação de Estado de exceção teocrático.
Todavia vivem sob o disciplinamento e controle com o viés terrorista das imposições patriarcais contidas no modelo hegemônico da família tradicional, burguesa e cristã, e que por sua vez também atua para obrigar as mulheres a seguirem sustentando sozinhas o trabalho (não pago) de reprodução da vida. Os números de feminicídio no Brasil não mentem quanto a isso.
A radicalização do que já está posto
Não precisamos estar dentro de uma distopia para viver sob um cenário de terrorismo que exerce o controle da sexualidade das mulheres e corpos feminizados. O aborto é crime; mulher pra casar tem que ser virgem; mulher nasceu pra ser mãe; rainha do lar; santa mãezinha. O amor romântico é a coerção onde a família tradicional e hegemônica fundamenta seu discurso para garantir sua perpetuação. Tudo é construído sob a submissão social da mulher e disciplinamento das corporalidades que não se submetem à norma binária (mulher-vagina/homem-pênis).
O principal espantalho inventado pelo lobby cristão para atacar movimentos de resistência de minorias sociais, o espantalho da “ideologia de gênero” é um verdadeiro contragolpe. Feministas desconstroem a ideia de que existe “uma fórmula certa” para as relações humanas, e essa contestação se configura em uma discussão político-ideológica, mas contra-hegemônica, ou seja, ela contesta uma ideologia naturalizada, velada, e que finge ser “única”, “certa”, “veio de Deus”, que nada mais é do que a régua opressora que mede todas as demais relações humanas. Não fomos nós, as feministas, que inventamos os papéis de gênero.
Portanto, o discurso de “proteger a família”, “contra a ideologia de gênero” e “resgatar valores” é uma das principais estruturas dos conservadores para atacar uma série de direitos fundamentais, principalmente os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, mas nada disso é algo novo ou anuncia o cenário de uma distopia quase profética, muito pelo contrário.
Para nos darmos conta, basta retroceder na história da humanidade alguns séculos e compreender como se efetivou o controle social e o extermínio em escalas nunca antes vistas, tomando como base o grande empreendimento da Inquisição Religiosa para promover a caça às bruxas na Europa e a colonização do continente americano. Basta observar também como atualmente vem em escalada crescente o aumento da violência de gênero, especialmente intensificada em regiões como África e América Latina, ainda que a palavra “feminismo” tenha sido a mais buscada na internet.
Neste sentido, cito Silvia Federici, que em seu livro célebre “Calibã e a bruxa”, trabalha com a ideia de que “a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua função reprodutiva e serviu para preparar o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor”, tomando em conta o contexto da crise demográfica e econômica da Europa dos séculos XVI e XVII (agravada principalmente pela a Peste Negra e a escassez de alimentos).
Federici demonstra que o genocídio imposto pela Inquisição neste contexto se deu basicamente com a finalidade de buscar novas formas de arregimentar e dividir pelo sexo a força de trabalho. Assim, “demonstra, a partir de uma análise histórica, que a discriminação contra as mulheres na sociedade capitalista não é o legado de um mundo pré-moderno, mas sim uma formação do capitalismo, construída sobre diferenças sexuais existentes e reconstruída para cumprir novas funções sociais”.
Portanto, ainda hoje, vivendo sob um sistema capitalista, aquele que faz do trabalho doméstico não remunerado das mulheres racializadas um dos principais pilares da sua produção – ao ser o trabalho que produz a força de trabalho, os novos trabalhadores –, não poderia ser diferente a estratégia de controle dos donos dos meios de produção, as lideranças econômicas, políticas e cristãs. Não poderia ser diferente no Brasil, o capitalismo periférico, estar isolado das estratégias relançadas pelo capitalismo a cada grande crise para seguir acumulando.
Assim sendo, é totalmente legítimo pensar que o fenômeno da “caça às bruxas” se reconfigura e ainda se faz presente no genocídio das mulheres indígenas, na perseguição e assassinato das mulheres lideranças comunitárias e ativistas ambientais, no encarceramento massivo de mulheres negras perpetrado pelo Estado, nas violências obstétricas que o governo Bolsonaro hoje julga como “termo inadequado” para negar a resistência dos movimentos de mulheres e aprofundar o sucateamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Está presente na violência policial nas periferias que faz vítimas todos os dias, está presente também na experiência cotidiana de perseguição, silenciamento, agressão e invisibilização das mulheres trans, travestis e prostitutas, entre muitos outros paralelos essenciais em um país que vive em estado constante de barbárie.
