Correio da Cidadania

Um encontro com Marcelo Freixo

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Glenn: A ida de Freixo para o PSB mostra uma nova face do PSOL -  CartaCapital
A tragédia de nosso tempo consiste no fato de que apenas o movimento eleitoral é observado com lupa pelo que restou da esquerda. Assim, qualquer movimento eleitoral - da legislação às candidaturas, das alianças ou das dissidências - recebe minuciosa atenção dos chamados dirigentes e mesmo do militante devoto enclausurado num comitê eleitoral real ou fictício. Por sua vez, o movimento das classes, da economia, da ideologia e da cultura são, quase sempre, ignorados pela esquerda que se fez liberal ao longo das últimas três ou quatro décadas.

A carta da vez sob severa observação é a decisão de Marcelo Freixo de abandonar o PSOL e assinar filiação no PSB. A decisão - largamente amadurecida - está orientada por óbvio fim eleitoral: eleger-se governador do Rio de Janeiro. Ora, desde que se elegeu deputado federal, Freixo abandonou o discurso centrado nas causas (racial, gênero etc.) para assumir certa vocação universal expressa na luta pelos "direitos humanos", o direito à vida, o direito de ir e vir, entre outros mandamentos da doutrina liberal. A decisão não é fruto do improviso e, embora marcada por contingências, ampara-se também em problemas reais que cobram solução.

Em síntese, Freixo postula que o sentido da política naquele estado que outrora foi o tambor do Brasil, resume-se na luta da "civilização contra a barbárie".

O retorno de Lula à disputa presidencial de 2022 - até agora assegurada pelos tribunais por circunstâncias políticas muito particulares que podem desaparecer - obviamente apressou a decisão de Freixo. O PSOL, no entanto, tornou-se um cobertor cada dia mais curto para as ambições de Freixo, uma vez que o partido também está fortemente acometido pelas mesmas razões que levaram o deputado carioca ao PSB.

Ainda que balbuciando justificativas morais, na prática, o PSOL contesta a saída, mas, na realidade também tem um encontro marcado com Lula. Na verdade, o PSOL está dividido entre aqueles que querem Lula já no primeiro turno e a ampla maioria, que votará no ex-presidente no segundo turno, caso o calendário eleitoral se confirme na plenitude.

A maioria no PSOL inclina-se nesse momento para fechar com Lula já no primeiro turno das eleições presidenciais. Nesse contexto, a despeito da vontade do militante socialista, o PSOL caminha para consolidar-se como um "puxadinho do PT". A decisão do diretório estadual do Rio de Janeiro em não reivindicar nos tribunais o mandato de Freixo – como também da executiva nacional do partido – obedece, finalmente, à logica dominante: todos estão, de alguma maneira, no mesmo barco.

Os desgostosos com a decisão de Freixo limitam-se a reivindicar certa independência programática no primeiro turno para negociar com Lula desde uma posição de força, como se, de fato, o candidato presidencial do PT desse ouvidos à esquerda. Ora, Lula jamais ouvirá a esquerda, especialmente porque essa é cativa de sua liderança eleitoral e não possui alternativa fora de seu alcance.

À maneira vulgar, Lula sabe que a polarização partidária que os educados liberais pretendem evitar obedece à lógica das situações extremas que emergiu na sociedade brasileira a partir da reeleição de Dilma. Não se pode, aparentemente, responsabilizar o PT por tal quadro, pois o partido - Dilma e Lula na cabeça - fizeram de tudo para não radicalizar, atuando sob a orientação de um espirito republicano burguês que somente existia em suas doces ilusões, num esforço quase suicida de preservar as instituições da república burguesa apodrecida – que já estavam em franca decadência.

No entanto, foi precisamente a tentativa de conciliar aquilo que de fato é irreconciliável, especialmente em tempos de crise, que nos trouxe aos impasses políticos atuais comandados pela ultradireita.

A consciência ingênua de Freixo consiste em supor que será possível enfrentar as milícias, o crime organizado, a corrupção e a ladroagem generalizada que afeta o Rio de Janeiro sem uma resposta igualmente radical para as consequências da emergência do capitalismo dependente rentístico do país que lá aparece sob a forma de decadência material e moral do antigo "tambor do Brasil".

Nesse contexto, alguns estados podem se defender melhor - inclusive pelo reduzido tamanho - mas tal possibilidade é vetada ao Rio, que não poderá encontrar uma saída fluminense fora do contexto nacional. É doloroso dizê-lo, mas é claro que uma crise ou desgraça qualquer em Manaus ou Floripa não tem o peso de uma crise carioca. Desde esse ponto de vista, as ilusões de Freixo que o levam a sair do PSOL não são lá muito diferentes da convicção daqueles que permanecem no partido.

