Correio da Cidadania

O câncer político e social da América Latina e a metástase brasileira

0
0
0
s2sdefault

A América Latina que sonhava com um “outro futuro possível” acabou dando uma guinada brusca e mergulhou numa amargura política que repercute em caos social. Em tempos de pandemia, a doença que já era crônica se acentua. Nesse sentido, a metáfora do professor Fabio Luis Barbosa dos Santos é muito ilustrativa. “A América Latina tem câncer. O bolsonarismo é a sua metástase mais aguda. A aspirina progressista alivia sintomas, sem combater suas causas”, diz, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU e reproduzida neste Correio.

A fala do professor revela que, ao contrário do que se possa imaginar, essa doença não surge com o avanço da extrema direita sobre as conquistas da esquerda ao Sul do continente. Na verdade, esse é só o sintoma mais visível e radical de algo que já vinha ocorrendo. No caso do Brasil, a derrubada do PT é muito clara nesse sentido. “Os militares, os bancos, o PMDB, o vice-presidente Michel Temer, o neopentecostalismo, as empreiteiras, o empreendedorismo, a passividade, foram todos alimentados e cultivados, em seu momento, pelos governos petistas”, observa.

É por isso que Fabio Luis insiste que a questão vai além do binômio esquerda e direita, da volta de um ou derrota de outro, pois ambos operam numa mesma lógica. “O progressismo é, na melhor das hipóteses, o braço esquerdo da ordem. E os Bolsonaros deste mundo são seu braço direito. O que está em jogo na disputa entre progressismo e direita são diferentes formas de lidar com a agudização das tensões no neoliberalismo”, explica.

Por isso, seja no Brasil ou em outros países da América Latina, vê a retomada progressista apenas como essa “aspirina” contra a doença. Afinal, “durante a onda progressista, acreditou-se que o futuro era o Brasil petista, que exportava tecnologias de governo de populações empobrecidas para o mundo. Hoje está claro que o futuro era a parapolítica colombiana, que exporta tecnologias de repressão para o próprio Brasil e foi justamente isso que nos trouxe a esse estágio”.

Para Fábio Luís, “enquanto o progressismo se propõe a gerir a crise, os bolsonarismos não se propõem a fazer gestão alguma: eles governam por meio da crise. Enquanto uns procuram o freio, outros pisam no acelerador. Mas ninguém questiona o trilho”. Ao longo da entrevista, embora trate muito da conjuntura brasileira, analisa a realidade de outros países e evidencia que essa é uma lógica presente na Argentina, no Equador e em outros lugares.

Mas qual a saída? Seja de um lado ou de outro, para ele, é preciso encarar que “vivemos uma crise ecológica que coloca em risco a saúde do planeta, explicitada pela pandemia”. Além disso, de uma vez por todas, é preciso romper com o colonialismo sobre a América Latina, algo que entende não só sob o aspecto político ou econômico, mas como “um colonialismo da vida”, que se coaduna com as lógicas extrativistas do século 21. “É preciso revolucionar a relação com a natureza. Isso exige se livrar da colonização da vida, pelo valor. Uma ecologia anticapitalista se torna, literalmente, questão de vida ou morte”, aponta. E provoca: “como sairemos deste câncer? A cura não se conhece. Será preciso imaginar e fazer o novo. Este novo terá que ser mais e não menos radical do que no passado”.

Fabio Luis Barbosa dos Santos é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo - USP, professor da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina - Prolam/USP. Também coordena o programa Realidade Latino-Americana, que há sete anos leva estudantes para uma imersão crítica em diferentes países do continente. Com este projeto, organizou os livros Cuba no século XXI: dilemas da revolução (São Paulo: Editora Elefante, 2017), México: desafios do progressismo na fronteira imperial (São Paulo: Editora Elefante, 2019), entre outros. Também é autor de Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016) (São Paulo: Editora Elefante, 2019).

Confira a entrevista a seguir.

Como o senhor analisa o momento que estamos vivendo na América do Sul, especialmente em termos políticos, sociais, econômicos e sanitários?

