As forças armadas e o governo Bolsonaro (2)
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- Nildo Ouriques
- 21/07/2021
A força do presidencialismo
Nas condições concretas do país, o presidencialismo é o único poder capaz de disciplinar as forças armadas. A renúncia do poder presidencial pela esquerda liberal – nos marcos do finado sistema petucano – em nome de um parlamentarismo corrupto e nocivo praticado pelo “presidencialismo de coalizão”, é responsável direta pela situação atual. No entanto, a história da América Latina – e do Brasil – ensina de maneira clara que o presidencialismo somente se sustenta com apoio na mobilização das massas de maneira permanente em direção a um objetivo estratégico de conquista do poder político.
A conquista do poder político jamais figurou no horizonte do nacional-reformismo de João Goulart, razão pela qual aquele notável movimento de massas sucumbiu diante da ofensiva da direita, consumada no golpe de 64 e na ditadura que se seguiu. Na Venezuela, ao contrário, o golpe cívico-militar de Hugo Chávez contra o governo constitucional de Carlos Andrés Perez tinha como objetivo a conquista do poder político. Após seu fracasso, o MBR-200 não retrocedeu; ao contrário, avançou no conceito da Revolução Democrática Bolivariana rumo ao poder, trilhando um caminho repleto de acidentes no interior de uma estratégia política que, finalmente, venceu com a eleição de Hugo Chávez.
A esquerda liberal se nutre da sociologia da ordem produzida no ambiente universitário e, em consequência, apenas assinala miseravelmente as limitações reais ou imaginárias da ação do caudilho, sem observar a função notável da liderança oriunda do movimento revolucionário. “Nossa realidade vital é grandiosa e nossa realidade pensada é mendiga”, dizia Jorge Luis Borges em janeiro de 1926. No Brasil, ainda não superamos essa sentença.
A ausência de uma política anti-imperialista nos partidos políticos da esquerda, em organizações sociais e também na intelectualidade, somente reforça o curso livre para o nacionalismo cosmético e funcional a Washington que ali se verifica. Nesse contexto, a eleição de Bolsonaro representa antes que o início de novo ciclo nacionalista, o resultado necessário da crise do sistema político brasileiro e da fase rentística do desenvolvimento capitalista. A virada ultraliberal que os militares assumem como horizonte político não ocorreu de maneira súbita! Apenas apareceu de maneira súbita e na única linguagem que a esquerda liberal pode entender: a interferência no processo eleitoral.
De fato, a presença de 11 mil militares – dos quais 4 mil da ativa – ocupando funções de governo nos três poderes da república burguesa, merece análise e atenção. Um conjunto de estudos de extração acadêmica que apenas começa a ser divulgados indica que essa hegemonia foi lentamente construída no interior das forças armadas na última década ou pouco antes. No entanto, não devemos afastar a análise de suas ações descoladas da dominação burguesa nas condições da crise que sofremos.
Assim como as forças armadas apoiaram a ditadura do grande capital e dela se beneficiaram dirigindo ou influenciando grandes projetos, igualmente atendem à demanda atual submetendo-se e dirigindo a agenda ultraliberal conduzida pela coesão burguesa sob a batuta de Paulo Guedes.
Portanto, a presença avassaladora dos militares em funções de governo, longe de representar apenas uma política da “boquinha” para complementação salarial numa típica operação de defesa coorporativa diante dos baixos salários, indica que a nova hegemonia burguesa inerente ao desenvolvimento capitalista rentístico foi também construída ao longo de muitos anos no seu interior.
A hipótese de Manuel Domingos Neto segundo a qual os militares se caracterizam na atualidade por uma posição coorporativa e que a oficialidade estaria orientada por uma “meritocracia de caserna” que tampouco o distinguiria de uma carreira de juiz ou procurador não consegue explicar o fenômeno. O estudioso alega também que os militares estão governados por uma “mentalidade neocolonial”, que somente pode ser explicada na trama da dominação imperialista estadunidense particularmente intensa no Brasil.
Afinal, após 1994, com a afirmação da hegemonia da fração financeira na coesão burguesa que dirige o país, o desenvolvimentismo foi batido historicamente, a despeito de pequenas iniciativas que, por sua natureza, antes de negar o avanço de rentismo, marcam precisamente sua força. O breve fortalecimento da indústria naval nos marcos da política petroleira do governo Lula, por exemplo, é uma clara indicação dessa debilidade tal como a lei da partilha que abriu a exploração do pré-sal aos capitais estrangeiros por iniciativa da presidente Dilma. Nenhuma dessas iniciativas poderia, portanto, criar uma “ala nacionalista” ou “legalista” no comando militar. A propósito, é significativo que num assunto tão estratégico como o controle nacional sobre o petróleo, os militares não se manifestaram diante do entreguismo praticado no governo de Dilma.
