Correio da Cidadania

Alucinações em uma pandemia

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Pacientes com covid-19 relatam surtos e delírios durante e pós ...
A pandemia ainda não acabou, mas já deixou seu legado no Brasil. Mostrou que como cidadãos estamos sós. Jogados à nossa própria sorte, consciência e condições financeiras. Demonstrou que nossos dirigentes, em todos os níveis de governo, raramente nos representam ou nos protegem, pelo contrário. Assistimos a um jogo de poder, onde a vida do cidadão é a moeda de troca. Há muito tempo é moeda de troca, mas agora tudo ficou muito mais escancarado, não sendo possível esconder.

No nível federal, vêm os piores exemplos. São descasos, escárnios e desprezos com a vida de quase 80 mil brasileiros acometidos fatalmente pela doença. Mas seus pais, filhos, filhas, netos, netas, esposas, maridos, amigos e amigas que sobreviveram também são achincalhados, desrespeitados e esquecidos por vários órgãos dessa esfera de governo, que lavaram as mãos e deixaram aos estados e municípios as principais providências no combate à doença.

O governo federal nunca se articulou de modo amplo para prestar o apoio possível aos seus cidadãos, principalmente às pequenas cidades ou comunidades. Pelo contrário, evitou oferecer o apoio necessário. Mas quando se articulou para fazê-lo, foi para exigir a abertura, pelo fim do isolamento social, pelo não uso de máscaras de proteção individual; foi a favor do uso de um remédio que mundialmente tem contestado seu sucesso no controle da doença, mas com já consolidados históricos de maléficos efeitos colaterais à saúde.

A sabotagem entre governos

No nível municipal, cada cidade ficou presa à sua própria incompetência, entendida como histórica falta de estrutura sanitária adequada ao momento, com recursos financeiros incompatíveis com as necessidades da crise, quase sempre sem profissionais qualificados para assessorar as tomadas de decisões técnicas, com precária estrutura de fiscalização, com restritas condições políticas para impor as medidas tomadas pelos prefeitos ou câmaras municipais, principalmente nas pequenas cidades. Os apoios financeiro, material, humano e político do governo federal, mas também do estadual aos municípios, seriam essenciais para auxiliar nas tomadas de decisões, fortalecendo e fazendo valer as decisões tomadas.

Mas nada feito, pois o governo federal se esquivou de prestar o fundamental apoio que a grave crise exige. Inclusive, tanto no nível municipal como estadual, em decorrência de divergências políticas, o governo federal não só não colaborou como em algumas vezes ameaçou governadores e prefeitos, quando estes tomaram decisões acertadas, mas consideradas abusivas pelo governo federal, contrárias ao seu entendimento acerca de como cuidar da crise provocada pela doença.

No nível do governo estadual, cada estado também se viu sozinho, isolado, tomando decisões sem apoios ou contrapartidas federais, muitas vezes até sem conexões com as decisões tomadas pelos estados vizinhos ou pelos prefeitos de cidades do próprio estado. Cada estado ficou preso à sua própria competência, esta muito maior do que as das prefeituras, já que possuem secretarias de estado e órgão auxiliares, como agências de monitoramento diversas, banco de dados e possibilidade de contar com apoio de inúmeros profissionais qualificados, por exemplo. E também com maiores recursos financeiros e para fiscalizar e impor as decisões tomadas.

Aqui vale um parêntese.

O Brasil tem excelente estrutura de saúde, oferecida pelo SUS (Sistema Único de Saúde), algo único no mundo. Tem também, em diversos níveis de governo, institutos de pesquisas e universidades, principalmente públicos, que desenvolvem pesquisas de altíssimo nível, rivalizando com suas coirmãs estrangeiras. Há a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) no nível federal, que há décadas apoiam a ciência e a formação de recursos humanos.

Vários estados também possuem sólidas agências, que com recursos estaduais próprios fomentam a pesquisa e formação de recursos humanos, em diversas instituições de pesquisas e universidades, bem como a iniciativa privada. Temos base de dados, como as oferecidas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no nível federal, mas estados e muitas prefeituras, principalmente das grandes cidades, também fazem levantamentos próprios, mantendo-os em sólidas bases de dados.

Salvar o patrimônio público

Portanto, não nos faltam estruturas e capital humano bem qualificados para fazer frente às necessidades da pandemia, principalmente lotados nas instituições públicas, como hospitais, centros de pesquisas diversos e universidades. No presente, o que tem faltado são aspectos de gestão e articulação, com base em políticas que privilegiem o cidadão, a cidadania e a vida, que deveriam ser capitaneadas principalmente pelo governo federal.