Fabio Luis Barbosa dos Santos: Mesmo antes da pandemia, vivemos um agravamento da crise social na América Latina. E este agravamento se expressa, politicamente, em um esgotamento do progressismo. É um duplo esgotamento, na medida em que o progressismo foi percebido de modo diferente pelos de cima e pelos de baixo.

Entre os de cima, o progressismo se esgota como uma via de gestão da crise; entre os de baixo, como alternativa civilizatória. Neste quadro, novas formas de gestão desta panela de pressão que é a América Latina estão sendo gestadas. Mas também, múltiplas rebeliões.

O que mudou? Esta inflexão resulta de uma conjunção de fatores sociais, políticos e econômicos. A gramática comum é: uma crise econômica, que se expressa como recessão e/ou inflação, no contexto de desaceleração do boom das commodities; no social, a legitimidade do progressismo foi colocada em xeque (entre os de cima e entre os de baixo); no plano político, cresceu um mal-estar na direita convencional, diante da perpetuação do progressismo no poder. A linguagem deste mal-estar é denúncias de corrupção, o que denota uma disputa de poder mais do que de projeto.

Esta reação foi favorecida pelo contexto internacional hostil, como mostrou o aviltante reconhecimento do golpista Guaidó na Venezuela pelos Estados Unidos e pela maioria dos países da União Europeia.

Esta gramática comum tem uma expressão particular em cada país. Darei o exemplo brasileiro: a conjunção de junho de 2013 (uma explosão social), dos escândalos de corrupção (abalando a política) e da recessão econômica a partir de 2015, modificaram o jogo das classes dominantes. Transitaram da aposta em um neoliberalismo inclusivo, para um neoliberalismo autoritário; passaram da ênfase na conciliação, para a guerra de classes. Para além dos personagens, é este o pano de fundo do impeachment de Dilma Rousseff, da prisão de Lula e da eleição de Jair Bolsonaro.

Dada a atual configuração política da região, qual a importância de analisar os processos internos dos países pelo prisma regional?

Fabio Luis Barbosa dos Santos: Visto pelo prisma regional, o Brasil tem um lugar de destaque, pois responde por cerca de metade do território da América do Sul, e metade do PIB da região. A rigor, a “onda” progressista decola com a posse de Lula e Cristina Kirchner [na Argentina] em 2003. Essas vitórias incentivam a radicalização do bolivarianismo, que superava uma tentativa de golpe em abril de 2002. Se o chavismo foi a vanguarda do progressismo, o Brasil foi o seu motor.

No final de 2015, o bolivarianismo sofreu uma derrota acachapante nas urnas, Mauricio Macri venceu na Argentina e, no ano seguinte, Dilma foi derrubada. Agora, cinco anos depois, o bolivarianismo ainda se segura no poder, o kirchnerismo voltou à Casa Rosada (embora na vice-presidência) e, no Brasil, Lula parece ressuscitar. É possível argumentar que o progressismo ainda vive, embora cada vez mais resignado a um papel de mal menor.

Mas o ponto a enfatizar é o seguinte: o sentido do movimento mudou. Quando Lula deixou a presidência, em 2010, a Colômbia de Uribe, pioneira na política de ódio na região, se via constrangida a se integrar à Unasul [União de Nações Sul-Americanas], sob o risco de ostracismo regional.

Dez anos depois, o continente que tinha como farol a paz lulista se percebe desaguando no estado de exceção permanente colombiano. Durante a onda progressista, acreditou-se que o futuro era o Brasil petista, que exportava tecnologias de governo de populações empobrecidas para o mundo. Hoje está claro que o futuro era a parapolítica colombiana, que exporta tecnologias de repressão para o próprio Brasil.

O quadro se complica quando constatamos que a militarização da política nos marcos da degradação social tem sua expressão mais dramática na Venezuela. Esta situação ilustra que a guinada antidemocrática é geral, ou seja: ela inclui os processos onde o progressismo ainda é poder, como mostra o orteguismo na Nicarágua.

Isso exige analisar a tendência em direção a formas mais violentas da economia e da política, não como uma reação ao progressismo, mas como um desdobramento dele. Não como uma guinada de 180 graus, mas como uma metástase.