Em décadas passadas a decisão de abandonar o PSOL seria tratada como "oportunismo eleitoral", "traição ao programa", entre outros epítetos ainda menos ilustres. No entanto, nas circunstâncias atuais, a mudança de partido não significa a mudança de trincheira, pois todos estão na vala comum da luta pela "democracia contra o fascismo". A divergência certamente ganharia contorno mais dramático se a adesão de Freixo a Lula ocorresse no período em que o PT estivesse no governo. A diferença agora é que o PT pode ser governo e o apetite eleitoral cresce na exata medida das pesquisas eleitorais que colocam Lula na disputa do segundo turno contra o protofascista Bolsonaro. Não resolve alertar que muitos meses se passarão até que essa possibilidade se efetue e que a crise é tão grave que tudo pode mudar. A intensidade da crise tem sido argumento precisamente daqueles que aderem sem rubor algum à enfadonha repetição da "alternativa" Lula.

A ilusão básica, comum entre os que saem do PSOL e aqueles que permanecem é, afinal, uma só: uma frente - a mais ampla possível - para enfrentar a direita, o fascismo, os milicianos etc. No Rio - tal como manda a tradição petista - a candidatura de Lula será aquela que passar no segundo turno. Com exceção de São Paulo, o mandamento petista é um só: entregar os anéis para preservar os dedos. Em consequência, entregar a disputa nos estados para formar palanques necessários à conquista da presidência.

Afinal, quando Lula não rifou candidatos próprios do PT sem cerimônia para alcançar seus fins nacionais? Ora, o Rio de Janeiro, há décadas, nunca deixou de ser mera moeda de troca de Lula nas articulações nacionais, como forma de contemplar políticos e partidos corruptos e eleitoreiros que possuem forte representação no estado.

Freixo sabe - ou vai descobrir - que Lula é treinado na arte de namorar com todos e casar com ninguém. Afinal, quem será o candidato do PSOL a governador nas circunstâncias atuais? A despeito de possíveis méritos, será alguém destituído de uma virtude decisiva: o PSOL, tudo indica, não terá candidato capaz de passar para o segundo turno. Freixo ocupará esse espaço eleitoral porque até agora expressa como ninguém a identidade do PSOL, razão pela qual, arriscará a vida para além do partido com certo conforto.

Creio, nesse contexto, que Freixo revela em sua ambição eleitoral todas as misérias de um político vulgar, mas, revela também, o dilema do PSOL, que, nascido para superar o fracasso histórico do PT expresso em sua decadência moral, política e programática, se limitou tão somente a figurar como "crítico" moral da esquerda liberal cuja expressão máxima ainda é o PT. Assim, o PSOL poderá ter um encontro marcado com Freixo em poucos meses.

Há muito escuto de amigos marxistas que não há outro caminho: o povo terá que experimentar Lula novamente para adquirir consciência de suas reais limitações, pois Dilma o livrou de um juízo histórico definitivo caso ele fosse - como de fato pretendia - sucedê-la ainda no segundo mandato que, como sabemos, foi concluído na destituição. Eu entendo o argumento, mas sempre recordo que a crise atual criou novo ambiente em que a repetição da fórmula Lula não possui aderência: antes que solução, a candidatura Lula será o caminho de aprofundamento da crise social, econômica e política e, no limite, permitirá mais força ao avanço da direita.

Alguém pode supor com seriedade que Lula e sua frente amplíssima apresentam uma solução para a crise terminal da república burguesa apodrecida em seus fundamentos? Afinal, Lula é capaz de elucidar os dilemas próprios de um capitalismo dependente rentístico, calibrando a luta nos marcos da ordem e, sobretudo, contra a ordem burguesa? Ora, todos sabemos que não!

Lula, Freixo e a maioria que permanece no PSOL ainda acreditam que a república atual possui virtudes que devem ser resgatadas e pelas quais vale a pena apostar nossas vidas. A direita encabeçada por Bolsonaro indica todos os dias o caminho da superação das misérias republicanas pela via de uma modalidade particular de terrorismo de Estado. A esquerda, ao contrário, reafirma todas e cada uma das ilusões que nos trouxeram precisamente para o beco aparentemente sem saída em que nos encontramos.

De resto, a opção por Lula - no primeiro ou segundo turno - manterá o que restou da esquerda cativo ao ex-presidente em nome de objetivos “superiores”. Aos olhos de milhões, no entanto, o apoio a Lula é a reafirmação do horizonte liberal na esquerda brasileira, algo bem distante das necessidades cada dia mais fortes e ainda pouco visíveis da revolução brasileira.

Nildo Ouriques é economista, professor da UFSC e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos.

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