Correio da Cidadania

Bolsonaro: um novo Jânio Quadros?

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O desgoverno Bolsonaro continua cada vez mais fraco, isolado e atacado de todos os lados por diversos setores burgueses. O consenso em torno do ultraliberalismo de Guedes vai se dissolvendo na medida em que o bolsonarismo reage a tudo com mais agressividade. Parece buscar o impeachment, conscientemente ou não.

A crise econômica mundial por conta do preço do petróleo e o avanço da pandemia do coronavírus evitam que Bolsonaro apresente resultados reais para a população e a burguesia. Aumenta, com isso, o leque de baixarias e provocações que animam seus cada vez mais minoritários — por isso mesmo, cada vez mais estridentes — apoiadores. E assim o bolsonarismo abandona qualquer chance de apoio popular mais amplo.

A indignação e a correlata impotência de segmentos progressistas e intelectuais impedem que muitos na esquerda percebam o óbvio: é possível governar com fakenews, mas desta forma é impossível à extrema-direita ter hegemonia política minimamente sólida no Brasil. Não por acaso, a direita se articula contra o governo federal, com Dória, Witzel ou um novo projeto econômico liberal esboçado por André Lara Resende.

O caso de Bolsonaro aproxima-se do exemplo histórico de Jânio Quadros, não de uma ameaça “fascista” — melhor dizendo, autoritária. Enquanto parte da esquerda continuar apavorada, mais equivocadas serão suas análises da realidade. Imaginou-se um governo militar-corporativo, mas o bolsonarismo é antes um aventureirismo miliciano/familiar, sem laços orgânicos com a hierarquia das Forças Armadas.

Militares atuam no governo como mão-de-obra (des)qualificada na administração pública, substituindo a intelligentsia universitária antes dominante sob os governos lulistas.

Assim como Jânio, que acabou renunciando, Bolsonaro mostrou-se capaz de alcançar uma vitória político-eleitoral, mas não sabe o que fazer com ela, pois não possui programa econômico-social minimamente consistente. A desconexão entre política e economia é típica das crises de hegemonia burguesa.

A comparação do bolsonarismo com o populismo tradicional da direita brasileira (janismo, ademarismo, lacerdismo) é reveladora. Esses populistas conservadores da metade do século 20 eram, simultaneamente, uma resposta e uma cópia do trabalhismo varguista (depois janguista/brizolista). Usavam o mesmo método político — carisma junto ao “povo” — com inversão do conteúdo político burguês: liberalismo reacionário no lugar de nacionalismo progressista.

No caso de Bolsonaro, o plágio óbvio é com o lulismo. A diferença histórica reside, contudo, no fato de o PT ter nascido dos movimentos autônomos das classes populares, ao contrário do trabalhismo. A força social lulista foi originalmente socialista, razão pela qual um simbolismo de radicalidade sobrevive (instrumentalmente após 2016, com a narrativa do golpe).

Justamente este radicalismo é a inspiração bolsonarista. Após tantos anos de governos petistas, o plano da extrema-direita é fazer tudo oposto, mas da mesma forma. Não por acaso liberais e fisiológicos hoje adjetivam lulistas e bolsonaristas como “ideológicos”...

A evidência está diante de nossos olhos. Os atos bolsonaristas de 15 de março — fracassados mais uma vez desde o início do governo — são o que a esquerda sempre projetou politicamente: um governo popular clamando às massas que pressionem os poderes instituídos do “sistema”.

É assim no resto do mundo: com seu “patriotismo”, a extrema-direita é desprezada pelos cosmopolitas liberais (triunfalistas até a crise mundial de 2008). Restou a ela imitar o repertório mobilizatório e alegórico dos seus companheiros de gueto político, nós comunistas — comumente confundidos com o PT...

Outro exemplo se vê no caso da execução policial do miliciano Adriano da Nóbrega. Bolsonaro não hesitou em emular o conspiracionismo progressista em torno da “queima de arquivo” pelas PMs de Witzel e do governador baiano petista — mas por que isto interessaria a estes hoje ferrenhos opositores do presidente? O “mito” foi ainda mais longe e utilizou-se do repertório liberal e esquerdista da defesa dos direitos humanos, ao lamentar o assassinato de seu comparsa (1).

De outro lado, a esquerda segue acreditando nas simbologias progressistas. Para ilustrar: muitos criticam corretamente as canalhices trumpistas, mas esquecem que a “normalidade democrática” anterior era a de um presidente, Obama, que perseguia jornalistas (2). Clichês como o da onda conservadora ainda fazem sucesso, apesar de haver vitórias populares, antirracistas e antipatriarcais em vários lugares do mundo (3).

Este apego ao simbólico, ao discursivo — em detrimento da dimensão prática dos fenômenos — revela o quanto a intelectualidade progressista privilegia a aparência em desfavor da essência. Alarmamo-nos com a realidade nua e crua de um Bolsonaro enquanto nos confortamos com o que o imaginário em torno de Lula escondia — o encarceramento em massa, por exemplo. Este é mais um efeito da vigência das “ideias fora do lugar” na cultura política brasileira.

Se no campo do discurso muitos na esquerda se escandalizam com o bolsonarismo, na dimensão prática da política a condescendência com o governo federal é gritante. PT e direita do PSOL permanecem contra o Fora Bolsonaro.

Se no início de 2019 a burocracia sindical cutista, imobilista e arrogante, temia o enfrentamento espontâneo que a juventude estudantil fazia contra o novo governo nas ruas (4), hoje em dia é o próprio Lula que irrompe em defesa das boçalidades autoritárias de Bolsonaro, se posicionando contra o impeachment.

A decadência ideológica dos políticos tradicionais da esquerda acompanha a falência da Nova República e atinge também o PSOL neolulista. No Rio de Janeiro, Freixo se comporta como um caudilho ao chantagear a militância com sua candidatura a prefeito. Em São Paulo, Boulos, quinta-coluna explícito do lulismo no PSOL, continua manobrando de forma antidemocrática, aliado à direita psolista. Mas as bases partidárias têm reagido com firmeza a essas truculências tão comuns às direções partidárias.

A desorientação política é tão grande que se viu na retroescavadeira do oligarca Cid Gomes um símbolo de luta democrática contra supostas milícias. Líderes democráticos-burgueses não podem ser esperança para nós socialistas e revolucionários. Apenas os movimentos dos trabalhadores, dos operários italianos parando fábricas contra a pandemia do coronavírus, dos petroleiros em greve, das mulheres no 8 de março devem nos inspirar na luta pela transformação radical da sociedade e pelo fim do capitalismo.

1) https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/02/bolsonaro-dribla-conviccoes-e-usa-tom-eleitoral-para-afastar-pressao-apos-morte-de-miliciano.shtml 

2) https://www.esquerda.net/artigo/cinco-exemplos-de-como-obama-e-o-maior-inimigo-da-liberdade-de-imprensa-numa-geracao/33009 

3) https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/02/em-decisao-historica-suprema-corte-da-india-decreta-igualdade-entre-mulheres-e-homens-nas-forcas-armadas.shtml 

4) https://rj.cut.org.br/noticias/louvavel-ato-espontaneo-no-cpii-mas-temos-que-aprender-com-o-passado-89e5 

Marco Antonio Perruso é professor de Sociologia da UFRuralRJ e membro do PSOL.
Publicado originalmente em Contrapoder.

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