Afinal, se o país onde a corrosão social e a militarização estão mais avançadas é aquele onde o progressismo fincou raízes mais profundas e ainda está no poder, então precisamos entender como o progressismo, por sua própria dinâmica, alimentou tendências contrárias às aspirações de mudança com que originalmente encarnou.

Qual sua análise sobre o quadro da esquerda na América Latina? Em que medida essa perspectiva política se coloca como alternativa viável para superação do estado de crises?

Fabio Luis Barbosa dos Santos: Vivemos paradoxos. O progressismo fora do poder se converteu em uma ideologia restauracionista, que defende a volta a um passado idealizado. Como o caminho dessa volta é eleitoral, exige-se respeito pela institucionalidade burguesa, por meio da qual chegaram ao poder no passado. Daí o mundo de cabeça para baixo em que vivemos: a subversão da ordem virou uma política da direita, enquanto a esquerda defende esta ordem.

Isso explica, por exemplo, por que Lula e o PT foram contra o impeachment de Bolsonaro na pandemia, até o momento em que isso se tornou carta fora do baralho de Brasília. Olhando para nossos vizinhos, observamos a mesma lógica. Quando o Frente Amplio foi derrotado por estreita margem nas eleições em 2019 no Uruguai, o então presidente Tabaré Vázquez se apressou em esclarecer que seu partido “não trabalhará para que caia este governo (Lacalle Pou)” e que o Frente “tem que demonstrar que é uma força política séria e responsável”. A esquerda da ordem aguarda, respeitosamente, o momento de voltar.

Argentina e Uruguai encarnam de modo explícito este progressismo responsável, que se apresenta como uma alternativa da ordem, posição que o PT ambiciona recuperar no Brasil. A expectativa do partido é que Bolsonaro se dissipe como um pesadelo e as eleições voltem a ser disputadas dentro da normalidade burguesa, nas quais tem um candidato sempre no páreo.

No entanto, esta política tende a perder eficácia, porque como expliquei, o jogo da classe dominante mudou, tornando o lulismo anacrônico. E está mudando em toda a região, porque as condições objetivas (crescimento econômico) e subjetivas (contestação ao neoliberalismo) que deram sentido ao progressismo, se foram. O progressismo pode se reinventar como farsa (no Equador ou na Bolívia) ou como tragédia (na Venezuela); pode até ser reprisado, como um filme que entra em cartaz com atraso (no México); mas o progressismo como horizonte de mudança, está sepultado.

No caso brasileiro, ao perder lastro na realidade, o lulismo arrisca a se transmutar em uma aposta salvífica: a esperança de que o líder voltará triunfante antes do juízo final para evitar o apocalipse, pathos exalado na exortação do respeitado líder do MST, João Pedro Stédile: “Lula tem de ser nosso Moisés, convencer o povo a atravessar o Mar Vermelho. Não há outro personagem que possa cumprir esse papel”.

Em um tempo de expectativas decrescentes, diferentes nuances de progressismo messiânico canalizam a expectativa de mudança rumo ao passado, mobilizando uma população que ora pelo mal menor tanto nas suas vidas como na política, abaixando a cabeça com resignação, frente à versão latino-americana do fim da história.

Indo direto ao ponto: uma saída desse estado de crise vinda de Brasília ou da Casa Rosada, vinda do MAS [Movimento ao Socialismo] ou do correísmo, é tão improvável quanto a proeza do barão de Münchhausen, que saiu do pântano em que se afundava, puxando os próprios cabelos.

Em que medida a política de nosso tempo supera a dualidade e polarização entre esquerda e direita? O que, de fato, está em jogo?

Fabio Luis Barbosa dos Santos: Entendo que as posições concretas importam mais do que seus rótulos. Na América Latina, é preciso se contrapor à devastação mercantil dos territórios e de suas populações – o chamado “extrativismo”. Isso por dois motivos. Primeiro, porque vivemos uma crise ecológica que coloca em risco a saúde do planeta, explicitada pela pandemia. É preciso revolucionar a relação com a natureza. Isso exige se livrar da colonização da vida, pelo valor (pelo capital, que é valor que se valoriza). Uma ecologia anticapitalista se torna, literalmente, questão de vida ou morte.