Portanto, o desinibido entreguismo de parte dos militares na atualidade e seu alinhamento automático como peça do domínio imperialista no Brasil é decorrência direta do entreguismo da burguesia brasileira e também um resultado da impotência dos governos progressistas em superar os marcos estritos do subdesenvolvimento e da dependência. Bolsonaro, nesse sentido, antes que precursor de uma nova orientação para os militares é simples produto daquela concepção encubada no interior das forças armadas durante longos anos sem que o “poder civil” tivesse algo a dizer de maneira clara na mudança da doutrina militar que agora muitos contemplam com surpresa e irritação.
O caráter tosco de suas declarações e não poucas vezes ofensivo para o espírito republicano que os políticos vulgares cultivam com particular zelo, não pode ocultar a comunhão que mantém com o “espírito” dominante na caserna nos pontos estratégicos da política, que executa com êxito até agora, especialmente aqueles relativos ao avanço da agenda econômica e na formação, ainda incipiente, de um movimento de massas de corte conservador ou mesmo fascista.
No entanto, a esquerda liberal permanece cativa das pesquisas eleitorais como se no cenário elaborado pelo cretinismo parlamentar e a derrota eventual de Bolsonaro nas eleições de 2022 fosse capaz de interromper o dinamismo da crise conduzida pela burguesia. É até constrangedor observar que na análise dominante no interior da esquerda liberal a hipótese de que “setores” da burguesia estariam arrependidos de ter apoiado Bolsonaro contra Haddad nas últimas eleições figura como ciência certa e, em consequência, eles estariam dispostos à defesa da democracia contra as aventuras golpistas do protofascista.
De fato, o núcleo racional da análise da esquerda liberal assinala que a demissão dos generais Edson Leal Pujol do Exército, Ilques Barbosa da Marinha e Antonio Carlos Bermudez da Aeronáutica, mais Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa (com o secretário geral), o chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o brigadeiro Raul Botelho, é resultado da recusa dos demitidos em avançar na aventura golpista e representa a preservação da autonomia castrense em relação aos planos políticos do presidente.
As forças armadas estariam, portanto, negando-se a cumprir um papel político e, no embalo do bordão liberal, afirmando as forças armadas como instituição de Estado e não de governo. O mundo dos progressistas não é belo?
Porém, nesse caso, faltaria explicar por que os milhares de militares não desembarcaram do governo, entregaram seus apartamentos funcionais, suas funções gratificadas e rumaram para a caserna de maneira disciplinada... Afinal, por que romperam com a hierarquia e permaneceram fieis ao governo dando as costas a seus comandantes?
No terreno da especulação, há bons indicativos para afirmar que a hegemonia entreguista no interior das forças armadas aproveitou a oportunidade para disciplinar ainda mais a tropa, revelando que a decisão de seguir até o fim e fundo com o presidente não admite vacilação. Nesse caso, Bolsonaro antes de sofrer uma perda e ver seu domínio desafiado, teria afirmado ainda mais sua autoridade diante da lista de generais e promoções vindouras.
Finalmente, é fácil observar que os líderes da oposição liberal se limitaram a afirmar que a crise é grave porque a demissão de 4 ministros militares não tinha precedentes na história da república burguesa. Ou seja, ao invés de uma efetiva análise, a contribuição analítica da esquerda liberal repete apenas a manchete do jornalão burguês.
A estação final do progressismo
A destituição de Dilma é a face nacional da impotência do progressismo latino-americano em superar as mazelas próprias do subdesenvolvimento e da dependência. De fato, há muitos anos, as forças progressistas sofrem reveses e se revelam incapazes de manter governos na exata medida em que não possuem um projeto de poder. A destituição de Dilma não representa um raio em céu azul. Antes do Brasil – onde tudo ocorreu no pleno funcionamento das instituições democráticas – Hugo Chávez na Venezuela (2002), Jean Bertrand Aristide no Haiti (2004), Manuel Zelaya em Honduras (2009) e Fernando Lugo no Paraguai (2012) eram exemplos aqui considerados exóticos até que a conveniência da esquerda liberal necessitou inscrever a destituição de Dilma no rol dos “golpes”. Em todos esses eventos os militares jogaram um papel relevante, impossível de ser ignorado.
