EUA e Brasil: “Não vamos conter o morticínio criando protocolos de atuação da polícia; é preciso parar a máquina”
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- Raphael Sanz, da Redação
- 16/12/2020
Contramarcha antifascista – Avenida Paulista, 31 de maio de 2020. Créditos: Pedro Ribeiro Nogueira/Pavio
Dentro de um contexto de pandemia que atravessa o ano, manifestações antifascistas e antirracistas, de dimensões maiores do que as que tivemos aqui, ocorreram nos EUA após o assassinato de George Floyd em 25 de maio por parte da polícia de Minneapolis. Os protestos subsequentes a esse fato escalaram para uma situação em que hoje vemos grupos antagônicos armados nas ruas; além da própria polícia que perseguiu militantes antifascistas e do Black Lives Matter. E em meio a este delicado cenário, ainda entram as polêmicas eleições presidenciais e toda uma conjuntura global de revoltas. Trazendo algumas reflexões sobre essas questões, publicamos a segunda parte da entrevista com Acácio Augusto; cientista político, professor do departamento de Relações Internacionais da Unifesp coordenador do LASintec (Laboratório de Estudos em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento).
“[O que vimos nos EUA esse ano] não é novo, temos casos desde os anos 90 de revoltas de rua que vão pautar essa questão do racismo da polícia e do próprio sistema, como vimos em março de 1991 em Los Angeles quando houve o caso do Rodney King, que também foi atingido por um policial, e não à toa também em um momento de governo republicano, do Bush pai”, explica.
Em relação a como as eleições possam afetar as relações com o Brasil no caso de uma vitória de Biden, Acácio não faz cerimônias e coloca que em nome de interesses econômicos, os bolsonaristas poderão acenar também aos democratas. Já quando a questão é o protesto social, avalia como positiva a conexão entre os países, e também muitos outros que vivem revoltas semelhantes, mas alerta para que saibamos traduzir as pautas e cuidar para que nossas especificidades tanto enquanto Brasil quanto América Latina não se percam em meio à pauta estadunidense e global.
“Vejo que há um esgotamento – e aí sim Brasil e EUA coincidem – dessas formas de representação política, pois dentro delas vamos ficar em uma espécie de pêndulo de administração entre um neoliberalismo que é brutal, agressivo e desigual com a possibilidade de intercalar com um neoliberalismo um pouco mais inclusivo, e que a única maneira de quebrar com esse pêndulo seria fazendo-o parar de balançar, ou seja, com a retomada da radicalidade desses movimentos de rua”.
Leia a seguir esta segunda parte da entrevista. Clique aqui para ler a primeira parte.
Acácio Augusto é professor no Departamento de Relações Internacionais da Unifesp, coordenador do LASIntec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional de Tecnologias de Monitoramento), pesquisador no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária – PUCSP), além de autor e organizador de livros.
Correio da Cidadania: Como enxerga o cenário estadunidense hoje? Que experiências vinculadas ao antifascismo você destacaria?
Acácio Augusto: Se partimos da definição do que é fascismo para a antifa contemporânea [veja a primeira parte da entrevista] – supremacismo branco, nacionalismo, misoginia e autoritarismo/desejo de ordem – vamos ver que não é por acaso que esses movimentos vão emergir no mundo. Embora essas três características sempre estivessem presentes, elas vão ganhando mais corpo e representação mais incisiva na política institucional a partir de figuras como Trump, Bolsonaro, Orban [Hungria], Duterte [Filipinas], Modi [Índia] e outras. São figuras muito diferentes entre si – é bom ressaltar, senão não conseguimos compreender direito – mas que têm suas semelhanças em torno dessa forma de atuação e da valorização desses elementos.
Nesse sentido foi interessante o que surgiu os EUA. Não é novo, temos casos desde os anos 90 de revoltas de rua que vão pautar a questão do racismo da polícia e do próprio sistema, como vimos em março de 1991 em Los Angeles quando houve o caso do Rodney King, que também foi atingido por um policial, e não à toa também em um momento de governo republicano, do Bush pai. Naquele ano os Estados Unidos estavam atacando o Iraque, supostamente uma retaliação pela invasão do Kuwait, e internamente estava vivendo essas revoltas que foram muito mais brutais – morreram cerca de 50 pessoas nessas manifestações – do que as últimas que assistimos agora.