Em segundo lugar, porque a exportação primária é a expressão por excelência da lógica colonial. Nossas sociedades foram moldadas por uma lógica mercantil, onde a produção da riqueza não responde aos anseios e necessidades da sua população – o exemplo mais extremo foi a escravização de africanos. O extrativismo é a lembrança presente de que nossas sociedades nasceram como um negócio, e se reproduzem como um negócio.

Permita-me dar um passo atrás, para entender por que no século 21 a pressão extrativista se intensificou. Este fenômeno está ligado à crise estrutural do capital que se evidencia desde os anos 1970. Diante da impossibilidade de retomar ciclos de acumulação expandida (como nos trinta anos após a Segunda Guerra), duas tendências se intensificaram: a financeirização, que é uma tentativa de empurrar com a barriga o problema da acumulação; e a acumulação por espoliação, que tem, entre outras expressões, o extrativismo. Na América Latina, ditadura do ajuste estrutural e extrativismo são duas faces concretas desta dinâmica global, que tem levado o planeta à exaustão, e as sociedades, à barbárie.

Se os progressismos não enfrentam nem uma coisa nem outra – se favorecem o extrativismo e são cúmplices da tirania das finanças – por que dizemos que são de esquerda? Certamente, isso só alimenta o desprestígio daquilo que a esquerda um dia encarnou: um horizonte de mudança radical.

O progressismo é, na melhor das hipóteses, o braço esquerdo da ordem. E os Bolsonaros deste mundo são seu braço direito. O que está em jogo na disputa entre progressismo e direita são diferentes formas de lidar com a agudização das tensões no neoliberalismo. O progressismo se propõe a gerir estas tensões, por meio de um arsenal de best practices avalizadas pelo Banco Mundial. É uma contenção da crise. Já os Bolsonaros deste mundo admitem o caráter autofágico do neoliberalismo (uma luta de todos contra todos), e prometem armar as pessoas, para que elas se defendam, atacando – como ele próprio faz. É uma aceleração da crise.

Em outras palavras, enquanto o progressismo se propõe a gerir a crise, os bolsonarismos não se propõem a fazer gestão alguma: eles governam por meio da crise. Enquanto uns procuram o freio, outros pisam no acelerador. Mas ninguém questiona o trilho.

Quais os limites das experiências de esquerda na primeira década dos anos 2000, tomando como exemplo Equador, Bolívia e Brasil? Como isso impactou a ascensão de perspectivas políticas que ameaçam até a ideia de democracia na América Latina?

Fabio Luis Barbosa dos Santos: A narrativa progressista entende que está em curso uma reação às conquistas avançadas em seus governos, levada a cabo pelos inimigos de sempre – a direita, os Estados Unidos etc. Com Daniel Feldmann, analiso os limites do progressismo por um ângulo distinto, enfocando a sua dinâmica e as suas contradições. Em outras palavras, explicamos a derrocada do progressismo por ele mesmo: pelo mundo que a onda produziu, e pelo seu movimento.

Nossa hipótese é que, apesar das intenções e desejos de seus líderes, a tentativa progressista de conter um processo histórico de dessocialização nos marcos da crise estrutural do capitalismo, implicou em práticas e políticas que terminaram acelerando este mesmo processo, em uma dinâmica que nomeamos como uma “contenção aceleracionista”. Esta dinâmica, por sua vez, reforça traços socioeconômicos que remetem à origem colonial (como o extrativismo), resultando em um segundo paradoxo: um “progressismo regressivo” que, no entanto, não se confunde com uma volta ao passado, porque a integração mediada pelo consumo promovida por estes governos (via “Bolsas Famílias” e expansão do crédito popular) conformou modalidades de “neoliberalismo inclusivo”, que corroboraram e aprofundaram a razão neoliberal.

Contenção aceleracionista, progressismo regressivo e neoliberalismo inclusivo são as chaves para examinar as contradições do progressismo e compreender por que a onda não abriu caminho para um mundo melhor.

Esta perspectiva enfatiza as condicionantes estruturais de uma crise cujas raízes antecedem o próprio neoliberalismo, e cujo alcance é mais amplo do que a América Latina. Não se trata de um exercício de julgamento da história, identificando culpados e seus erros, mas de compreender os limites da aposta progressista, a despeito da intenção de seus protagonistas.

