A radicalidade revolucionária é feminista
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- Maria Orlanda Pinassi
- 07/03/2020
Nós, MULHERES do Mundo, atravessamos 2019 e esse mal iniciado 2020 figurando estatísticas assombrosas e declarações abomináveis. No Brasil, em particular, os dois bandos governamentais combinados – o da ação socioeconômica e o da ideologia política -, nos atacam com particular ódio. Fazem de nós ingredientes especiais de seu caldo de perversões.
Desde sempre, somos as mais pobres, as mais seviciadas, as mais exploradas, as que mais trabalham, as mais humilhadas, estupradas, assassinadas e criminalizadas por abortos sujos e cheios de bactérias que também nos matam.
Desde sempre, também somos as mais temidas porque, diante de adversidades crescentes, somos a expressão das necessidades mais substantivas e inatingíveis por essa forma societal hierárquica que, neste momento de crise global irreversível, só pode se reproduzir por meio de um rígido controle patriarcal obscurantista, fundamentalista, irracional.
Portanto, que me perdoem pacifistas, otimistas, xs que ainda creem na razão liberal e nas saídas reformistas. Nossos tempos sombrios não nos deixam alternativas que não sejam a de novamente lançar mão de nossa radicalidade revolucionária e negar de modo absoluto qualquer papel na cura do capital. Nossa tarefa é sua destruição.
Mulheres revolucionárias
Desde a acumulação primitiva, a história do “velho” e do “novo” mundos está apinhada de histórias de mulheres que assumiram o protagonismo em enfrentamentos agudos contra a ordem. Nem sempre organizadas ou instigadas por teorias revolucionárias, foram movidas pelas carências mais imediatas delas próprias e de suas crianças famintas e maltratadas. Lembro aqui de dois momentos importantes, cujos intérpretes, no afã da apologia, quase sempre omitem a presença decisiva de proletárias e camponesas, assim como dos golpes institucionais que sofreram no pós-revolução.
Refiro-me às Revoluções na França e na Rússia, ambas radicais e originadas em graves crises sociais e explosivos levantes populares, incontroláveis, contra a fome, o desabastecimento, o alto custo de vida e o desprezo de nobrezas perdulárias – uma absolutista, a outra autocrática. Não é coincidência que, nas duas ocasiões, ganhe destaque a presença massiva de mulheres do campo e das cidades em situação de pobreza.
No caso francês, essa participação se destacava do feminismo de talhe liberal que ganhava força já no século 18, mas que permanecia no campo da estrita divisão do trabalho e na esfera da domesticidade da mulher (1).
As mulheres da Revolução Francesa foram essencialmente ativas como representantes de sua classe, em vez de seu sexo. Elas marcharam, protestaram, formaram clubes de mulheres e alistaram-se no exército, mas não como feministas com um claro programa para os direitos das mulheres. (...). As mulheres da classe trabalhadora apoiaram tremendamente a Revolução, mas seu ativismo, como seu trabalho, ainda era poderosamente condicionado por seu papel na família.
Mulheres urbanas há tempos eram responsáveis por complementar o salário de seus maridos, e sua participação nos protestos por pão era consequência direta de seu papel na aquisição e provisão de alimentos para suas famílias. Nas palavras de Olwen Hufton: ‘O protesto por pão foi um terreno materno’ (2).
Entretanto, as francesas pobres, sobretudo, pouco obtiveram daquela revolução burguesa pautada nos lemas da igualdade, liberdade, fraternidade e na propriedade privada. Nem mesmo a abstrata emancipação política que a caracterizou conseguiu contemplá-las. Assim é que o recrudescimento da fome e os retrocessos do Código de Napoleão (1804) – que encerrou as atividades dos clubes independentes de mulheres e revogou direitos já adquiridos como a simplificação do divórcio e a oportunidade de se desfazer casamentos opressivos, a participação das mulheres em assembleias populares, o reconhecimento de filhos ilegítimos e do direito de propriedade -, fez com que se voltassem contra as forças da revolução.
