Correio da Cidadania

Pós-pandemia e o aprofundamento da crise humanitária-ecológica no Brasil e no mundo

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Mundo pós pandemia: Painel da visão liberal-conservadora ...
Frente à desaceleração forçada do capitalismo diante da pandemia e a incapacidade desse sistema em garantir cuidados e condições de vida para a maior parte da população mundial, há muita apreensão e angústia em relação aos efeitos mais imediatos dessa crise sanitária. Não obstante o impacto inicial da pandemia nem ter se encerrado, também estão em curso especulações e medidas sobre o futuro pós-pandemia. O movimento já iniciado no Brasil de resguardar os lucros dos bancos e piorar a situação dos trabalhadores (com desemprego, mais direitos retirados e arrocho salarial) nos alerta para o futuro sombrio que o grande poder econômico-político nos reserva.

A necessidade de retomar o crescimento econômico a partir da “vocação primário-exportadora” do país geralmente é colocada como a única esperança para a população brasileira ver remediado o grau de pobreza em que se encontra. Mas não é preciso nenhuma genialidade para antever que, sob a dinâmica do capitalismo dependente brasileiro, a pobreza e a miséria vão se agravar muito. Isso porque a violência contra o povo, com a destruição mais acelerada da natureza e das condições de trabalho e vida, é um pressuposto do desenvolvimento do capitalismo no Brasil a partir de nossa formação histórica.

As classes dominantes não vão enfrentar nenhum de nossos problemas estruturais: concentração de riqueza (e consequentemente poder político); ultraexploração da trabalhadora e do trabalhador; pouca diversificação produtiva (resultado da segregação social e ausência de condições básicas de formação educacional e trabalho decente para o conjunto da população); e economia baseada na exportação de alguns poucos produtos primários.

O processo de desindustrialização das últimas décadas conjugado à extrema concentração fundiária acentuam os problemas econômicos brasileiros, elevando as tensões sociais e colocando para os “gestores” públicos a tarefa de administrar a barbárie, sempre serviçais aos interesses do Mercado. A perspectiva de um capitalismo mais predatório, exacerbando fundamentos genocida e ecocida, é a única alternativa que as classes dominantes brasileiras podem oferecer diante da crise.

Em face disso, já há quem anuncie que não haverá espaço para nenhum tipo de “direito social, trabalhista ou ambiental” no próximo período, pois a “flexibilização” de proteções à natureza, aos povos tradicionais e a toda população brasileira terá de ser ampliada para que o Mercado encontre o ambiente adequado para prosperar.

Entendemos que abraçar qualquer tipo de desenvolvimentismo nesses moldes nos levará a profundas derrotas. E isso nos remete a um balanço crítico do que alguns têm chamado de “desenvolvimentismo neoliberal” dos governos petistas, que, ao não enfrentar nenhum dos problemas estruturais do país, deixou o povo e os trabalhadores completamente desarmados politicamente para enfrentarem a retomada da política aberta de contrarrevolução permanente. Abrir mão do respeito à natureza e aos direitos sociais e trabalhistas foi e é não só um profundo erro político, mas também uma degeneração moral imperdoável para quem quer acertar as contas com as injustiças históricas do país. Mas precisamos ser justos e reconhecer que a perspectiva da revolução brasileira já deixou de ser o horizonte de muitos setores que se reivindicam (e desmoralizam) a esquerda.

Já há evidências científicas suficientes para compreendermos que as interações sociais e ecológicas necessárias para o desenvolvimento do capitalismo mundial trazem prejuízos crescentes à sobrevivência de todas as formas de vida e da própria espécie humana no planeta (e de forma mais agravada na periferia). Se o chamado “problema ambiental” ganhou mais relevo nas últimas décadas, é porque a escala de tempo necessária à percepção do caráter ecocida do capitalismo tem se comprimido cada vez mais. E problemas ambientais, como os ligados à disponibilidade e qualidade da água e dos alimentos, se tornam cada vez mais recorrentes e graves. Tem ficado também mais difícil esconder que o problema ambiental é um problema estrutural do próprio capitalismo, que se fundamenta na exploração e descartabilidade crescente da natureza e da força de trabalho.