A ideia fundamental é que os meios com que ainda se pode conter a crise social no século 21 são, ao mesmo tempo, aceleradores deste desabamento. A contradição desta lógica, em que a tentativa de conter o movimento dessocializante não impede a sua aceleração, pois implica em fortalecer justamente o que se pretende conter, pode ser constatada em múltiplos planos no caso brasileiro.

Vejamos: o ex-presidente mundial do BankBoston, Henrique Meirelles, que renunciou como deputado tucano em 2003 para comandar o Banco Central por oito anos sob Lula e que, depois, foi ministro da economia sob Michel Temer; a tentativa do governo Lula de fazer ligação direta com o “baixo clero” no congresso, que desatou o escândalo do “mensalão” em 2005, respondido com mais espaço para o PMDB no governo, levando o partido a indicar o futuro golpista Michel Temer por duas vezes como vice-presidente na chapa de Rousseff; o apoio de lideranças neopentecostais às administrações petistas, que resultou em recuos na agenda comportamental e na nomeação de ministros evangélicos como Marcelo Crivella; os militares enviados ao Haiti na intenção de fazer do Brasil um “global player”, que em seguida implementaram o know-how adquirido em missões de garantia da lei e da ordem notadamente no Rio de Janeiro, e que agora, formam o primeiro escalão do governo Bolsonaro; as construtoras, que não hesitaram em mandar para a cadeia, em delações reais ou imaginárias, aqueles que lhes abriram caminho para ganhar dinheiro como nunca; isso para não falar nos jovens que encararam o precariado como fase transitória de uma ascensão social que passava pelo crédito e a universidade privada mas que, uma vez atingidos pela crise e o desemprego, transformaram a esperança em ódio; ou de movimentos sociais envolvidos por políticas visando neutralizar sua combatividade, em lugar de implementar suas bandeiras (como a reforma agrária e urbana), resultando, treze anos depois, em um campo popular dividido, debilitado e desprestigiado.

Em resumo, os militares, os bancos, o PMDB, o vice-presidente Michel Temer, o neopentecostalismo, as empreiteiras, o empreendedorismo, a passividade, foram todos alimentados e cultivados, em seu momento, pelos governos petistas. Neste quadro, a figura de imagem mais adequada da relação entre a defenestração do PT e a ascensão de Bolsonaro não é uma guinada de 180 graus, mas uma metástase, na medida em que forças e interesses corrosivos, cujo poder nunca foi desafiado e que pareciam controladas sob o petismo, se espalharam de forma inconteste pelo tecido nacional.

Uma dinâmica comparável pode ser analisada no Equador, na Bolívia e na Venezuela. O paradoxo aqui que se revela de modo mais evidente no caso venezuelano, é que a força do progressismo, nesses casos, está relacionada à posição dominante que assumiu nas instituições do estado. Em outras palavras, foram os aspectos antidemocráticos (ou antirrepublicanos) destes processos o que os manteve na órbita do poder.

A título de exemplo, recordemos as manobras de Morales para aprovar sua quarta candidatura consecutiva na Bolívia, e de Maduro para impugnar três deputados nas eleições de 2015, privando a oposição de maioria absoluta no congresso.

O que a experiência equatoriana revela acerca dos limites do progressismo?

Fabio Luis Barbosa dos Santos: Recapitulemos as linhas gerais da experiência equatoriana: depois de dois mandatos como vice-presidente de Rafael Correa (2007-2017), Lenin Moreno elegeu-se como seu sucessor em uma acirrada disputa em 2017. A seguir, em seu empenho por diferenciar-se da figura dominadora de Correa, Moreno aliou-se à direita tradicional e aos Estados Unidos. No processo, entregou à polícia Julian Assange, asilado na embaixada equatoriana em Londres desde 2012.

Em meio a acusações mútuas e processos por corrupção, Correa deixou o Alianza País e fundou um novo partido em 2018. No mês seguinte, um referendo alterou a constituição para impedir que um ex-presidente concorra a um terceiro mandato, seguindo o modelo dos Estados Unidos. O alvo era claro. Enquanto isso, Moreno intensificou a agenda do ajuste estrutural, até que a escalada de austeridade teve um ‘basta’ das ruas em outubro de 2019, em uma revolta social protagonizada por indígenas.