Camponesas e proletárias russas também foram decisivas nas batalhas campais contra o velho regime. E, muito provavelmente, a história das revoluções de 1905 e 1917 não teria sido a mesma não fosse a ferocidade daquelas mulheres contra o desamparo reservado a elas e seus filhos pela autocracia czarista. A pulsão para a luta vinha do ódio ao regime e da necessidade de preservar suas próprias vidas. A razão do enfrentamento tinha apelo prioritariamente econômico e, para a maioria delas, não existia consciência política clara do gigantesco ato histórico que realizavam. De imediato, as mulheres do front exigiam emprego, pão, abrigo aos rigores do frio e o reconhecimento da sua existência social.
Diferentemente das francesas, as russas conquistaram importantes direitos, mas tanto quanto aquelas continuaram em péssimas condições materiais. Isso porque, se as revoluções populares de 1905 e 1917 ensejaram uma abertura radical da história com a expectativa de superar a luta de classes revelada em 1848 na França, a política pós-revolucionária do partido único contribuiu com o fechamento da história ampliando as estratégias de recriação da propriedade privada, na forma de extração do sobretrabalho pelo Estado.
A ditadura do proletariado se voltou contra o proletariado, sobretudo contra seu lado feminino, e se definiu como mais um salto necessário à expansão e acumulação do capital, desta vez no atrasado leste europeu. Compreende-se, então, porque o socialismo foi convertido num mero postulado moral por um Estado-partido que agigantava seu poder militarizado de controle interno sobre uma realidade social essencialmente desesperadora.
Em ambos os processos, as condições materiais objetivas das mulheres desafiaram a realização de um conjunto de ideais revolucionários – no primeiro caso, da igualdade, no segundo, da liberdade - e postergaram para um futuro ainda incerto a transição para a emancipação feminina e, consequentemente, para a emancipação humana. A mulher, enfim, desnuda o fato de que a necessária transformação do ser revolucionário não pode ser “instituída por decreto”.
A atualidade revolucionária
Se naqueles tempos, um ou outro documento testemunhava as condições que levaram as mulheres às armas, hoje temos a ferramenta da estatística e dos dados em tempo real que nos informam que o desenvolvimento da racionalidade capitalista rompe com seus próprios fundamentos liberais de direitos iguais abstratos, aprofundando a realidade abjeta das mulheres. Na atualidade, são as mulheres curdas que, nas condições extremas do seu território, nos conduzem à necessidade de internacionalizar sua caminhada radical.
Vejamos uma amostra do quadro: 70% dos 1,3 bilhão de pobres no mundo – aqueles que sobrevivem com o equivalente a menos de 1 dólar por dia – são mulheres. As mulheres ultrapassam o dobro do tempo dos homens realizando trabalho não remunerado; em todo o mundo, as mulheres ganham, em média, dois terços da remuneração dos homens; as mulheres constituem a maioria dos trabalhadores a tempo parcial (leia-se precário) no mundo – entre 60% a 90%; em países da África Sub-saariana, a maior parte da força laboral feminina está no setor informal (leia-se precário); por exemplo, 97% no Benin, 95% no Chade, 85% na Guiné e 83% no Quênia; na Europa, 9 em cada 10 famílias monoparentais têm mulheres como suas chefes. As mulheres ocupam 36% dos empregos no mundo, no entanto, recebem o equivalente a 30 e 40% do salário dos homens, sendo que, no Japão, ganham metade; nos países emergentes, a jornada de trabalho diária da mulher é 13% maior do que a dos homens. A cada 18 minutos, uma mulher é espancada; a cada seis minutos, uma é estuprada; segundo a Associação Médica dos EUA, quase um terço das 77 mil mulheres de menos de 50 anos que atuam nas forças armadas sofreu estupro; na Índia, 9 mil mulheres são assassinadas ao ano porque o dote não é satisfatório; dois terços dos 885 milhões de analfabetos adultos recenseados pelo Fundo das Nações Unidas para a Educação (UNESCO) são mulheres; mais de 114 milhões de mulheres no mundo sofreram algum tipo de mutilação sexual. São seis mil por dia, cinco por minuto; na França, 95% das vítimas de violência são mulheres, das quais 51% sofrem agressões dos próprios maridos; na Bolívia, as agressões de maridos somente são punidas se a mulher ficar incapacitada por mais de 30 dias; no Paraguai, a lei perdoa maridos que matam mulheres flagradas em adultério, mas a lei não se aplica às mulheres nas mesmas circunstâncias; em Lima (Peru), 90% das mães entre 12 e 16 anos foram estupradas; em Uganda, na África, a lei reconhece ao homem o direito de bater na mulher; na China, um terço das mulheres diz apanhar dos maridos. Nas zonas rurais, as mulheres são vendidas para se casarem com desconhecidos; no Paquistão, em casos de estupro, quatro homens religiosos devem testemunhar para dizer se houve penetração. Se as acusações não forem comprovadas, o depoimento da mulher pode ser considerado ''sexo ilícito'' e ela pode ser condenada à morte; apenas 44 países aprovaram legislação contra a violência doméstica e somente 27 têm leis contra assédio sexual.
