Correio da Cidadania

Uma introdução: ação e não identidade antifascista

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Nos últimos anos, vem ocorrendo uma maior difusão do termo antifascismo, ou simplesmente Antifa. Sintoma de nosso tempo, reação natural à escalada do fascismo, aqui e alhures: daquele momento em que ele se confunde de forma cristalina com o próprio Estado. Anarquistas e periféricos dirão: mas quando foi diferente? E esta é uma pergunta crucial, talvez a mais importante. Incide diretamente sobre o centro da luta antifascista: afinal, do que se trata? Contra quem ou o que lutamos? Contra aqueles que de alguma forma se identificam (ou que identificamos) como alinhados a certas ideologias do entreguerras europeu?

Pelo que lutamos? Pela restituição gloriosa das democracias liberais de outrora? Tais perguntas são mais complexas do que normalmente se imagina, afinal, o antifascismo tem como característica principal se opor a algo que é difícil de definir: o próprio fascismo.

Comecemos pelo começo. O que é o fascismo?

No nível restrito, isto é, no sentido puramente histórico do termo, o fascismo nos remete ao cenário entreguerras europeu, aos movimentos que emergiram na/da derrocada do projeto liberal em algumas nações, especialmente a Itália (de onde vem a palavra). Mesmo nesse contexto estrito a palavra fascismo possui uma multiplicidade: temos uma série de movimentos carismáticos e populares de oposição interna ao regime liberal; o fascismo em suas múltiplas atualizações estatais (o fascismo italiano, o nazismo alemão, o austrofascismo etc.); ainda, elementos (políticos, ideológicos, conceituais...) que podiam ser encontrados em outros movimentos e estados. Dito de outra forma, há tanto um contraste histórico (por vezes oposição) ente os movimentos populares fascistas e os regimes fascistas (Dollfuss chora no inferno (1)), quanto uma insuspeita familiaridade entre movimentos, regimes fascistas e outros regimes democráticos.

Não um, mas múltiplos fascismos

Esse contraste histórico nos fornece algumas pistas para melhor compreender o fascismo. A primeira delas é: a uniformidade do fascismo, no geral, é dada por outrem. Isto é, o fascismo só emerge enquanto “algo” (unívoco, indiviso...) quando visto de fora. E essa é uma armadilha que devemos evitar. Esse “algo” que costumamos descrever como fascismo, no geral, se reduz ao seu aspecto mais óbvio e por vezes caricato. Ao ponto de que, para alguns, basta não utilizar o símbolo do Partido Nacional Fascista italiano ou desejar enviar pessoas para Treblinka para não ser considerado fascista. Enquanto isso, palavras como “progresso” e “segurança” costumam justificar movimentos e atitudes fascistas que deixariam os camisas negras com inveja.

Talvez isso, essa visão reducionista do fascismo, explique o fato de que só agora, depois de tantos avisos, de toda uma década de crescimento do neofascismo, estejamos acordando para o perigo que alguns movimentos e grupos políticos — e o próprio estado — representam. Só agora estamos acordados para os elementos fascistas que eles mobilizam; alguns de maneira congênita, como as forças policiais. O fascismo não existe, existem fascismos, múltiplos, e é preciso estar realmente atento para percebê-los e combatê-los.

A segunda pista é justamente essa: o que foi (e ainda é) capaz de unir grupos tão díspares (movimentos populares, regimes totalitários e democracias liberais)?

Alguns apontam para a existência de uma “psicologia política” do fascismo. De que os fascismos, seus elementos, emergem de uma preocupação obsessiva com o declínio, com a decadência (imaginária ou real) de uma certa comunidade (uma classe, um povo, uma nação, uma raça (2). Uma obsessão que dá origem a uma série de violentas estratégias compensatórias, a um projeto de restauração. A definição me parece interessante — especialmente diante daquela que reduz o fascismo à sua expressão histórica. No entanto, ao associar estritamente o fascismo a ideia de uma “comunidade”, ela corre o risco de não abarcar o fenômeno em toda a sua multiplicidade (3). E então voltaríamos ao problema inicial: minamos a nossa capacidade de perceber o fascismo em sua multiplicidade.

