Correio da Cidadania

“A sociedade já está no limite e a Reforma Administrativa certamente nos levará à catástrofe”

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2020 já ganha ares de ano perdido. Não bastasse a estagnação econômica que nem o noticiário simpático à política econômica consegue mais disfarçar, o advento do corona vírus pode definitivamente arruinar qualquer esboço de recuperação. No entanto, os representantes do capital, dentro e fora do governo, não perdem a chance de reafirmar que mais uma rodada de reformas liberalizantes seria a solução. E a reforma da vez seria a administrativa. É sobre isso que conversamos com o sociólogo e servidor público federal Sergio Domingues.

“Repetem e aprofundam as distorções e falsos raciocínios das anteriores, mas em uma escala absurda e abusando das mentiras mais descabidas. Paulo Guedes chegou a dizer que a folha salarial do funcionalismo consome 90% dos gastos da União. Que os servidores tiveram aumentos superiores a 50% da inflação. São afirmações irresponsáveis. Sem o menor compromisso com os fatos”, criticou.

Além de defender que as reformas anteriores tiveram incidência nula em relação aos resultados prometidos, Domingues é taxativo em dizer que mais esta reforma, que refletiria na relação direta do governo brasileiro com sua população através da prestação de diversos serviços, provocará caos e até violência social.

“Em um país em que o grande empresariado só investe empurrado pela ajuda de recursos públicos, engessar os investimentos públicos só poderia causar toda a estagnação da economia que estamos vivendo. E ainda tem o cenário internacional, cada vez mais complicado”.

De tabela, a redução do aparelho público facilitará a perseguição política de seus setores organizados e contestadores, conforme já visto em outras áreas. Mesmo assim, Domingues não se declara otimista em relação ao chamado grevista de 18 de março, mesmo diante da convocação anticongresso realizada pelo presidente para o dia 15.

Caso se concretize a vontade do governo no sentido de acabar com a estabilidade dos servidores, aí sim, teremos um clima de caça às bruxas entre a maioria dos servidores, tentando inviabilizar qualquer resistência organizada (...) O maior problema é que grande parte da esquerda vem aceitando esse jogo. Vem pautando sua atuação pela disputa eleitoral, num ritmo imposto pelo próprio governo. Não só é uma vergonha como pode ser suicida.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Em linhas gerais, o que pensa da reforma administrativa que o governo ensaia apresentar?

Sergio Domingues: Trata-se de nova tentativa neoliberal de esvaziar os serviços públicos, atacando direitos não apenas da grande maioria dos servidores, mas da população que, certamente, veria a qualidade do atendimento cair ainda mais, caso venha a ser aprovada. A diferença, agora, é que se trata de um governo de extrema-direita, muito autoritário e com um perfil econômico ultraliberal.

Paulo Guedes, encarregado da agenda econômica por Bolsonaro, é escandalosamente a favor da mercantilização de todos os aspectos da vida social. No caso dos serviços públicos, seu modelo é o chileno. Aquele adotado pela ditadura Pinochet, que deixou milhões de aposentados na miséria e acabou com o acesso universal a serviços como educação e saúde. Um desastre para a grande maioria da população.

Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos em favor da reforma, semelhantes aos das reformas anteriores, como a trabalhista, do teto de gastos e da terceirização?

Sergio Domingues: Repetem e aprofundam as distorções e falsos raciocínios das anteriores, mas em uma escala absurda e abusando das mentiras mais descabidas. Paulo Guedes chegou a dizer que a folha salarial do funcionalismo consome 90% dos gastos da União. Que os servidores tiveram aumentos superiores a 50% da inflação. São afirmações irresponsáveis. Sem o menor compromisso com os fatos.

Há salários exagerados, sim. Há reajustes salariais exorbitantes. Mas se referem a uma minoria dos servidores públicos e, quase todos, pertencentes a carreiras que ficaram de fora da proposta que o governo anda divulgando.

O arrocho pretendido é contra, principalmente, os servidores do Poder Executivo, que atendem diretamente a população ou ocupam funções essenciais para que se ofereça um mínimo de direitos sociais. É o caso dos trabalhadores da Saúde, Educação, Previdência, Assistência e por aí vai.

Quanto à terceirização, no serviço público ou fora dele, a regra é se tornar instrumento de precarização das relações de trabalho, muito dificilmente se refere à racionalização de custos e menos ainda à melhoria no atendimento à população e respeito aos direitos e conquistas trabalhistas.

Correio da Cidadania: Quais seriam os impactos, em sua visão?

Sergio Domingues: Se essa proposta for à frente, mesmo com alguma desidratação, certamente, será uma catástrofe social. A sociedade brasileira já está no limite da mais completa barbárie. Os níveis de violência, desespero e revolta cega podem explodir. O desmonte dos serviços públicos seria um passo para além da beira do abismo.

Correio da Cidadania: O que comentar da proposta, de dezembro de 2019, de redução de 25% dos salários dos servidores federais, a partir da faixa de três salários mínimos?