É claro que a esquerda liberal não tirou lição alguma de cada um desses episódios. Mas a solução de Hugo Chávez não foi ignorada pela doutrina militar dos Estados Unidos e menos ainda passou despercebida para os militares brasileiros. A despeito da origem e sentido do bolivarianismo encabeçado por Hugo Chávez – de clara orientação anticapitalista e anti-imperialista – o Departamento de Estado captou a ameaça e reforçou aspectos ignorados ou de impossível solução nas condições venezuelanas.
Os militares brasileiros também, sempre com a orientação dos EUA. No entanto, a revisão crítica da política externa brasileira assinala claramente, como observou com exatidão e alegria o ex-chanceler mexicano Jorge G. Castañeda, como Lula atuou na toada de uma “esquerda racional” enquanto Chávez tocava o tambor de uma “esquerda irracional”. A razão pela qual Lula manteve distância objetiva e calculada dos projetos estratégicos originados na Venezuela sob condução de Hugo Chávez era produto não somente de eventuais ilusões próprias da esquerda liberal, mas, sobretudo, dessa determinação estrutural da orientação de Washington incorporada pelos militares brasileiros.
Não resta dúvida de que a emergência do bolivarianismo anti-imperialista e anticapitalista alinhou ainda mais os militares brasileiros com a política estabelecida pelos Estados Unidos e o “bloco americano”. A política externa da Revolução Bolivariana praticou uma política energética que foi tão importante quanto eficaz para conquistar aliados e diminuir a força da política imperialista dos Estados Unidos e da França no Caribe e na América Central.
Ninguém poderá explicar as razões pelas quais Zelaya, um fazendeiro eleito por partido conservador em Honduras em janeiro de 2006, encabeça um movimento em direção a ALBA (Alternativa Bolivariana das Américas) sem estabelecer essa conexão decisiva. O bolivarianismo no Brasil foi apresentado como algo distante, ilusório, quando não caricato, pela esquerda liberal. A propósito, basta conferir as dezenas de declarações de Lula, apresentando-se como um conselheiro lúcido e ponderado ao homem que emergiu como um raio diante da noite “neoliberal” que tanto afeta os petistas...
A política “altiva e ativa” do governo Lula navegou orientada pela política externa de Clinton e do principal intelectual do governo democrata, Anthony Lake, o chamado “intervencionismo humanitário”. De fato, como documentou Ricardo Seitenfus exaustivamente, desde 1994 – já sob a Doutrina Clinton – a ONU adota a Resolução 940 (com a oposição do Brasil!) prevendo a criação de um contingente militar multinacional para intervir no Haiti. Celso Amorim, na época, votou contra a intervenção. No entanto, mais tarde, durante o governo de Lula, a pedido de Jacques Chirac e ninguém menos que George W. Bush, o Brasil assume o comando da Minustah sob a liderança do chanceler.
Ainda segundo Seitenfus, “hesitantes no início, os militares brasileiros foram convencidos de participar na medida em que todos os equipamentos, os sistemas de comunicação e transporte e o material a ser utilizados seriam nacionais. É a primeira vez em sua história que uma importante força militar é enviada ao exterior nestas condições. Para os estrategistas, a operação se transformou num desafio na preparação dos homens, na capacidade de comunicação e de transporte bem como um teste de confiança na indústria brasileira de armamentos”.
Não era apenas uma boa oportunidade para as forças armadas. Em 2008 o jornalão burguês Valor publicava o entusiasmo da Coteminas e da OAS com as possibilidades abertas a partir da intervenção no Haiti. A empresa do vice-presidente de Lula, José Alencar, pretendia acesso preferencial para produzir têxtil destinado ao mercado estadunidense no marco dos tratados de livre comércio vigentes no Caribe, enquanto a OAS acabava de vencer uma licitação para a pavimentação de uma rodovia. (Valor, 15/08/2008).
No entanto, as promessas de grandes negócios no Haiti jamais se confirmaram para a burguesia brasileira, tal como confidenciou um diplomata brasileiro a Miguel Borba Sá (IRI/PUC-Rio): “... a gente faz o trabalho sujo aqui e as nossas empresas nem entram, continuam sendo as empresas norte-americanas e canadenses comandando tudo aqui” (Brasil de Fato, 15/10/2019).