O discurso na ONU e o que a esquerda não entendeu
No dia 24 de setembro, Jair Bolsonaro discursou pela primeira vez na assembleia geral da ONU e escancarou sem pudores o programa político da ultradireita para o Brasil e o seu comprometimento subserviente com os planos dos EUA. Para perplexidade de todos, Bolsonaro abre seu discurso apresentando, em suas próprias palavras, “um novo Brasil, que ressurge depois de estar à beira do socialismo”. Com um discurso repleto de anticomunismo e exaltando o golpe militar de 1964, o presidente ultradireitista do Brasil reforça sua narrativa contra “a corrupção generalizada do governo petista” que, segundo ele, fomentava ataques constantes aos valores da família tradicional e também aos valores religiosos tão caros para ele.
Discursou reafirmando todas as ideias falaciosas que dão forma ao senso comum mais torpe, porém, explicita a agenda ultraconservadora que tem como objetivo ressignificar a carta universal dos direitos humanos de 1948: “Direitos Humanos para humanos direitos”. Reafirmando também sua política antipovos originários, e como fiel discípulo de Donald Trump, o negacionista da necessidade de responder à urgência da crise ambiental, Bolsonaro ataca abertamente o cacique Raoni e demais ambientalistas, citando de forma generalizada o espantalho “ONGs”, mas sem nomear nenhuma.
Mentiu sobre a Amazônia, sobre as queimadas criminosas iniciadas por seus apoiadores latifundiários, usa de revisionismo canalha para relatar sua versão estapafúrdia de uma realidade indígena que só existe na cabeça dos reacionários racistas, usa Ysani Kalapalo como token ao ler uma carta que supostamente autoriza Kalapalo a falar por 52 etnias — mas pela voz de Jair Bolsonaro — e assim anunciar uma “nova política indigenista para os índios no Brasil, onde “ela [Kalapalo] será, a partir de agora, uma liderança na questão indígena no país. Acabou o monopólio do senhor Raoni”.
Ao continuar, se colocou como pretenso defensor da soberania nacional, atacou o “globalismo da ONU e seu colonialismo”, exaltou o “livre mercado”, as privatizações e Sérgio Moro, como “símbolo do meu país”. Apresenta o “Pacote Anticrime” do atual ministro da Justiça como forma de prestigiá-lo e também blindá-lo dos escândalos protagonizados por Moro na melhor série brasileira da atualidade, a Vaza Jato.
E, claro, não deixa de plantar em seu discurso o ataque contra os meios de comunicação, que segundo Bolsonaro “falseiam a verdadeira imagem do Brasil no exterior”. Tal como a ultradireita prega sempre, a imprensa que denuncia governos autoritários e juízes corruptos, com certeza, “mente”.
Com quase nove sofríveis meses, o governo de Jair Bolsonaro se ancora em suas principais pastas dirigidas por Paulo Guedes (Economia), Sérgio Moro (Justiça), Damares Alves (Direitos Humanos) e o chanceler Ernesto Araújo (Relações Exteriores), para levar adiante o projeto político que indubitavelmente vai de mãos dadas com a discussão proposta pelos fundamentalistas religiosos do World Congress of Family.
Um exemplo disso é a censura estabelecida pelo Itamaraty aos documentos da política sobre gênero até o ano de 2024, onde o atual governo do Brasil declara que tem como “assunto de segurança nacional” a censura de documentos que revelam suas resoluções políticas para a educação, uma informação que deveria ser transparente para toda a população brasileira. Somamos isso às declarações da ministra Damares na Hungria, de que “o Brasil é um país pró-família”, acrescentando também o grotesco vídeo que circulou nas redes sociais em janeiro de 2019 onde a ministra recém-empossada comemora junto a um grupo de religiosos e políticos proferindo a frase que deixou o mundo perplexo: “É o início de uma nova era no Brasil, menina veste rosa e menina veste azul”.
Conclusões
São evidências concretas que nos ajudam a concluir que essas declarações que apontam para uma estratégia clara do governo bolsonarista em aliança com a agenda conservadora global, de acordo com a capacidade de articulação dos membros da “Organização Internacional para a Família”, em alcançar os mais altos postos dos governos, codificar seus valores excludentes em leis nos países que atuam e ressignificar o que entendemos por Direitos Humanos em nível global não devem ser subestimadas.