Sergio Domingues: Um ataque sem precedentes. O problema das contas públicas tem muito pouco a ver com gastos correntes da máquina pública. O que suga os recursos públicos é o pagamento dos juros da dívida pública. Em 2019, foram gastos R$ 330 bilhões só com o pagamento dos juros dessa dívida totalmente ilegítima. É quase o orçamento conjunto anual dos ministérios da Saúde e Educação, que totalizam cerca de R$ 360 bilhões. É quase R$ 1 bilhão por dia embolsado pelos grandes investidores daqui e do resto do mundo, que especulam com títulos do tesouro nacional. Mas disso não se fala e nunca se falou, nem nos governos petistas.

Correio da Cidadania: Para além da questão econômica, existe um componente de autoritarismo político nesta reforma, como já criticam alguns setores?

Sergio Domingues: Basta lembrarmos a proposta de impedir servidores públicos de se filiarem a partidos políticos. Mesmo que o governo tenha recuado, até porque a proposta vai contra os interesses eleitoreiros de grande parte do Congresso, a proposta é uma espécie de confissão involuntária do despotismo desse governo. E mesmo que não venha a ser aprovada, a intenção é, certamente, implantar um clima de medo, vigilância, delação e perseguição no serviço público.

Caso se concretize a vontade do governo no sentido de acabar com a estabilidade dos servidores, aí sim, teremos um clima de caça às bruxas entre a maioria dos servidores, tentando inviabilizar qualquer resistência organizada. Colocarão a máquina pública completamente à mercê dos interesses politiqueiros das classes dominantes. Muito preocupante.

Correio da Cidadania: Como associar tal proposta com as tensões internas ao governo e sua equipe econômica, pressionada pela meta de 2% de crescimento no ano?

Sergio Domingues: Pois é. O mais maluco é que mesmo que Bolsonaro e Guedes consigam tudo o que querem, os efeitos nas contas públicas seriam ridículos. Seja pela questão da enorme e imoral dívida pública, seja pela situação criada pela imposição de um teto de gastos irrealista. Em um país em que o grande empresariado só investe empurrado pela ajuda de recursos públicos, engessar os investimentos públicos só poderia causar toda a estagnação da economia que estamos vivendo. E ainda tem o cenário internacional, cada vez mais complicado.

Correio da Cidadania: E como associar tudo isso com o ato anticongresso convocado por Bolsonaro para dia 15 de março? Enxerga relação da data com a convocação de greve de servidores públicos para 18 de março?

Sergio Domingues: Infelizmente, não acho que o governo receie uma grande greve dos servidores. Tudo indica que paralisações podem ocorrer em maior escala no setor de Educação, mas não consigo ver o mesmo nível de organização nos outros setores. Tomara que eu esteja muito enganado.

Espero não estar subestimando a gravidade do momento, mas acho que o tal ato contra o Congresso é mais uma das chantagens a que o bolsonarismo submete as instituições. E o pior é que essas “instituições” aceitam esse jogo sujo. E por que não? Afinal, desde o impeachment, passando pelas punições seletivas da Lava-Jato, até a eleição de uma liderança de extrema-direita que despreza completamente a democracia, quem controla as instituições já mostrou que democracia não tem nada a ver com suas preocupações. Sua prioridade é defender os interesses dominantes.

Correio da Cidadania: Para além do extremismo neofascista mais escancarado, a quem poderia interessar um fechamento do regime político? Estaríamos à beira do estouro de uma crise entre os próprios setores hegemônicos da política e da economia?

Sergio Domingues: É muito difícil saber. Aparentemente, um fechamento do regime não só não interessa, como não é necessário. O ataque às liberdades mais básicas já está ocorrendo. O desrespeito à integridade física de mulheres e homens que militam na resistência política e social dos de baixo já é enorme. A censura à liberdade das empresas de notícias parece desnecessária, não só pela produção paralela e gigantesca de informações falsas e distorcidas, como pela própria cumplicidade da grande imprensa em relação ao desastroso projeto econômico do governo. As polícias e demais forças de repressão já não respeitavam as leis. Já vinham tendo carta branca para perseguir quem elas quisessem. A Justiça já vinha encarcerando em massa...

Portanto, seria possível manter a continuidade dos ataques aos interesses da grande maioria sem maiores mudanças institucionais em direção a um fechamento político. Uma ditadura que convive com eleições periódicas é a melhor das fórmulas de dominação.

O maior problema é que grande parte da esquerda vem aceitando esse jogo. Vem pautando sua atuação pela disputa eleitoral, num ritmo imposto pelo próprio governo. Não só é uma vergonha como pode ser suicida. As forças populares de esquerda têm que reagir imediatamente. Alguns setores já estão fazendo isso heroicamente, como os petroleiros, mais recentemente, e os servidores da Educação, há mais tempo. Mulheres e povos indígenas também estão se mostrando muito mobilizados e combativos. Mas isso não basta.

Além disso, e para finalizar, é importante lembrar que em todas as lutas contra o fascismo na história, a vitória só foi possível graças às forças anticapitalistas. O fascismo se alimenta das tragédias que o capitalismo traz. Portanto, só o anticapitalismo pode derrotar o fascismo e conquistar a verdadeira democracia.


Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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