A promessa cínica de que o sofrimento da maioria da humanidade será remediado com mais capitalismo já não se sustenta, o que tem reforçado a presença e papel das ideologias de conformação com uma realidade crescentemente desigual e distópica. Há tentativas de segregação espacial dos problemas, como é o caso das formas insustentáveis de descarte dos resíduos sólidos, sobretudo os mais tóxicos. Apesar de serem levados para fora de nosso campo de visão, não deixarão de ser um problema. Também se apostou muito na procrastinação, assumindo-se que os problemas passariam a existir somente em um futuro que não o presente premente. Mas as “externalidades” de toda a cadeia produtiva, com destaque para o carro-chefe das energias fósseis, desmancha essa aposta ilusória e irresponsável, na medida em que os recursos vão faltando, por um lado, e a poluição atmosférica vai ultrapassando limites “sem volta” por outro.

Falsas soluções

A aceleração crescente do tempo e da intensidade de utilização da natureza (vista como recurso utilizável e não como sistema vivo), vai dificultando as possibilidades do capitalismo escamotear sua completa falta de sentido ecológico-evolutivo, pois destrói crescentemente habitats e espécies. A contaminação e intoxicação da água, do ar e dos corpos fazem as preocupações humanas espantosamente regredirem às condições mais básicas de sobrevivência biológica, em tempos nos quais o conhecimento e a tecnologia assumiram patamares extraordinários, quase mágicos. Cabe destacar que, mesmo com o surpreendente desenvolvimento tecnológico a que a humanidade chegou, o capitalismo não permitiu a resolução de problemas elementares como a fome e acesso a saneamento.

Diante do quadro desolador da vida no planeta, a forma dominante de lidar com os problemas ambientais é a mais cínica possível. Tem-se organizado a monetização de aspectos com potencial rentável dos problemas e deixado de lado qualquer questionamento mais sério sobre a lógica geral de degradação do sistema de produção em que vivemos. A lógica do lucro acima da vida torna-se sufocante e insuportável. Entretanto, ao que tudo indica, transformar parte dos problemas ambientais em cadeias produtivas de lucros é o máximo que o capitalismo pode fazer. E isso é, evidentemente, insuficiente para lidar com os problemas, que colocam em xeque a sobrevivência do próprio capitalismo.

Ainda que se criem condições particulares de acesso à água, alimentos e “outros serviços ambientais” para quem pode pagar por “mais qualidade”, a imensa maioria da população está completamente alijada das iniciativas de mercantilização e monetização dos problemas ambientais. Além disso, não há nenhuma garantia de que crises sanitárias e ambientais, que também afetem os participantes do “Mercado Verde”, não possam surgir. Há, assim, um aumento da pressão para que impasses históricos ligados à saúde e ao meio ambiente sejam encarados para além das segregações socioeconômicas próprias ao funcionamento da economia capitalista.

Se o impasse ecológico em que o mundo se encontra passasse a ser encarado como um problema da espécie, cujos indivíduos e grupos estão inseridos em cada um e no conjunto dos ecossistemas terrestres, a referência de organização da vida social e planetária não seria mais o lucro de corporações industrial-financeiras, mas sim as interações entre todos os organismos (a começar pelas nossas interações intraespecíficas) e com os fatores não-vivos (água, ar, temperatura, minerais...).

Há experiências de povos que se organizaram com referência ao “bem viver”, o que coloca como centro das atividades produtivas e sociais o cuidado com as pessoas e com a natureza. Mas para construir o paraíso da acumulação capitalista na Terra, há séculos se reafirma a ideologia de que a essência humana é egoísta e exploradora. E esse senso comum dominante é fundamental para bloquear as iniciativas de luta, necessariamente coletivas, e para conformar as pessoas a um mundo doente.

Podemos destacar, em linhas gerais, duas estratégias políticas de resposta à crise ecológica pelo capitalismo. A primeira tem uma aparência de bem intencionada ou ingênua. Trata-se do chamado desenvolvimento sustentável, que admite a possibilidade de um “capitalismo verde” com muita “propaganda verde” e com a mudança de hábitos de consumo de (pelo menos) uma parte da população mundial, aquela que pode se inserir no “Mercado Verde”.