O Brasil engrossa as estatísticas apresentando índices alarmantes de violência contra as mulheres (3). Para se ter uma ideia, em 2017, 4.473 feminicídios representaram um aumento de 6,5% em relação a 2016. Conforme o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, os estupros no Brasil cresceram 8,4% de 2016 a 2017, passando de 54.968 para 60.018 casos registrados. Isso quer dizer que ocorreram cerca de seis estupros de uma mulher brasileira a cada dia (4).
Mas, não são apenas as estatísticas de violência que nos representam. Pertencemos aos movimentos que mais se internacionalizam, mais superam a segmentação inclusiva do identitarismo, que mais acumulam experiências ofensivas de luta. Trata-se de um movimento amplo, crescente e muito articulado de mulheres trabalhadoras, camponesas, operárias, informalizadas, ambulantes, estudantes, mães, solteiras, casadas, indígenas, africanas, orientais, latino-americanas, europeias, mães de santo, católicas, evangélicas, muçulmanas. Todas mulheres, cuja perspectiva de classe potencializa seu poder de crítica e autocrítica de desafiar os avanços essencialmente destrutivos do progresso capitalista, de desafiar a repressão do Estado e as milícias, cuja cumplicidade vem comprovando não a força, mas a incompetência e os limites das instituições democrático-burguesas.
Enfim, nós, MULHERES do Mundo, temos razões explosivas para que o 8M desse ano de 2020 seja muito, mas muito especial. No Brasil, porém, ele deverá ser mais especial ainda porque terá a oportunidade de ser o real contraponto da irracionalidade fascista chamada para o 15 de março.
Com a palavra Emma Goldman, “a redenção está na marcha enérgica em direção a um futuro mais resplandecente e límpido. Necessitamos crescer sem os obstáculos das antigas tradições e hábitos. O movimento da emancipação feminina deu seus primeiros passos nessa direção. Esperamos que tenha forças para dar o próximo. O direito ao voto, ou igualdade de direitos civis, podem ser boas demandas, mas a verdadeira emancipação não começa nas eleições ou nos tribunais. Começa na alma da mulher” (Questão feminina, 1906).
Notas:
1) Ver Mary Wollstonecraft. Reivindicação dos direitos da mulher. (São Paulo: Boitempo, 2016). Essa autora é considerada precursora do feminismo liberal, cujas ideias refletem a influência crítica dos iluministas, sobretudo Rousseau.
2) Wendy Goldman. Mulher, Estado e Revolução. São Paulo: Boitempo, 2016. (p. 40).
3) As mulheres mais pobres, e especialmente as mulheres negras, têm muitos dos seus direitos desrespeitados, sofrem discriminações e não desfrutam das mesmas oportunidades de escolarização, emprego, acesso a serviços, acumulando isolamento social e falta de apoio. Podem assim se tornar mais dependentes de um companheiro violento. Por outro lado, as pressões e o estresse emocional, por não ter como sustentar os filhos, o uso de álcool e outras drogas também são fatores que aumentam a predisposição para sofrerem violências. De acordo com o Atlas da Violência, publicado em 2018, 4.645 mulheres foram assassinadas no país em 2016. Isso significa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Todavia, há uma diferença de 71% entre a taxa de homicídios das mulheres negras e as não-negras.
4) O 13ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado hoje (10), registrou recorde da violência sexual. Foram 66 mil vítimas de estupro no Brasil em 2018, maior índice desde que o estudo começou a ser feito em 2007.
Maria Orlanda Pinassi é socióloga, professora e colunista do Correio da Cidadania; autora de Da Miséria Ideológica à Crise do Capital, entre outros livros.