Nada de novo no front, pois o manual imperialista ensina como deve ser a associação entre multinacionais e militares, tal como documentam fartamente Amy e David Goodman (Corrupção à americana) na ação de “reconstrução do Iraque” que destinou todos os grandes projetos para empresas estadunidenses, excluindo sem cerimônia seus sócios na invasão em nome da democracia e dos mercados.
Finalmente, é mais uma demonstração clara de que as possibilidades de um projeto subimperialista anunciado por Marini para uma fase específica da acumulação de capital sucumbiu para sempre no desenvolvimento capitalista no Brasil sob as novas condições da economia mundial.
O projeto burguês fracassou, mas a experiência foi valiosa para a cúpula das forças armadas brasileiras. Em 2010 ninguém menos do que o próprio general Heleno resumiu o saldo: “como exercício militar a Minustah é excelente. No entanto, como Operação de Paz, ela não tem mais sentido”. Mais tarde, no governo corrupto e liberal de Michel Temer, seria o Rio de Janeiro – sob comando do general Braga Neto – a experimentar a intervenção militar em tempos de paz no interior do país.
A crítica da esquerda liberal à intervenção no Rio de Janeiro raramente foi observada como um subproduto da diplomacia orientado pelo “Princípio da Não indiferença” praticado pelos governos de Lula e Dilma e implementado por Marco Aurelio Garcia e Celso Amorim. Uma vez mais o protagonismo dos militares era ignorado pela esquerda liberal ocupada com a denúncia do “golpe” contra Dilma.
Ora, tanto o general Augusto Heleno quanto Santos Cruz são nomes diretamente ligados ao intervencionismo no Haiti decidido por Lula, Amorim e Marco Aurélio Garcia. O general Heleno foi o primeiro comandante das tropas e Santos Cruz assumiu em setembro de 2006 após o suicídio do general Urano Bacellar, ocorrido em 7 de janeiro daquele ano...
O giro à direita da diplomacia brasileira é indiscutível e deve ser explicado. A tirada literária de Chico Buarque – “o Brasil não fala fino com os Estados Unidos nem grosso com a Bolívia” – é boa pra conversa de boteco, mas totalmente falsa para entender a trama da subserviência da diplomacia da esquerda liberal – implementada por Amorim e Marco Aurelio Garcia – à política externa dos Estados Unidos. Não por acaso, em 2009 a imprensa liberal nos EUA considerava Amorim o “melhor ministro de relações exteriores do mundo” (the world’s best foreign minister), um contrapeso considerado importante contra a ameaça representada por Hugo Chávez.
Ora, o conceito de “potência regional” que Washington sempre reservou para o Brasil encontrou no bolivarianismo sua negação completa, pois o nacionalismo cubano e venezuelano, de raízes anti-imperialista e anticapitalista, esterilizava na raiz a ilusão da classe dominante brasileira e seus políticos vulgares. Por outro lado, as transformações do capitalismo no país anulariam para sempre as possibilidades da expansão das “multinacionais brasileiras” acomodadas na divisão internacional do trabalho nas fases que não disputam a liderança científica, tecnológica e produtiva de ponta dos países centrais.
Na verdade, ao incorporar o “Princípio da Não Indiferença”, a política externa do PT renunciava ao princípio da autodeterminação dos povos, uma virada indispensável para assumir o “novo humanismo militar” dos Estados Unidos elaborado no governo democrata de Bill Clinton e, no caso haitiano, respeitado minuciosamente pelo republicano George Bush. Ora, foram Chirac e Bush quem convocaram Lula para a tarefa suja no Haiti. No Brasil, a esquerda liberal apresentou o intervencionismo imperialista estadunidense e francês como virtude e – pasmem! – também como expressão de um novo protagonismo do Brasil no mundo que poderia, como recomenda a subserviência, abrir as portas para eventual assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Mais miserável, ingênua e servil não poderia ser essa diplomacia!
Cuba e Venezuela atuaram na direção aposta. Cuba jamais deixou de prestar a ajuda humanitária que pratica no mundo desde o início da Revolução com a presença dos médicos cubanos e sempre fez defesa enfática do direito à autodeterminação. A Venezuela sob a condução de Hugo Chávez também se opôs ao “intervencionismo humanitário”, mas ofereceu por meio da PetroCaribe energia aos haitianos. Ambos, Cuba e Venezuela, possuem política externa anti-imperialista, conhecem a ação agressiva dos Estados Unidos há décadas e sabem o caráter nocivo da investida, sobretudo entre os militares.