A segunda estratégia, que é muito mais uma aposta, não se preocupa necessariamente com mudanças de hábitos, porque se baseia na crença de que invenções e mudanças tecnológicas serão capazes de remediar e até reverter os problemas de degradação e destruição continuamente gerados.

A desmoralização das frágeis tentativas de justificar ou remediar o desenvolvimento degradante, genocida e ecocida do capitalismo tem produzido respostas políticas mais francas por parte das classes dominantes, que controlam os Estados, aliadas às corporações, que controlam a economia. Há uma vertente de gestores do capital, representados por Trump e Bolsonaro, que passaram a ignorar o colapso socioambiental existente, propondo que o desenvolvimento capitalista se acelere com total liberdade em relação a limitações sociais e ambientais.

A onda conservadora em meio à crise estrutural

A estratégia política mais “capitalismo-raiz” forjou uma onda de populismo de extrema-direita no mundo. Seus políticos são construídos como “autênticos”. E apesar de serem defensores viscerais (e sanguinários) do capitalismo, se apresentam como contra a ordem. A astúcia dos movimentos de extrema-direita e suas lideranças foi perceber e atacar as dinâmicas políticas baseadas no falso compromisso em relação aos problemas socioambientais. Lideranças de extrema-direita no Brasil e no mundo compreenderam que as tradicionais opções políticas burguesas poderiam ser suplantadas por uma alternativa mais “genuína” de compromisso com o desenvolvimento do capitalismo. Atacar com ferocidade qualquer tipo de direito (social, ambiental, trabalhista, humano) é o eixo declarado de atuação da extrema-direita, juntamente com estratégias diversionistas de deslocar a arena de conflito político para questões secundárias em relação aos problemas fundamentais (que são os decorrentes da própria natureza e dinâmica capitalista).

Dessa forma, em muitos lugares, a extrema-direita colocou as outras alternativas políticas burguesas na defensiva e se postulou como a melhor opção para o avanço dos negócios e de contenção/eliminação dos conflitos socioambientais. A base material de fortalecimento da extrema-direita é a incapacidade do capitalismo em sustentar os pactos sociais e ambientais – que sempre foram bastante limitados, não custa lembrar. As políticas chamadas de “austeras”, na prática, já eliminaram as condições das políticas estatais sustentarem os pactos sociais estabelecidos no passado.

Entretanto, apesar de o capital ter enterrado os pactos sociais, setores amplos do espectro político ainda se apegam a tempos nostálgicos de enganosa paz social. Os setores políticos no Brasil que não acreditam na morte da Nova República ou querem ressuscitá-la são uma boa expressão disso. Por trás de iniciativas fracassadas de partida, há um falso moralismo burguês escondido ou envergonhado, que vive de ilusões e saudades em relação a um passado que, longe de ser apologizado, deveria ser duramente criticado. Enquanto isso, a extrema-direita avança, com a insensibilidade em relação à miséria e à destruição do planeta tornando-se mais explícita e traduzindo-se em poderosa força política.

O acompanhamento da atuação política de Bolsonaro, com toda a conivência e incentivo que as classes dominantes lhe tributam, mostra que esse movimento não irá recuar. E na medida em que a extrema-direita avança vai ficando claro tanto que ela é a opção preferencial do Mercado, quanto suas feições ideológicas, um misto de irracionalismo, liberalismo e reacionarismo.

Os posicionamentos absurdos e criminosos proferidos por Jair Bolsonaro em relação à pandemia do novo coronavírus evidenciam a penetração que o irracionalismo alcançou em nossa vida pública. Ao acompanharmos a atividade dos seguidores do presidente brasileiro nas redes sociais percebemos que esse irracionalismo é algo muito mais profundo e capilarizado do que poderia parecer à primeira vista. E essa força do irracionalismo, que se conjuga com o racismo, sexismo e outras doutrinas e práticas sociais de preconceito e intolerância, infelizmente, não parece ser um fenômeno restrito ao Brasil.

A ideologia individualista é uma necessidade incessante do capitalismo e não poderia deixar de disputar seu espaço nesse momento de capitalismo em putrefação. A legitimação pós-moderna das narrativas individuais se operacionaliza, nesse momento histórico, com o casamento entre individualismo e irracionalismo. As opiniões individuais ganharam status de critério da verdade (dando ampla sustentação à intolerância reacionária que trataremos um pouco mais à frente). E a meritocracia cínica integra cada um no todo do Mercado, disseminando a crença na liberdade e no sucesso individual em um mundo marcado por desigualdades abissais, pelo desemprego estrutural e pela atuação decisiva dos monopólios econômicos e serviços de inteligência estatais sobre o controle da vida social.