Entre as disputas no topo, a conversão de Alianza País e a rebelião popular, abriu-se espaço para uma novidade política à esquerda. Aí reside a singularidade do que ocorre no Equador: o novo eleitoral não tem o cheiro do fascismo, como no Brasil, nem o bolor do velho, como na Bolívia. A candidatura de Yaku Pérez pelo movimento Pachakutik defende a natureza, os territórios e a água. Em uma palavra, se contrapõe ao desenvolvimentismo latino-americano.

Difamado pelo progressismo internacional como um “cavalo de troia da direita”, Pérez esteve a um fio de passar para o segundo turno. Seus apoiadores estão convencidos de que houve fraude, em meio a um acordo entre o correísmo e o candidato da direita. Não tenho elementos para afirmar se houve fraude ou não, mas a demora em apurar o último per cento dos votos, quando Pérez liderava, e a incontestável força que esta candidatura teria no segundo turno, obrigam a considerar seriamente a acusação.

Não idealizo o movimento Pachakutik nem Yaku Pérez. Mas para quem se preocupa com o que acontece no planeta, tanto na ecologia como na política, está claro que eles são parte da solução. Por outro lado, a difamação que sofrem explicita as tintas cada vez mais autoritárias e conservadoras da retórica progressista internacional, que tem como foco exclusivo a disputa do poder estatal.

Falando sobre o Paraguai, como ler as manifestações de rua que vêm ocorrendo em decorrência da crise sanitária? A pandemia foi o estopim de algo que vem de mais tempo?

Fabio Luis Barbosa dos Santos: As manifestações no Paraguai refletiram um descontentamento social que transbordou com a gestão corrupta e incompetente da situação sanitária do país, no contexto da pandemia. Os hospitais estão lotados, faltam insumos de todo tipo e pacientes enfrentam contas caríssimas, apesar de o governo ter se endividado massivamente a pretexto de combater a peste. A violência da repressão policial escalou os protestos, que são autoconvocados e exigiram a renúncia do presidente colorado Mario Abdo.

No entanto, o Partido Colorado, que domina a política nacional há oitenta anos – com exceção do breve governo Lugo (2008-2012) –, tem maioria no congresso. Dentre essa maioria colorada, cerca de metade é controlada pelo ex-presidente Horacio Cartes, apontado por muitos como o mafioso por trás da chacina de Curuguaty e da articulação do golpe contra Lugo.

Em resumo, constata-se também no Paraguai um agudo divórcio entre o sentimento popular e a política parlamentar, em uma situação em que a atuação da esquerda institucional tem sido pouco relevante. Entretanto, na falta de uma alternativa radical, esta rebeldia se vê refém de um congresso subordinado a interesses econômicos mafiosos, que controlam um Estado dirigido por um partido que encarna uma versão extrema de autocracia burguesa no continente.

Como compreender a situação da Bolívia, onde, depois do golpe, o Movimento ao Socialismo voltou ao poder no ano passado, mas agora em 2021 tem a vitória de seus dissidentes e da oposição nas eleições locais?

Fabio Luis Barbosa dos Santos: A situação boliviana é complexa e motivo de controvérsia na esquerda. Para entender a situação que levou à derrocada de Morales, é importante ter claro alguns elementos. Em primeiro lugar, não se trata de uma disputa ‘esquerda contra direita’; ao menos desde 2011, a base popular do governo estava rachada – o ponto de inflexão foi a repressão à marcha contra a construção de uma rodovia no parque Tipnis.

Como no Equador de Correa, o governo reagiu a esta fratura de modo intolerante, perseguindo, difamando e dividindo organizações e lideranças críticas. Ao mesmo tempo, consolidou alianças com setores políticos conservadores, com o agronegócio, com as multinacionais que exploram hidrocarbonetos e minérios. Em suma, ninguém no andar de cima estava perdendo dinheiro na Bolívia.