No Brasil, na ausência de uma doutrina militar própria, a alta cúpula militar ficou totalmente exposta à doutrina emanada dos Estados Unidos! Portanto, é impossível entender a situação atual descolada das mudanças ocorridas nas últimas duas décadas.
O nacionalismo de Bolsonaro – que o levou a bater continência para a bandeira dos Estados Unidos – mais que arroubo colonial, expressa claramente a concepção arraigada na alta oficialidade e na formação dos militares brasileiros. Tal situação não sanciona, obviamente, a existência de um “partido militar”. A degradação das instituições nacionais na esteira da podridão da república burguesa conferiu, por algum tempo, certa credibilidade às forças armadas diante de sucessivos escândalos de corrupção de distintos governos. No entanto, nem mesmo as forças armadas podem fugir da podridão burguesa cada dia mais visível aos olhos do povo, ainda que negligenciada pela esquerda liberal. Ademais, o protagonismo de milhares de militares em cargos do governo tende a dissipar a consciência ingênua que supõe a imunidade do militar diante da corrupção.
Em todos os países latino-americanos onde as forças armadas assumiram protagonismo tal como verificamos agora no Brasil, a conexão entre capital e Estado rendeu enorme corrupção que terminou também por arrastar as forças armadas para o centro da crise da república burguesa. Portanto, na exata medida em que é crescente na caserna a mentalidade empresarial, não será surpresa quando os “escândalos” emergiram na primeira página de um jornalão burguês.
É mera questão de tempo e tampouco será um assunto inédito, pois informação relativamente recente indica que “... com dados fornecidos pelo STM (Superior Tribunal Militar) a pedido do UOL mostra que, entre 2010 e 2017, 132 militares das Forças Armadas foram condenados pela Justiça Militar pelos crimes de corrupção passiva, corrupção ativa ou peculato, o equivalente a 0,04% do contingente total das Forças Armadas, estimado em 334 mil pessoas. Outros 299 militares ainda aguardam julgamento. Nesse período, pelo menos 12 oficiais foram expulsos e perderam seus postos e patentes por crimes ligados a desvios de recursos públicos das Forças Armadas”.
Não devemos julgar o todo pela parte, mas tampouco ignorar a dinâmica em curso. A corrupção no interior das forças armadas é produto da adesão dos militares ao ciclo da acumulação de capital e seu aburguesamento político-ideológico. Tal processo, nocivo em si mesmo, já está produzindo uma clara contradição entre a oficialidade e a maioria absoluta dos militares. Nesse contexto, a “não politização” ou o simples e ingênuo “apelo à institucionalidade” das forças armadas joga água no moinho da oficialidade sem compromisso com a segunda emancipação que teremos que realizar.
A reforma da previdência já afastou uma camada expressiva de oficiais da vida simples e austera do soldado, sempre submetido às degradantes condições de vida de nosso povo. Ora, o nacionalismo cosmético e burguês que é hegemônico atualmente já está, portanto, em contradição objetiva com o potencial do nacionalismo revolucionário que sempre existiu sob variadas versões nas forças armadas em todos os países latino-americanos. Não há razão alguma para supor que a lei da gravidade não funciona no Brasil...
Portanto, é trágico que a esquerda liberal siga pregando contra a “politização dos militares e a militarização da política”, fortalecendo assim a ideologia da neutralidade das forças armadas e ignorando a profunda crise da república burguesa.
O efeito combinado da crise cíclica do capital com a pandemia adquire, na periferia do sistema, um grau de “irracionalidade” que não se verifica nos países centrais, especialmente nos Estados Unidos. Não obstante, não devemos ignorar a lenta mudança que Bolsonaro opera em relação à política sanitária. Não depende da suposta resistência de comandantes das forças armadas à ideologia negacionista que a direita agita para ocupar a atenção do público com banalidades, mas, ao contrário, como já alertei em fevereiro desse ano noutro artigo, a eventual adesão dos militares à vacinação em massa é uma exigência do capital, tal como podemos observar nos Estados Unidos.
A decisão pela vacinação não depende de uma decisão que está sob comando dos militares – uma espécie de partido militar – e muito menos poderá ser gerada no interior da caserna. É uma decisão dos capitalistas que, tal como ocorre nos EUA, necessitam da vacinação em massa para tentar superação da crise.