O que é interessante nos EUA e que de alguma maneira migrou pra cá, é a identificação da operacionalização desse racismo sistêmico pela instituição policial. É muito interessante que a pauta do Defund de Police [diminua o financiamento da polícia] avançou em alguns setores do Black Lives Matters para uma pauta de abolição da polícia [Abolish the Police] que torna o conflito muito mais explícito. Porque aí vão surgir os movimentos de autodefesa das organizações populares e também os dos supremacistas brancos, como o que integra aquele menino em Kenosha [Wisconsin], que atirou com seu fuzil e acabou muito bem tratado pela polícia; lembrando que ele tinha um fuzil e o cara em quem ele atirou tinha um skate. Isso está filmado.
Vejo que de um lado é interessante que essa pauta se conecte planetariamente, as conexões e similitudes nesse sentido que acontecem nos EUA e no Brasil ocorram. Mas também acho saudável que se traduza isso para que, mesmo do ponto da vista da contestação, os EUA não fiquem puxando o bonde do mundo todo.
Correio da Cidadania: O que comenta sobre as eleições estadunidenses? De que forma os resultados podem nos afetar?
Acácio Augusto: O grande problema do cenário eleitoral agora é essa característica de dominação que os EUA assumem principalmente sobre a Nuestra América.
E bem, se vamos para uma leitura mais pragmática, não sei o quanto a vitória do Joe Biden vai ser mais desejável para nós do que a do Trump. Obviamente que a vitória do Trump reforça e fortalece a posição do Bolsonaro, mas isso não quer dizer que por interesses, sobretudo econômicos, não se possa refazer essa relação. Vide o que o próprio Bolsonaro tem feito de março pra cá: se entendeu com o Centrão, sentou com o Gilmar Mendes para fazer os acordos dentro do STF, nomeou um sujeito que era mais ou menos consensual entre os próprios membros do STF e da Câmara liderada pelo Rodrigo Maia para acalmar os ânimos. E inclusive sendo interpelado pela própria militância dele sobre o prometido ‘ministro terrivelmente evangélico’ e respondeu o que todo governante sempre responde: ‘eu preciso governar’ – um movimento que acho bem interessante.
Não vou ficar aqui traçando paralelos porque ainda é cedo, mas quem tiver imaginação vai chegar no ponto. Ponto mais uma vez para as análises e críticas anarquistas, sem querer puxar a sardinha pro meu lado, mas já puxando.
Retomando, tem uma coisa que é interessante ver a relação: a identificação com os dispositivos de segurança é particularmente o que mais me interessa, é o que estudamos no LASintec, na Unifesp. Da mesma maneira que se tem uma certa tentativa de governar essas revoltas – o que seria um paradoxo, uma antinomia – por parte da esquerda mais institucionalizada aqui no Brasil; lá nos EUA os meios democratas ficam a toda hora batendo e assoprando em torno disso, quer dizer, também tentam fazer essa operação de separar no Black Lives Matter o que é justo e o que é condenável; o que é democrático e o que é vandalismo.
Tanto é que lá nos EUA a perseguição é feita de uma maneira bem mais explícita. O facebook, por exemplo, derrubou todas as páginas anarquistas dos EUA. A Crimethinc, que é um grupo anarquista de lá, que produz muita informação, está sem página até hoje. E isso é rapidamente absorvido pelo jogo democrático, o que também é uma coisa curiosa. Os EUA sempre dizem a si mesmos que são a ‘maior democracia do mundo’. E por aqui esses babacas que fazem comentários na GloboNews repetem.