Nunca houve qualquer perspectiva de saída individual para os problemas do planeta. E falar nisso, no momento em que estamos, é mais anacrônico do que nunca. Mas a ideologia liberal, intrínseca a um sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção, não deixará de insistir no individualismo. Porque o individualismo continuará sendo a forma mais eficaz de manipular desejos, privatizar fracassos individuais e desfocar dos problemas sociais. Isso tudo para que a acumulação capitalista genocida e ecocida siga incontestável. Particularmente curiosa é a incorporação e instrumentalização do liberalismo no Brasil, que se conjuga com a nossa tradição escravocrata. Isso faz dos liberais brasileiros, especialmente os mais radicais, espécies de capitães do mato contemporâneos, a destilar toda sorte de preconceitos elitistas e classistas contra o povo e os trabalhadores.

Conclusões

Por fim chegamos ao caráter reacionário da ideologia condutora da extrema-direita. É importante reiterar que a extrema-direita não é por acaso a principal força política em muitos países do mundo. Ela se propõe a expressar toda a potência do capital. E diferentemente de outras forças políticas da ordem, mais afeitas a um falso moralismo burguês, a extrema-direita não tem vergonha de defender com franqueza seus posicionamentos. Bolsonaro fala sem nenhum pudor diante do aumento de mortes pela pandemia, consequência também de suas irresponsáveis e criminosas atitudes: “Alguns vão morrer”, “E daí?”. Em um primeiro momento tais afirmações nos causam uma perplexidade e parecem inexplicáveis. Mas o entendimento da postura genocida de Bolsonaro torna-se compreensível na medida em que percebemos que ela tem respaldo e sintonia com as exigências de violência e brutalidade que o desenvolvimento do capitalismo requer.

Os “autênticos” líderes de extrema-direita prometem e entregam as “reformas” que o Mercado precisa-exige, com o mínimo de mediações possíveis em relação ao sofrimento e a destruição de vidas. Essa sintonia com o “espírito de seu tempo” deveria nos desautorizar a taxá-los como burros ou loucos. Mas ainda muitos insistem em fazê-lo, como se o falso moralismo burguês e a perspectiva de um capitalismo humano e verde fossem mais factíveis que as práticas genocidas e ecocidas de Bolsonaro e outros líderes ao redor do mundo. A aliança do reacionarismo com o individualismo e o irracionalismo acaba de organizar a ideologia dominante contemporânea, porque o irracionalismo e o individualismo são, na verdade, instrumentalizações para bloquear qualquer possibilidade de transformação social do capitalismo ecocida e genocida.

Ou seja, a ideologia dominante precisa bloquear qualquer perspectiva de revolução. E as manifestações reacionárias nada mais são do que iniciativas contrarrevolucionárias, que buscam sufocar ou eliminar qualquer contestação à ordem. Conhecendo historicamente a atuação da extrema-direita, podemos esperar uma crescente mobilização do medo e da intolerância como afetos bloqueadores das lutas por dignidade e democracia, assim como o uso sistemático da violência covarde como forma de atuação política por excelência, conformando o regime político-econômico a referências fascistas.

Se as classes dominantes estão se organizando sob uma ideologia irracionalista-reacionária em torno de governos de extrema-direita em muitos lugares do mundo, é porque o desenvolvimento capitalista para o próximo período exigirá mais violência social e destruição da natureza. Mas para além da saída capitalista à profunda crise humanitária e planetária gerada pelo próprio capitalismo, a história também apresenta a saída revolucionária.

A solidariedade, o trabalho e o conhecimento têm toda condição de construir uma alternativa contrária ao aumento do sofrimento, miséria e morte das pessoas e da natureza. Por isso é urgente aprofundarmos teoricamente e nas lutas a práxis ecossocialista.

Potiguara Lima é cientista social, biólogo, professor de Educação Básica, mestre e doutorando em Educação e filiado ao PSOL.

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