Neste processo, o MAS consolidou-se como poder na mídia, no judiciário, na polícia e mesmo na relação com as Forças Armadas. Este projeto de poder centrou-se cada vez mais na figura de Evo Morales – ‘evismo, o nacional-popular em ação’, como dizia o ideólogo do regime, o vice García Linera. Foi este o contexto em que Morales insistiu em se candidatar pela quarta vez consecutiva, apesar da derrota sofrida no referendo popular sobre esta questão.

Neste contexto, quando explodiram as denúncias de fraude na eleição em 2019, não foi a direita que tomou as ruas (embora ela também estivesse presente), mas, sobretudo, uma juventude para quem o MAS sempre foi poder. Esta reação desestabilizou o governo, criando uma situação que a direita mais recalcitrante tentou aproveitar.

Porém, o governo ilegítimo e impopular de Jeanine Añez foi marcado pela repressão, a corrupção e a incompetência, ressuscitando o espectro da discriminação étnica em um país profundamente indígena. Como resultado, foi largamente odiado, à maneira de Temer no Brasil.

Entretanto, o clima da vitória eleitoral retumbante do MAS nas eleições do ano passado não deve ser confundido com a sua primeira vitória em 2006. Naquele momento, Morales se elegeu em um contexto de extraordinária conflituosidade social, inaugurando um governo que anunciava ser “dos movimentos populares”. Desta vez, o clima é de resignação, de voto pelo mal menor, em meio a um profundo mal-estar. Ao contrário de 2006, em 2020 poucos acreditam que um futuro melhor se aproxima.

Ao mesmo tempo, cabe observar que o triunfo eleitoral complica a narrativa golpista: se o MAS era tão perturbador para a direita e o imperialismo, como explicar seu retorno um ano depois? Distante de uma conspiração internacional, evidencia-se que o governo Morales sucumbiu a uma espécie de “implosão por acumulação”: caiu sob peso do poder que acumulava de maneira monocrática, há quinze anos. Agora, seu partido tenta se repaginar, mas a tensão está no ar.

No Brasil, enquanto se debatia, ainda sob muitas dificuldades e divergências, a necessidade de uma frente de esquerda para responder ao bolsonarismo, as condenações do ex-presidente Lula são suspensas. Quais os riscos de essa novidade acirrar a polarização e enfraquecer a concepção dessa frente? Como fugir dessa polarização?

Fabio Luis Barbosa dos Santos: Em primeiro lugar, é preciso ter clareza de que há muito tempo o PT se tornou parte da ordem: o seu braço esquerdo. Isso quer dizer que, há muito tempo, o tabuleiro de Lula e do PT passa longe do povo: está em Brasília. O PT e Lula são parte deste jogo, e não do jogo da mudança.

Este jogo é pautado pelo cálculo eleitoral, que a ideologia do partido vende como interesse popular. Este cálculo explica aparentes contradições – por exemplo, se aliar a partidos da base golpista um mês depois do impeachment; frear o “fora Temer”, na certeza de que Lula venceria no ano seguinte; a posição inicial contrária ao impeachment de Bolsonaro etc. No limite, este cálculo leva ao raciocínio de que um governo Bolsonaro desastroso favorece as chances da oposição nas próximas eleições.

Isso não quer dizer que eu seja por princípio contrário a uma frente contra Bolsonaro, ou a uma aliança da esquerda com o PT. Mas, sim, que é fundamental entender com quem se está aliando, qual é o jogo e como ele é jogado.

Para entender os motivos e as consequências da volta de Lula a este jogo, é preciso desvelar os bastidores deste mundo, que Gramsci chamava de “pequena política”. Bolsonaro será favorecido com a ressurreição de um defunto político, que lhe devolverá um inimigo imaginário? No outro extremo, a ressurreição do partido continuará a bloquear a emergência de alternativas que contestem a ordem? O PSDB não teria interesse em prolongar com aparelhos a vida de uma Nova República que colaborou para enterrar, sem perceber que também sepultava a si próprio?

A pequena política não é o foco da minha atenção analítica, mas sim a mudança social. Deste ponto de vista, faço duas observações.

Em primeiro lugar, polarização não é algo ruim em si: ao contrário, uma polarização que explicite as fissuras do país e politize o debate público seria salutar. O contrário da política do ódio não é a política de paz e amor, pois o ódio é um dado social irrefutável. A questão é como odiar o existente, em nome de algo melhor. Extrair do ódio potência criadora. Só assim, poderá se transformar um dia, quem sabe, em amor.

