A luta dos trabalhadores de aplicativos e a contribuição do sindicalismo revolucionário para o momento histórico
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- Kauan Willian
- 15/08/2020
Em 1980, o estudioso André Gorz publicava na França o famoso livro “Adeus ao proletariado: para além do socialismo”. Era um trabalho que figurava entre as “teorias do fim do trabalho”, as quais surgiram desde o período pós-fordista na Europa. Essas teorias tentavam dar uma nova explicação de mundo, além de estratégias da superação tanto do capital, como também do(s) socialismo(s), as quais estavam centradas na relação entre proletário, política e revolução.
Para Gorz e outros autores, com o desenvolvimento dos processos de automação e a descentralização de polos industriais, - que agora focariam em comércio - transformaram o movimento operário em algo desfigurado e, portanto, o conceito de centralidade da revolução para com esses trabalhadores, sobretudo os industriais que certo marxismo defendia, caía por terra já que os trabalhadores não se entenderiam mais enquanto classe. Para ele, a produção desenvolvida sob uma racionalidade econômica capitalista, seria impossível de ser apropriada por uma racionalidade socialista.
O que sobra, para ele, seria justamente acelerar essa posição antitrabalho, o que degradaria supostamente o capitalismo gerando contradições difíceis de serem reajustadas, além de lutar por valores universais não ligados a uma consciência proletária, como, por exemplo, garantias de uma renda mínima para a sobrevivência, espaço mínimos de ocupação para todas as pessoas etc.
Assim como ele, Michael Hardt e Antônio Negri designam que um novo agente revolucionário é, e deve ser, exatamente amorfo e complexo, uma multidão única possível para enfrentar amplas formas de opressão descentralizadas, como ocorreu na Primavera dos Povos, nas ocupações de Wall Street nos EUA e em Junho de 2013 no Brasil. Uma consciência de classe estaria ultrapassada e daria lugar agora para uma consciência de multidão frente a um Império que nega valores, identidades e culturas múltiplas.
Mas se for correto que a classe trabalhadora e o proletariado acabaram, por qual motivo recentemente movimentos de trabalhadores de aplicativos estão preparando paralisações que reivindicam condições de trabalho, melhores salários e criando movimentos de cultura de enfrentamento às grandes corporações? Entendemos que a reestruturação produtiva e a complexidade das relações de trabalho gerada pela desregulamentação e flexibilização do trabalho carecem de uma maior compreensão e não de seu encerramento por decreto. A ideia aqui é demonstrar que essas mudanças no cotidiano dos trabalhadores que vivem de seu trabalho com regras flexíveis fazem parte de nossa classe e para tal é necessário pensar e repensar formas de organização.
Nossa contribuição vai no sentido de retomar um pouco sobre outro conceito de classe trabalhadora histórica, que nunca colocou propriamente trabalhadores de fábricas como agentes prioritários; e baseado nesse conceito pensarmos como possibilidade de resposta aos problemas organizativos do presente a estratégia do sindicalismo revolucionário que no passado conseguiu arrancar melhores condições de vida para os trabalhadores com ganhos e direitos que duraram décadas além de ensaiar insurreições e revoluções no mundo.
Origem das ideias de classe trabalhadora (dentro e fora das fábricas) organizada na história
Um dos principais debates da Primeira Internacional dos Trabalhadores no século 19 se referiu aos agentes que seriam motriz da revolução social. Um dos seus principais organizadores, Karl Marx, em geral, enxergava os centros do capitalismo como a fonte principal da mais-valia, e consequentemente as fábricas ligariam mais diretamente os trabalhadores através da exploração da mão-de-obra dos mesmos; estrategicamente, a classe trabalhadora fabril, principalmente nos países em que se gestou a Primeira e Segunda Revolução Industrial seriam os protagonistas da tomada de poder (o Estado) das mãos dos detentores dos meios de produção. Ele acreditava que as forças cosmopolitas desses centros espalhariam a revolução “dos centros às periferias” e que os países que não haviam chegado a esse grau de desenvolvimento industrial, ou teriam que se desenvolver para criarem condições de protagonizarem a revolução, ou seriam posteriormente levados pelos países mais industrializados que fomentariam a transformação histórica.
Mikhail Bakunin, da ala coletivista da associação, mais tarde chamada de anarquista, discordava dessa premissa. Para ele, embora também concordasse que as forças econômicas seriam determinantes e formariam o ser social e suas resistências, era preciso agir e mobilizar todos os explorados pelo capitalismo e pelo Estado-nacional, seja direta e indiretamente. O denominado por Marx de lumpemproletariado, ou seja, fora da exploração da mais-valia direta, por exemplo, prostitutas, delinquentes, pessoas em situação de rua, prisioneiros e outros setores, foram vistos pelo teórico e militante alemão como reacionários. Bakunin, por sua vez, afirmava que eles poderiam sim ser mobilizados e organizados, sua convicção vinha da prática durante sua participação em levantes populares e lutas de libertação nacional nas periferias do capitalismo no período.