Não existe, em consequência, um “partido militar” operando no Brasil acima das contradições e dos antagonismos de classe. É claro que existe há muito tempo uma importante articulação na caserna e nenhuma mudança no seu interior – tal como a troca de comando por Bolsonaro – ocorre por acaso. Afinal, a sólida hegemonia pró-estadunidense que agora se manifesta sem pejo somente foi possível porque toda a cadeia de comando e os instrumentos de formação da carreira militar estavam sob controle estrito dos oficiais de alta patente e de Washington.
O que fazer?
A esquerda liberal de extração parlamentar poderia atuar em consequência. A primeira “medida” poderia ser a supressão do artigo 142 da Constituição de 1988. Ora, as forças armadas não podem figurar como a garantia dos poderes constitucionais, mas é precisamente o que reza a Constituição. Até mesmo a constituição deixa claro quem é que manda numa república burguesa num país periférico e dependente, configurando uma democracia restringida que nem mesmo a esquerda liberal pode ignorar. O próprio protofascista Bolsonaro expressa de maneira recorrente o postulado para irritação dos políticos vulgares defensores da democracia em abstrato.
O postulado constitucional é produto da ideologia de segurança nacional cujo núcleo racional é manter uma clausura pétrea contra o inimigo interno, ou seja, o despertar político de nosso povo, seu amadurecimento político e a plena consciência de avançar na direção da Revolução Brasileira na medida em que sua luta nos marcos do regime burguês se revela insuficiente.
Por isso mesmo, é absolutamente indispensável que as forças interessadas numa república com soberania popular e sem a tutela militar garantidora da ordem burguesa inaugurem com força o debate público sobre uma nova doutrina militar. Há dois princípios basilares que ordenariam essa nova doutrina militar: o anti-imperialismo para enfrentar a potência imperialista dominante e uma concepção anticapitalista para superar a dependência.
Não alimento esperanças de que a esquerda liberal avance nessa direção e, na verdade, acredito que guardará imenso silêncio sobre o papel dos militares no país. Portanto, cabe a nós, a esquerda socialista, avançar nesse debate sem demora.
Finalmente, num país periférico e dependente, não deveria restar dúvida alguma sobre a força do nacionalismo revolucionário como parte do programa e da consciência crítica necessária para superar tanto o cosmopolitismo alienante da esquerda liberal (na prática a serviço das potências imperialistas) e o nacionalismo burguês e cosmético do protofascista Bolsonaro que somente simula a defesa do país enquanto pratica o maior entreguismo de nossa história recente.
Uma esquerda cosmopolita – num mundo onde não existe uma internacional comunista e nem mesmo um movimento comunista internacional – é uma esquerda fadada ao fracasso. A esquerda, portanto, deve reivindicar, estudar e explicitar o nacionalismo revolucionário sem confundi-lo com utopias autárquicas próprias do (neo)desenvolvimentismo historicamente superadas que apenas reproduzem o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. O Brasil, a propósito, é a prova mais eloquente desse fracasso histórico!
O nacionalismo burguês também fortaleceu ilusões nos últimos tempos sob o manto de “um projeto nacional” (Ciro) ou de “reconstrução nacional” (Lula) que são, ambos, não somente incapazes de oferecer uma alternativa, mas, ao contrário, agravariam a crise brasileira sem abrir as portas para uma saída popular e menos ainda revolucionária.
Nesse contexto, a defesa da soberania sem a ruptura com a ordem burguesa é brado destinado a jogar águas no moinho da direita, caminho ilusório que termina por fortalecer as ilusões de um Brasil potência no interior da ordem capitalista. Ora, nenhum país superou a condição de periferia no interior do sistema e mesmo a China com a Revolução de 1949 ainda navega em águas turbulentas para disputar com os Estados Unidos em escala global.
Os militares estão ultrapolitizados no Brasil. O fenômeno evoluiu nas costas da esquerda liberal, somente possível porque essa abandonou a diferenciação elementar entre governo e poder nos marcos da crença ingênua da democracia como valor universal. Ademais, os militares assumiram um claro papel político no atual governo que é, de fato, irreversível. Não voltarão à caserna como pretende o espírito republicano da esquerda liberal.
Ainda assim, se por circunstâncias da correlação de forças no contexto de uma crise profunda da república burguesa, tiverem que diminuir seu protagonismo, a “volta à caserna” é hipótese descartada. O gênio saiu da garrafa. Ao contrário do conto alemão, não há possibilidade de um final feliz para todos.
Parte 1
Nildo Ouriques é economista, professor da UFSC e membro do Instituto de Estudos Latino-Americanos.