Por outro lado, uma polarização Lula versus Bolsonaro, na linha do que foi a polarização Aécio versus Dilma em 2014 significa uma infantilização da política, que tem um potencial regressivo perigoso, como agora sabemos. Todo mundo conhece quem um dia votou no Lula, e agora elegeu Bolsonaro.

A segunda observação é que uma vitória eleitoral progressista, na melhor das hipóteses, remediará a crise civilizatória que vivemos. Podemos imaginar que, se Haddad fosse presidente, estaria fazendo o seu melhor para construir uma grande arca salvadora no dilúvio da pandemia, sem colocar em xeque quaisquer dos parâmetros estruturais da reprodução neoliberal no Brasil. Porque se o fizesse, compraria briga e o PT não é um instrumento político para brigar, mas para conciliar.

Em suma, faria o melhor possível, onde o possível é pouco. Enquanto isso, a dinâmica social autofágica, que faz do cotidiano uma luta de todos contra todos, em um mundo onde o trabalho se torna escasso e as balas abundam, se agravaria.

Que relações podemos estabelecer entre o momento político e social de Peru, Bolívia, Equador, Paraguai e agora Brasil, considerando também o processo da constituinte no Chile? O que essas experiências dizem à dita esquerda de nosso tempo?

Fabio Luis Barbosa dos Santos: No Chile, no Peru e na Colômbia, países que passaram à margem do progressismo, a luta das ruas exige novas constituições. Embora seja inegável a importância de romper com a institucionalização da razão neoliberal, é preciso recordar que Venezuela, Bolívia e Equador trilharam caminho similar no começo do século. Hoje, está claro que a mudança constitucional foi impotente para refundar as bases da reprodução social, que continua sendo a produção de valor.

O xis da questão é que o poder do capital é extraparlamentar: a dinâmica do valor que se valoriza, determina os fundamentos da reprodução social. Uma reprodução social que, no mundo atual, se tornou uma máquina de produzir medo, ódio e indiferença. Daí que o progressismo, a despeito das boas intenções, não abriu caminho para um mundo melhor.

Vistos sob este prisma, os acontecimentos chilenos são, por um lado, inspiradores: os corpos saíram das telas e foram para as ruas, sem ter um passado recente a resgatar – no Chile, não há lulismo ou peronismo, repaginado como kirchnerismo. A rebeldia olha para a frente. Portanto, há mais espaço para a imaginação e a experimentação do novo.

Por outro lado, o desafio chileno e das rebeliões do nosso tempo é como transformar esta “grande recusa” em uma proposta alternativa. Deste ponto de vista, a demanda constitucional é sintoma de falta de ideias coletivas. O que vem depois da recusa, na imaginação rebelde do século 21? É preciso cuidado para que as assembleias constituintes não se limitem a tirar a política das ruas, para devolvê-la aos parlamentos. O risco é reeditar o progressismo, por outros meios.

Está claro que uma rebelião como a chilena não é a solução, mas é uma premissa para sair do impasse. É um sinal de saúde, pois os corpos nas ruas carregam subjetividades que romperam com o anestesiamento, e podem ser mobilizadas por uma mudança radical. Parte do drama é que, no momento, a radicalidade está do outro lado: em um mundo de expectativas decrescentes, aprendemos que é possível odiar o existente em nome de algo pior.

Deseja acrescentar algo?

Fabio Luis Barbosa dos Santos: Em resumo: a América Latina tem câncer. O bolsonarismo é a sua metástase mais aguda. A aspirina progressista alivia sintomas, sem combater suas causas.

Como sairemos deste câncer? A cura não se conhece. Será preciso imaginar e fazer o novo. Este novo terá que ser mais e não menos radical do que no passado. No momento, é este o desafio intelectual e político ao qual eu e muitos outros (assim espero!) se dedicam. No plano pessoal, trabalho em um livro nesta trincheira.


João Vitor Santos é jornalista do Portal IHU, onde esta entrevista foi originalmente publicada.

0
0
0
s2sdefault