Com efeito, o fato de que a “psicologia política” do fascismo dá origem a movimentos do tipo ultranacionalista, racista, é apenas um sintoma de algo ainda mais profundo: de que ele se remete a uma estrutura de poder. Uma estrutura de poder que não se apoia apenas em elementos como raça, nação, mas também na classe, no gênero, na instrução formal, no código postal, no posicionamento político etc. Tudo, virtualmente tudo aquilo que pode ser convertido em uma hierarquia pode dar origem a um tipo de fascismo. E, detalhe importante, não apenas entre os que estão à direita do espectro político, mas também entre aqueles que consideramos aliados, entre os próprios movimentos à esquerda. Por isso é fundamental que estejamos atentos aos fascismos que emergem até entre os mais insuspeitos. O fascismo é múltiplo, como também devem ser as ações antifascistas.

Por isso não existe algo como uma identidade antifascista. Pressupor algo do tipo seria pressupor algo perigoso: que existem aqueles que estão imunes, aqueles que são incapazes de secretar fascismos. E essa é uma armadilha tão perigosa quanto aquela da caricatura fascista. Naturalmente, alguns grupos, e orientações políticas estão mais inclinadas ao fascismo, a secretá-lo, que outras. Mas nenhum grupo, orientação política ou sujeito, absolutamente nada nem ninguém, está imune. Lembremos da primeira lição: o fascismo não existe, existem fascismos, múltiplos, e é preciso estar realmente atento para percebê-los e combatê-los.

Mas o que seria o fascismo então? Seria, antes de tudo, um fascínio pelo poder, pelo seu exercício sobre si e sobre outros. O antifascismo seria então uma luta ativa e propriamente eterna contra este fascínio, tanto no campo pessoal quanto no campo macro, tanto na esfera do eu quanto na esfera do mundo. Pois enquanto existir esse fascínio, esse poder, haverá hierarquia, haverá aquele que está “acima” e aquele que está “abaixo”. Com efeito, aquilo que designamos como um estado fascista, o fascismo molar, consiste justamente no momento em que estes fascismos, estes microfascismos, passam a convergir em uma só direção. Coincidindo e constituindo aquele ou aquilo que é “grande” e está “acima de todos!”. A utilização destas palavras nunca é acidental.

Essa orientação vertical da sociedade é a própria marca do fascismo. Mas isso não é tudo, pois é fundamental que não se reduza o fascismo à sua atualização macropolítica. Pois uma das características fundamentais desta organização é a condenação da diferença. Da perspectiva deste poder que se desdobra, do fascismo, dos microfascismos, o diferente, o outro, só existe em estado de pecado e que, portanto, é algo que deve ser assujeitado. Tudo que emana desse outro, seu próprio corpo, seus signos, sua condição é tornada maldita, por vezes tolerada sob a mancha semântica do exótico — e isso, sabemos, é uma forma de poder.

Por isso a ação antifascista não pode ser reduzida àqueles, aquilo, que obviamente ocupa o topo das hierarquias, aqueles e aquilo que está “acima de tudo”, mas também ao motor, a própria estrutura que fundamenta a hierarquia.
Não basta derrubarmos aqueles ou aquilo que está acima — apenas para substituirmos por outros, pessoas e ideias que são mais compatíveis com as nossas sensibilidades –, a ação antifascista deve lutar contra a própria possibilidade de que “algo” esteja acima de outras coisas.

Notas:

1) Sobre este contraste entre o movimento popular e o regime estatal, ver “Storia del partito fascista. 1919–1922. Movimento e milizia” de Emilio Gentile

2) Ver “The Anatomy of Fascism” de Robert Paxton

3) Fora que nos remete ao clássico “progressismo” presente nas análises liberais sobre os fascismos, como Arendt. Sobre isso, ver “Cohérence et terreur. Introduction à la philosophie politique de Hannah Arendt” de Miklos Veto.

Orlando Calheiros é antropólogo e apresentador do podcast Benzina.
Fonte: Revista Subjetiva.

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