Correio da Cidadania

O óbvio como argumento: Lula não oferece risco à democracia

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O ano é 1982. Principal liderança do maior movimento sindical da história do país, Luís Inácio da Silva, que incorporaria o apelido “Lula” ao nome, concorre ao governo do Estado de São Paulo pelo recém-criado Partido dos Trabalhadores (PT). Mesmo com a fama adquirida pelo candidato anos antes, mas ainda sem a estrutura e capilaridade que hoje é peculiar ao partido, a candidatura não se mostra viável e Lula fica apenas na quarta colocação, com 10,77% dos votos, sem qualquer questionamento ao processo eleitoral.

1989. Naquela que foi a primeira eleição presidencial da chamada “Nova República”, Lula naturalmente se coloca à disposição da população como candidato. Após disputar a raia da esquerda brasileira principalmente com Leonel Brizola, chega ao segundo turno vencendo o ex-governador gaúcho e fluminense por diferença de apenas 454 mil votos. No segundo turno, com suas baterias voltadas contra Fernando Collor (PRN), um inusitado governador cuja candidatura foi gestada de proveta pelos meios de comunicação, Lula é derrotado em praticamente todos os estados, exceto Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e o Distrito Federal. Mesmo com notórios sinais de manipulação da opinião pública, Lula e o PT não questionam o processo eleitoral e o resultado se mantém.

1994 e 1998. Cooptado pela estabilidade de sua moeda, o Real, o Brasil elege e depois reelege (após compra fartamente documentada de deputados para aprovação de uma PEC para permitir a reeleição) como presidente, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso (FHC). Lula, seu principal antagonista nestas duas eleições, concorre primeiro com uma plataforma que desacredita o Plano Real, supostamente pensado por FHC, como estabilizador da economia, e depois com ataques abertos ao neoliberalismo, ideologia então tida como verdade mundialmente absoluta após a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética. Perde as duas eleições no primeiro turno.

2002. Finalmente a vitória! Com o país em grave crise econômica e altos índices de miséria entre a população, Lula se elege não sem antes “acalmar o mercado financeiro”. Com a famigerada “Carta ao Povo Brasileiro”, garante, entre outras promessas, que “o novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade”.


Foto: O ex-presidente Lula confraternizando com raposas felpudas do PMDB, em 2015. Perigosíssimo para a democracia defendida pela grande mídia, este velhinho | Créditos: Senado Federal

Governa durante oito anos com imenso sucesso, mesmo desagradando parte da esquerda pela conciliação da agenda de distribuição de renda com os lucros da burguesia nacional – tem como vice o empresário mineiro José Alencar (PL), como “fiadores” no Congresso Nacional, durante longo tempo, José Sarney e Renan Calheiros (PMDB), e ministros do quilate do banqueiro Henrique Meirelles (presidência do Banco Central, com status de ministério) e Roberto Rodrigues, homem do agronegócio no Ministério da Agricultura.

Com sua alta popularidade, em 2010 elege como sucessora Dilma Rousseff, que depois de inicialmente nadar em marés tranquilas, acaba derrubada por um golpe de estado capitaneado por interesses estrangeiros e executado pelo Judiciário, Parlamento e Meios de Comunicação.

Principal nome nas pesquisas eleitorais que sucedem o golpe, é preso por 580 dias, entre 2018 e 2019, em uma cela improvisada em Curitiba, sem crime comprovado. Instado a fugir do país ou a resistir à prisão pela força, opta por se deixar prender em São Bernardo do Campo (SP) para “provar sua inocência na cadeia”, na sombra de seu carrasco. É libertado somente após o site The Intercept Brasil trazer à tona o “Escândalo Vaza Jato” onde, entre outras informações, são revelados o conluio entre promotoria e juiz para condená-lo a despeito das provas.

Ou seja, nos sete parágrafos anteriores busquei elencar apenas alguns exemplos de como Lula, em nenhuma das mais de quatro décadas como pessoa pública da vida brasileira, seja como homem resignado, conciliador ou resiliente, ofereceu risco à estabilidade do país. Parece óbvio, e é. Basta uma simples consulta ao Google para que se saiba que nem Lula nem o PT possuem qualquer pretensão autoritária. Pelo contrário: para aqueles que, como eu, acreditam que o Brasil vive não uma democracia, mas uma ditadura de mercado, tanto Lula quanto o PT são moderados até demais.

Das duas uma: o jornalismo que vê no ex presidente e seu partido traços de autoritarismo após uma declaração tirada de contexto sobre o processo eleitoral na Nicarágua – país que boa parte dos formadores de opinião da imprensa brasileira sequer sabe apontar no mapa –, na verdade, ou está em busca de outra desculpa para normalizar Bolsonaro, mesmo após a tragédia que o país vive desde 2019, ou não vê a hora de eleger aquele do “paletó preto, camisa preta e gravata preta que o Andreazza adora”.

Fagner Torres é jornalista e colaborador do Correio da Cidadania.
Conheça seu podcast, o Lado B do Rio.

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