Para nosso debate é importante lembrar que há leituras como do historiador Marcelo Badaró Mattos que considera simplório tratar Marx e Engels como defensores de trabalhadores fabris como os únicos agentes revolucionários, já que embora dessem valor para os trabalhadores produtivos, no decorrer de suas obras os trabalhadores lidos como improdutivos como “uma cantora que entoa como um pássaro”, na medida em que “vende seu canto, é assalariada ou comerciante. Mas, a mesma cantora contratada por um empresário, que a faz cantar para ganhar dinheiro, é um trabalhador produtivo, já que produz diretamente capital”. Acrescentando que socialistas também no sul global, antes de Lênin colocaram o campesinato como uma força revolucionária possível, já se organizavam entre socialistas mutualistas, sindicatos e organizações com trabalhadores diversos, moldando uma teoria que seria sistematizada depois, com a Revolução Russa.
Trazendo para os tempos atuais, vale ressaltar também que empiricamente, como mostra o trabalho de Marcel Van der Linden, a própria classe fabril não desapareceu na sociedade do século 21. É verdade que com o avanço de algumas particularidades, como as redes capitalistas móveis e modalidades que misturam o trabalho informal e formal (que sempre existiu, porém aumentou nos dias de hoje), formas de dominação além da vigilância fixa das fábricas e o avanço das revoluções tecnológicas – esses exemplos fazem parte de um capitalismo diferente do século 19.
E talvez a constatação mais importante nesse debate: fora da Europa, onde as multinacionais espalham suas fábricas, há um contingente de trabalhadores fabris nunca visto antes, em que os números chegam a um contingente maior do que no fim do século 19. Esses países envolvem a China, Índia, Japão, os tigres asiáticos, o México, e mesmo em partes do continente africano. Isso torna a teoria do pós-trabalho bem frágil e eurocêntrica.
A proposta do anarquismo e a estratégia do sindicalismo revolucionário
Após o colapso da Primeira Internacional, como descreve o estudioso do nacionalismo Benedict Anderson, “o anarquismo e o sindicalismo revolucionário foram o elemento dominante da esquerda radical internacionalista e autoconsciente” até a Primeira Guerra Mundial; figurava como o “principal veículo de oposição global ao capitalismo industrial, a autocracia, ao latifundiarismo e ao imperialismo”. Esse método de luta garantiu direitos básicos a classe trabalhadora que as empregou como por exemplo, na jornada que arrancou as oito horas diárias, férias, salário mínimo e outras vitórias.
O sindicalismo revolucionário, no caso especial brasileiro, mostrava que trabalhadores podiam se organizar independente de religião, etnia, posição política etc., em torno de lutas de curto prazo apontando para uma perspectiva revolucionária. Acreditavam e acreditam os anarquistas e adeptos da estratégia do sindicalismo revolucionário que a construção dos movimentos e a vivência dos explorados entre si, obtendo vitórias através de suas lutas, acumulando experiência e solidariedade nas derrotas seria o que se chamava de “ginástica revolucionária”.
A pedagogia da ação direta orientaria os trabalhadores sobre os processos do trabalho e a exploração que decorre do mesmo. Refletindo sobre ganhos e perdas dentro dos processos das lutas imediatas, os trabalhadores fomentariam um movimento que surgisse desde as bases para o topo, da periferia para centro. O objetivo seria conectar greves locais rumo a greves gerais, com um horizonte de deflagração de um processo revolucionário ou de transformação profunda da sociedade. Seriam assim criadas condições para a destituição dos donos dos meios de produção, e consequentemente a construção de novas estruturas de organização social pelas mãos de trabalhadoras e trabalhadores, tendo em vista a destruição do Estado. A ideologia que rege a estratégia tem suas bases criadas através da ideia de construção de uma sociedade onde não seria necessário mais patrão e dirigentes políticos estatistas.
Para eles, portanto, não importava a posição prévia do trabalhador na produção, sua identidade como trabalhador se formaria na própria luta e experiência que advinha dela. O pesquisador sul africano Lucien Van der Walt considera que na tradição socialista libertária “a classe trabalhadora inclui todos os trabalhadores assalariados sem controle de seu próprio trabalho, sejam eles empregados da agricultura, da indústria ou dos serviços, e também trabalhadores temporários e informais, assim como suas famílias e os desempregados”.
Com a ascensão do bolchevismo em 1917, parte da classe aderiu a ele, mas também, outra ao sindicalismo socialdemocrata, que estagnava a luta a partir da ideia de transformação gradual juntamente com os processos legais de eleições e o sindicalismo corporativista; no momento posterior o caso varguista, aparelhou a luta sindicalista a um Estado forte, que desmembrava o sindicalismo revolucionário. Essas duas experiências contribuíram para a criação de um hiato entre trabalhadores formais e estáveis que estavam no leque dessas instituições e outra, com trabalhadores instáveis, que não teriam direitos adquiridos e proteções legais.