Isso ficou bem explícito com as alterações proporcionadas pelo governo federal na pasta da Saúde. A gestão do médico e ministro Luiz Henrique Mandetta se apresentou com um caráter mais técnico, com posições pautadas pela ciência, com vistas a preservar vidas, em que pesem as divergências políticas do também político Mandetta. Mas após sua conturbada saída, a pouca articulação federal que havia vazou água e o que segue até hoje, sob comando de um general, é quase nada, até com recorrentes tentativas para esconder os números de mortos pela doença.

O nível de comprometimento nas ações conjuntas chegou a tal ponto que alguns estados esconderam do governo federal que compraram equipamentos de suporte à vida ou outros insumos necessários ao controle da pandemia. Conforme explicitaram, tomaram essa decisão pois havia receio de perdê-los, confiscados pelo governo federal.

Ambos são absurdos, esconder, mas também confiscar. Neste contexto histórico, todos deveriam ser parceiros e não desafetos políticos. Na tentativa de colher frutos para seu grupo político, com vistas às próximas eleições, grupos rivais propositalmente tentam rebaixar as possibilidades de ações de alguns governadores ou prefeitos, questionando e até dificultando suas tomadas de decisões. Quem mais perdeu e segue perdendo com tudo isso é quem mais precisa, a vida dos cidadãos.

Mas no nível estadual também podemos ver algumas lambanças. Há graves indícios de problemas diversos nas compras de equipamentos e insumos destinadas ao controle da pandemia. Nestes casos, parece que prevaleceu a velha política, de propinas e de sobrepreços. Já o recente abre e fecha em São Paulo e cidades do interior, as aglomerações em bares no Leblon e em outros pontos da cidade, no Rio de Janeiro, são exemplos ruins nas tomadas de decisões.

O desejável seria constituir um grupo de trabalho multidisciplinar, formado por especialistas em diversas áreas, centralizado e articulado pelo governo federal, unindo esforços, pessoal, equipamentos e recursos financeiros, com apoio dos governos estaduais, para desenvolver a melhor política pública nacional, para cada estado, região ou município, empregando a sólida e diversa estrutura de pesquisa que já possuímos, pois não nos faltam expertises, visando preservar vidas.

No nível de nossa instituição, também estamos um pouco à deriva, pois, com exceção do afastamento social e do apoio às disciplinas oferecidas de modo remoto, não foram oferecidos outros importantes apoios para que passássemos por este período com menores perdas. No nível da pesquisa, tudo resolvemos de modo individual. Compramos todos os insumos para os laboratórios, para mantê-los minimamente seguros e operacionais, mesmo nesta baixa demanda. Luvas, máscaras ou outros equipamentos de segurança e proteção individuais cada um tem que providenciar o seu.

É apenas uma questão de tempo e retomaremos as atividades presenciais. Mas em hipótese alguma nos foi oferecida a possibilidade de testagem em massa de professores, funcionários técnicos e administrativos e dos alunos. Entraremos em salas de aulas e laboratórios com os itens de segurança individual que cada um puder providenciar, segundo seus recursos financeiros e convicções? Para este segundo semestre continuaremos sem trabalhos de campo? Muitos colegas não trabalham com metadados ou não têm servidores para acesso remoto.

Sem dúvida, no curto prazo, a expectativa é a redução da qualidade e da quantidade das pesquisas desenvolvidas por muitos grupos de pesquisas, o que rapidamente refletirá nos números e na qualidade das publicações científicas. Porém, particularmente mais sentidos naqueles grupos que necessitam de trabalhos de campo e posteriormente desenvolvem inúmeras análises físicas, químicas ou biológicas em seus laboratórios, hoje parados ou operando de forma esporádica.

Um triste passado que voltou

Não nos esqueçamos: há décadas está em curso uma política de desvalorização do serviço e do funcionalismo público. Exemplos? A extinção do Fundação Zooobotânica do Rio Grande do Sul, a titulo de cortes de verba. Mais exemplos? A Dataprev (Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social), iniciou processo de privatização em São Paulo, com o fechamento de muitos escritórios. Também é histórica a recorrente falta de concursos para reposição de cargos e de verbas para os importantes institutos de pesquisas do estado de São Paulo. Inclusive chegou-se a pensar em fechá-los.