Os Estados Unidos não são uma democracia. E não estou aqui fazendo ironias, nem críticas militantes como as que colocam a ideia de ‘falsa democracia’: eles apenas não são uma democracia. A fundação da federação de Estados que criou os EUA é uma união republicana, no sentido não do Partido Republicano, mas da origem da palavra ‘republicanismo’. O objetivo dos pais fundadores era justamente ter o mecanismo de controle da plebe. Era preciso filtrar a participação política dessas pessoas, e é por isso que o sistema de voto estadunidense é tão complexo. Praticamente só quem estuda ciência política entende o que é aquela coisa dos delegados, das prévias, das eleições que elegem os delegados dos Estados, o que depende de uma série de cálculos populacionais, e são esses delegados que, então, vão votar no presidente.
Não há eleições gerais como no Brasil, por exemplo, onde quem tem mais votos ganha. Nos EUA um presidente pode ganhar na somatória dos votos, mas a partir dessa lógica dos delegados estaduais acaba perdendo. Por outro lado, o voto não ser obrigatório é algo que vejo como positivo, e esse seria um fator democrático que não temos por aqui.
Retomando mais uma vez a questão dos protestos, essa conexão entre as revoltas daqui e de lá é muito interessante, mas precisamos refletir muito sobre ela, porque aqui no Brasil temos demandas muito específicas. Tanto em termos de Brasil, como em termos de América Latina, continente que vive há muito tempo sob esse domínio dos EUA. Não é, obviamente, um domínio direto – gosto muito da expressão do Pierre Bourdieu, sociólogo francês, que chama de ‘imperialismo do universal’, ou seja, não é uma dominação imperial tal qual se imagina, nem o imperialismo propriamente teorizado pelo Lenin, é uma dominação de modo de vida que assegura as demais formas de dominação.
Somos muito mimetizados com as formas de vida estadunidense e eles viram referência o tempo todo. E diria mais: tudo que existe do México pra baixo acaba sofrendo com isso. Por isso que que é interessante o que está acontecendo lá, por uma questão do impacto que isso tem na política internacional, temos que ficar ligados em como serão os protestos e como foram as eleições por lá, mas devíamos nos ocupar um pouco mais em traduzir isso.
Manifestante nos EUA com cartaz escrito “Abolir a Polícia”. Créditos: Daniel Arauz.
Correio a Cidadania: Ainda sobre a proposta de abolição da polícia em pauta por lá, como traduzir para a nossa realidade?
Acácio Augusto: O mais importante é pensar em como traduzir essa ideia de abolição da polícia pra cá. Como traduzir a questão do racismo num país que tem uma composição racial e de classe completamente diferente da estadunidense, que tem elementos de racialização que são diversos do que foi a guetificação dos negros nos EUA. Obviamente que ninguém aqui compactua com a tese do Gilberto Freyre de que exista uma democracia racial, mas é preciso entender que essa composição aqui foi diversa e opera de outra maneira.
Vejo que há um esgotamento – e aí sim Brasil e EUA coincidem – dessas formas de representação política, pois dentro delas vamos ficar em uma espécie de pêndulo de administração entre um neoliberalismo que é brutal, agressivo e desigual, com a possibilidade de intercalar com um neoliberalismo um pouco mais inclusivo, e que a única maneira de quebrar com esse pêndulo seria fazendo-o parar de balançar, ou seja, com a retomada da radicalidade desses movimentos de rua. Uma maneira de pensar uma forma mais continuada dessas ações.
Acredito que uma das dificuldades de ações como o Black Lives Matter, as riots (revoltas de rua), os coletes amarelos na França, o que foi junho de 2013 aqui, é tentar desinscrevê-las do espetáculo. Porque o espetáculo cumpre bem esse papel, todo mundo comenta nas redes, nas ruas, na imprensa e daqui a pouco vem o próximo assunto enquanto a roda continua girando.
Penso que a pandemia foi incapaz de impor uma coisa que uma hora terá de se impor por questões políticas, econômicas, sociais e ecológicas: precisamos frear esse trem da história, ele precisa parar. Precisa parar. Estamos indo em alta velocidade para o abismo e não vai ser entre o Biden e o Trump ou entre o Bolsonaro e o Lula – ou Haddad, Ciro etc. – que vamos sair desse buraco.