Ventos do passado soprando para a construção de um novo mundo
Olhando o passado para pensarmos o presente é importante ouvirmos as vozes de outros tempos. Em nossa opinião trazem a estratégia do sindicalismo revolucionário como uma solução a ser considerada em um mundo do trabalho que a exploração cada vez mais se assemelha com o que se encontrava nos primórdios do capitalismo. Seja com a enorme desigualdade social, seja com as relações trabalhistas cada vez mais violentas e o capital cada vez mais predatório. O trabalho não acabou, se reconfigurou e o capitalismo assumiu uma cara ainda mais autoritária e exploratória.
Ao vermos as reivindicações de trabalhadores de aplicativos e outras categorias de trabalhadores precarizados, percebemos a grande dificuldade dos sindicatos formais e das centrais sindicais atreladas aos ritos da estrutura sindical que existe no Brasil em dar respostas organizativas para essa nova forma de exploração. Por isso, o avanço da uberização do trabalho, da terceirização e destruição dos direitos trabalhistas faz ressurgir em nossos tempos processos de luta no mundo do trabalho por fora da jurisdição da estrutura sindical.
As respostas organizativas dadas a categorias que estão extremamente dispersas sem um local de trabalho ou um patrão identificável, tem sido construídas aos poucos sobretudo desde o “chão da rua” e não a partir de um centro especializado ou das burocracias sindicais cada vez mais distantes da realidade dos trabalhadores. A mobilização dos entregadores de App não é uma novidade, no entanto, é importante analisarmos essa experiência com bastante atenção.
Focados na defesa de suas condições de trabalho mantendo a auto-organização com uma composição que abarca uma diversidade grande e inovando nos métodos de organização via redes sociais e construção de polos de encontro nas ruas.
Construída aos poucos desde a base a paralisação nacional atingiu o Brasil inteiro e até outros países. O protagonismo da categoria e sua auto-organização nos coloca pontos de convergência com outras experiências radicais de sindicalismo como por exemplo o mencionado sindicalismo revolucionário no início do século 20, os passos dados pela Oposição Sindical Metalúrgica em plena repressão da Ditadura Militar e outros momentos de dificuldade que a classe reinventou seus métodos de luta com criatividade. É cedo para fazermos voos altos na análise, no entanto, é necessário acompanhar e manter toda a solidariedade à paralisação dos entregadores de app.
O fato de boa parte deles estarem fora de organismos e instituições legais, coloca a experiência do sindicalismo revolucionário como uma grande possibilidade de ferramenta nas mãos desses trabalhadores. Fomentar a auto-organização e manter a extrema solidariedade ao invés de tentativas de absorção do movimento para o campo das lutas da política institucional que além de enfraquecer a luta, pode colocar os trabalhadores mais propensos a cooptação de forças reacionárias.
A grande conectividade e as novas tecnologias diminuem cada vez mais os espaços para a construção burocrática das lutas a partir de um movimento que começa de cima pra baixo. O capital se organiza cada vez mais de forma fluida e flexível e o engessamento da burocracia sindical parece ter cada vez mais dificuldade em dar conta de responder a altura essas movimentação da exploração do trabalho.
Evidentemente, é importante considerar os espaços sindicais formais existentes como um espaço importante de disputa, pois eles não vão desaparecer ou mudar como em um passe de mágica apenas pela nossa boa vontade. O que convém é cada vez mais caminharmos para a desburocratização da luta sindical apontando para um movimento de luta no mundo do trabalho mais radical, combativo, com independência de classe e que leve em consideração os anseios de sua própria base. A mobilização dos entregadores é um respiro em um momento de tantas derrotas e tragédias que vivemos país. Ainda está no começo, mas esperamos que esses ventos revolucionários soprem mais forte e que a luta dos entregadores seja mais um passo importante para darmos a volta por cima.
Enquanto a subsistência de uma classe depender da venda de sua força de trabalho para o lucro de uma minoria privilegiada, as teorias pós-trabalho não farão sentido.
Referências
ANDERSON, Benedict. Sob três bandeiras: anarquismo e imaginação anticolonial. São Paulo: Editora da Unicamp, 2014.
GORZ, Andre. Adieux au Prolétariat. Au de-lá du socialisme. Paris, Editions Galilée, 1980.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na Era do Império. São Paulo: Record, 2005.
LINDEN, Marcel Van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma história global do trabalho. São Paulo: Editora da Unicamp, 2009.
MATTOS, Marcelo Badaró. A classe trabalhadora: de Marx até nossos tempos. Boitempo: São Paulo, 2019.
SAMIS, Alexandre. Polêmicas no interior da Primeira Internacional. São Paulo: Faísca, 2010.
WALT, Lucien Van der. “Revolução Mundial: para um balanço dos impactos, da organização popular, das lutas e da teoria anarquista e sindicalista em todo o mundo.” In: FERREIRA, Andrey Cordeiro (ed.).Pensamento e Práticas Insurgentes: Anarquismo e Autonomias nos Levantes e Resistências do Capitalismo no Século XXI: Alternativa Editora: Niterói, pp. 81-118.
Kauan Willian é doutorando em História Social (USP), Professor da rede pública; militante da Resistência Popular Sindical e membro do Instituto de Teoria e História Anarquista –ITHA (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.).