O pagamento de bônus aos professores da rede pública estadual paulista, com base em metas de desempenho, é um acinte. O estado não oferece os meios adequados, mas cobra de professores e dirigentes as soluções dos problemas que o próprio estado não tem interesse em solucionar. É importante lembrar que neste momento de extrema necessidade de saneamento básico, para ao menos oferecer água tratada para lavar as mãos e afastar como esgoto a água utilizada, livrando as pessoas de novas doenças, temos a aprovação da privatização da água no país. Isso implicará na efetiva entrega de nossos mananciais à iniciativa privada, mas sem as devidas garantias à qualidade de vida da população.

Mas há muitos outros exemplos que estão em discussão, como a privatização da Petrobrás, Banco do Brasil, Eletrobrás (Centrais Elétricas Brasileiras S.A), Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados), no nível federal, da Cedae (Companhia Estadual de Água e Esgoto), no Rio de Janeiro, sem falar daquelas privatizações que já ocorreram, como da Vale, Banespa (Banco do Estado de São Paulo), CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos), em São Paulo, entre muitos outros exemplos de privatizações.

Também não podemos nos esquecer dos prejuízos ocasionados pelas concessões de bens públicos à iniciativa privada, como de escolas, hospitais, reservas federais e estaduais, estádios de futebol, parques públicos, por exemplo. São emblemáticas as concessões do Parque do Ibirapuera e do complexo do Pacaembu, composto pelo estádio municipal Paulo Machado de Carvalho (o estádio do Pacaembu) e pelo seu Centro Poliesportivo e em discussões as concessões do Zoológico, Zoo Safari e Jardim Botânico, todos na cidade de São Paulo, mas seguem muitos outros exemplos pelo Brasil afora.

O recorrente descaso com os funcionários públicos em geral segue no presente tal como no passado. Com a aprovação da atual reforma da previdência, todos os funcionários públicos foram brindados com aumentos nos tempos de idade e das alíquotas de contribuição para solicitarem suas aposentadorias.

Se isso já não bastasse, em São Paulo, o governador João Doria aprovou lei que permite cobrir parte da folha de pagamento das pensões e aposentadorias da administração direta e indireta do Estado, através do Sampaprev (São Paulo Previdência) com recursos extras retirados dos próprios aposentados, que antes não contribuíam. Isso é indigno. Significa alterar o resultado do campeonato depois que ele terminou e teve o campeão divulgado. Um funcionário público já aposentado, que contribuiu por décadas, com base em uma norma e usufruindo de seus benefícios, em decorrência da alteração da norma, é penalizado com uma contribuição extra, implicando na redução de seu próprio benefício a título de contribuir para a sua própria aposentadoria.

Esse absurdo não é único. Neste momento de pandemia, no nível federal, o governo Bolsonaro aprovou normativa que retiras dos funcionários públicos o tempo trabalhado para efeitos de quinquênios, impede concursos públicos, inclusive os em curso e novas nomeações. Mesmo progressões na carreira estão proibidas, até dezembro de 2021.

Mais um grave descaso com o funcionalismo público. Mais uma demonstração de desrespeito àqueles que hoje são as diversas e as mais importantes linhas de frente no enfrentamento da pandemia. As únicas contratações possíveis, serão através de processos seletivos simplificados visando contratar temporários, num claro processo de precarização das condições de trabalho. Mas não só, no caso das universidades públicas paulistas, professores temporários têm sido contratados com reduzida carga horária, o que impede o pleno desenvolvimento das atividades de ensino, pesquisa e extensão, o tripé de sustentação de uma instituição de ensino e pesquisa de qualidade.

Chega de farsa

No entanto, como contraponto, não há problema algum para o governo federal pagar os atuais gordos jetons (de até R$ 40.000,00) a ministros e outras centenas de pessoas lotadas no primeiro escalão. Nem quando essas mesmas pessoas já recebem vencimentos relativos a outros cargos que ocupam no próprio governo federal e ainda para muitas delas se somam suas aposentadorias.

E o que dizer do criminoso teto de gastos, definido no governo Temer? Do atual governo federal, não esperamos nada diferente pelos próximos anos. Dos governadores, tampouco. Dos prefeitos, de modo isolado nada conseguirão repercutir.

Resta nos organizarmos em uma frente ampla, unindo as forças mais progressistas do país, constituindo uma oposição consciente, na tentativa de barrar e até mesmo alterar o rumo antissustentabilidade no qual o governo brasileiro segue firme em aplicar até 2022, com descaso à vida e ao meio ambiente.
Parafraseando Darcy Ribeiro: a crise no Brasil não é uma crise, é um projeto.

Marcelo Pompêo é professor do departamento de Ecologia da USP.

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