Formou-se um modo de vida insustentável em todos os sentidos da palavra. Ele é insustentável pelo extremo racismo assassino em que opera, pela gigantesca desigualdade que vai pegar ainda mais no Brasil – o auxilio emergencial ainda consegue segurar alguma coisa; não sou nenhuma Mãe Dinah, entretanto vislumbro um 2021 muito difícil, onde vamos rumar para esse ponto sem retorno, que forçará alguma situação. Ou os movimentos vão se radicalizar e quebrar com esse acúmulo ou a brutalidade vai se normalizar a tal ponto de que coisas que chocavam não vão chocar mais: gente passando fome, superexploração do trabalho, agentes de segurança cada vez mais violentos e por aí vai.
Correio da Cidadania: Você vê isso sendo pautado no Brasil com alguma força no futuro? Que característica da nossa sociedade se destaca nesse contexto?
Acácio Augusto: Não podemos esquecer que no Brasil não temos só dois, três, quatro, cinco Georges Floyds por dia mortos pela polícia. Temos qualquer segurança de supermercado matando jovem negro por sufocamento*. Quem não se lembra de casos que ganharam a mídia, como o do Extra, ou do menino na porta do Habibs da Vila Nova Cachoeirinha [zona norte de São Paulo]? Isso sem contar a violência laboral que, por falar em Extra, recentemente morreu um funcionário no meio do serviço e acabou tendo o corpo escondido dos clientes pela gerência.
Desde os anos 70 quando os casos de acidentes de trabalho e violência laboral aumentaram em São Paulo, em paralelo ao crescimento da indústria da construção civil, esse assunto é ignorado. Quantos peões caíram de obras e ficou por isso mesmo?
A diferença é que seja na violência policial ou na violência laboral – pra pegarmos esses dois exemplos, há vários outros – a ficha tem de cair, e a experiência dos últimos 30 ou 40 anos prova isso. Não vamos conter esse morticínio criando protocolos de atuação da polícia ou criando direitos trabalhistas.
A máquina precisa parar, porque a lógica dessa máquina é moer gente. E é nesse sentido que alguns autores, e isso é visto como exagero, tendem a defender que em números absolutos de atuação do aparelho repressivo as democracias de hoje reproduzem situações ainda piores que o horror nazista pintado pelos filmes de Hollywood.
O que são as gigantescas periferias de Nova Deli, Johanesburgo, São Paulo, Rio de Janeiro, Caracas, Buenos Aires, Santiago do Chile, Lagos e muitas outras que têm se levantado? Nesses lugares, o nível de violência, de pauperismo, de sofrimento não fica atrás de nenhum campo de concentração nazista ou gulag stalinista, só que a lógica da espetacularização, a superativação do aparelho comunicacional, faz com que as pessoas achem mais importante ficar discutindo ‘nazismo versus stalinismo’ do que pensar o que essa democracia produz hoje. E aí chame do nome que quiser. Temos que parar essa merda. E o que vamos fazer depois eu também não sei, não sou profeta, não sou vanguarda, mas o diagnóstico é esse.
Correio da Cidadania: Pra finalizar, o que comenta da situação de pandemia que atravessamos?
Acácio Augusto: Já estamos caminhando para os 200 mil cadáveres, devidamente contados e empilhados. Só que chegamos nisso empilhando 65 mil por ano de morte violenta. 65 mil cadáveres por ano! Na sua grande maioria jovens, negros, das periferias, trabalhadores – sejam do regime formal, informal ou do regime ilegal, que é outro assunto que se fala pouco.
Um moleque que trabalha em ‘lojinha de quebrada’ é trabalhador, ele tá ali como um comerciante qualquer, ganhando mal também, mesmo que ganhe um pouco melhor do que o vizinho que trabalha no mercado. Quem lucra com isso são as máfias que estão lavando dinheiro nos bancos. Por que ninguém vai invadir banco pra saber como estão lavando o dinheiro do tráfico? É mais fácil correr atrás de um moleque de havaiana e bermuda da Ciclone.
* A entrevista foi gravada antes do assassinato de João Alberto Silva Freitas, espancado por seguranças em uma loja do Carrefour na cidade de Porto Alegre em 20 de novembro.
Parte 1:
Link para o trabalho do entrevistado
LASintec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento – EPPEN/UNIFESP)
Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.