Inclusive, as declarações da ministra Damares que têm ecoado como “polêmica extravagante” são também uma estratégia propagandística poderosa.
Lamentavelmente, os meios de comunicação hegemônicos invisibilizam as análises mais profundas dos discursos dados por líderes ultraconservadores como algo meramente “polêmico” e assim acabam por dar prioridade a ações nada eficazes contra esses mesmos ditos.
Mas a evidência irrefutável da articulação dos cristãos no Brasil em conjunto com agenda fundamentalista religiosa internacional figura no caso da Anajure, a associação de juristas evangélicos que tem atuado na Câmara, no Senado e em audiências no STF há pelo menos 7 anos para tensionar as discussões sobre aborto, liberdades religiosas e lgbtfobia.
Fundada por Damares Alves, a associação conta hoje com mais de 700 membros e se dedica integralmente à formação de juristas evangélicos para expandir seu lobby nos três poderes. Em junho deste ano, a Anajure homenageou o atual Ministro da Justiça Sergio Moro, e em meio a discursos elogiosos, lhe foi entregue uma carta de apoio ao “Projeto Anticrime” de sua autoria.
Damares Alves, que também foi homenageada na ocasião pelos “mais de 20 anos de atuação em favor de causas cristãs e do direito à vida e da família”, reforçou em discurso que sua gestão vai “trabalhar muito na defesa de todos os templos” e que “todos têm direito ao culto e à liberdade religiosa nessa nação”.
Entre os objetivos da Anajure está o de “defender as liberdades civis fundamentais”, o de “constituir-se como uma entidade de auxílio e defesa administrativa e jurisdicional das igrejas e denominações evangélicas, em especial, nos casos de violação dos direitos fundamentais de liberdade religiosa e de expressão” e o de “constituir-se como um fórum nacional de discussão sobre o ordenamento jurídico brasileiro, sobre os projetos de lei em tramitação, sobre as propostas de políticas públicas governamentais, especialmente no que diz respeito aos deveres e direitos humanos fundamentais”.
Ainda que o chanceler do Itamaraty se pronuncie contra “o globalismo” com declarações recheadas de argumentações alucinantes para muitos, hoje fica cada vez mais claro que eles estão fortemente articulados e falando a língua do conservadorismo evangélico que possui um forte e contundente trabalho de base em nível mundial. O principal foco de ataque dessa agenda está no espantalho da “ideologia de gênero” que, segundo os conservadores, é propagada pela esquerda, pela militância LGBTQI e pelas feministas contra os “valores cristãos e contra a família”.
Portanto, os estudos feministas, os estudos de problematização da construção do gênero, a luta pela emancipação das mulheres, das dissidências sexuais e de gênero são os principais inimigos, atacados com o discurso socialmente aceito de que existe um lugar “natural” para homens e mulheres na nossa sociedade, justificando através da biologia e de uma “obra divina” os papeis predeterminados que designam as mulheres a ficarem exclusivamente a cargo dos trabalhos reprodutivos e de cuidados não remunerados. E para que não reste mais nenhuma dúvida, aqui estamos falando sobre economia, e não por acaso a Reforma da Previdência defendida por Paulo Guedes vai prejudicar em maior grau as mulheres pobres do campo.
O governo Bolsonaro demonstra concretamente que cercear o debate de gênero nas escolas é também uma questão econômica, que tem como objetivo transformar não só o plano educacional por restringir temas, mas também inclui um planejamento político para o interior das famílias: aniquilar tudo o que é dissidência, homem é homem, mulher é mulher como manda a bíblia cristã.
Em seu primeiro discurso na ONU, recheado de frases de efeito do senso comum, Jair Bolsonaro desenha a preocupação da superestrutura capitalista, que é ensinar nas escolas que “deus fez a menina para crescer, casar e ter filhos”, assim sendo, essa é uma questão de SEGURANÇA NACIONAL para um governo fundamentalista cristão, ou seja, meninas e meninos sendo educados pra não reconhecer o que é abuso, não reagir, não entender seu próprio corpo e não manifestar desejos. Meninas criadas para obedecer a todos os homens e cuidar da casa, parir e cuidar dos novos trabalhadores por devoção, sem questionar o trabalho não pago.
Quem controla a reprodução, controla a produção.
Sabrina Aquino é brasileira radicada no Chile, formada em História e encarregada regional da Frente Feminista de Convergência Social.
Publicado originalmente em Revista Rever.