Correio da Cidadania

As tropas estadunidenses no Brasil

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Foto: Oficiais das Forças Armadas dos EUA estiveram no Brasil de 28 de novembro a 18 de dezembro.The U.S. National Archives

Como se a luta de classes não mais existisse, Lula promoveu em 12 de abril de 2010 um acordo de cooperação militar entre o Brasil e os Estados Unidos. O documento traz a assinatura de Nelson Jobim, então ministro de Defesa e Robert Gates, o secretário de defesa estadunidense à época.

Gates não é um sujeito qualquer: por quase três décadas, foi membro e diretor da CIA e conseguiu a aparente proeza de ocupar um cargo estratégico tanto no governo do rústico Bush quanto na presidência do simpático afroamericano Barack Obama. Ademais, o poderoso Gates, a despeito de parecer um falcão jogo-duro, era também um sujeito descolado: decretou o fim da exclusão das mulheres nos submarinos e também das perseguições de homossexuais nas forças armadas. Jobim tampouco improvisou em sua larga carreira: ministro de justiça de FHC, ocupou também a condição de Ministro de Defesa nos governos de Lula e Dilma. Foi ministro e presidente do STF (indicado por Cardoso), defensor de Andrés Esteves quando o banqueiro foi preso na Lava Jato e, atualmente, é nada menos que sócio e presidente do conselho de administração do BGT Pactual, banco criado por seu ex cliente e patrão quando diante dos tribunais. Não é um cara fraco, definitivamente.

O acordo de cooperação militar entre a potência imperialista e um país latino-americano não suscitou polêmica à época, mas, ao contrário, desprezo aos críticos. A consciência ingênua dominante na esquerda liberal encabeçada pelo PT dava de ombros às críticas do “esquerdismo” considerando-as não somente extemporâneas, mas completamente descabidas historicamente. Não poucas vezes, os quadros remanescentes da esquerda revolucionária eram considerados anacrônicos, cuja crítica soava no mínimo cativa dos tempos da guerra fria, que, segundo a fé corrente, não mais existia, pois teria sido soterrada pela queda do muro de Berlim. A opressão e dominação de um país por outro, portanto, era alegadamente coisa do passado.

Tal como escreveu Marx acerca dos liberais defensores do livre comércio, “se são incapazes de compreender como pode um país se enriquecer a custa de outro, não necessitamos assombrarmo-nos que esses mesmos senhores compreendam ainda menos que, dentro de um país, uma classe enriqueça à custa de outra”.
A imprensa burguesa fez sua parte e informou de maneira econômica a assinatura do acordo. Numa pequena nota, a Folha de São Paulo registrou apenas que o “texto inclui a aplicação da "cláusula de garantias" exigida pela Unasul (União das Nações Sul-Americanas), que prevê não intervenção, integridade e inviolabilidade territorial”. No entanto, em setembro de 2004, portanto no início do primeiro mandato de Lula, o princípio da “não intervenção” seria rapidamente substituído pelo “princípio da não indiferença” e os militares brasileiros encabeçariam – sob comando de um então desconhecido General Augusto Heleno – o “intervencionismo humanitário” a serviço de duas potências imperialistas, os Estados Unidos e a França.

Á época, apenas Hugo Chávez e Fidel Castro criticaram abertamente o intervencionismo estadunidense validado pelo governo de Lula e mantiveram lúcida e solitariamente a advertência até seus últimos dias de vida; em 2017, quando ninguém mais duvidava do fim catastrófico da MINUSTAH para o povo haitiano, tampouco foram recordados. Entretanto, no Brasil, enquanto o petismo silenciava-se sobre a “intervenção humanitária” no Haiti, a crônica otimista das forças armadas brasileiras se manteve em alta até o último dia da ocupação no pequeno país caribenho.

Uma nota publicada na página do Corpo de fuzileiros navais da Marinha do Brasil, registrou assim sua participação: “Em outubro de 2017, com um país mais seguro e estável, a MINUSTAH chegou ao fim. Hoje, a segurança está a cargo da Polícia Nacional do Haiti, que atualmente conta com um efetivo de 15 mil homens – 10 mil a mais do que possuía em 2004. Após 13 anos de muitos desafios e superação, com o sentimento de dever cumprido, os Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil deixaram o Haiti e entraram para a história.” (cursivas minhas, NDO). O Haiti está, finalmente, pacificado. Não é mesmo uma maravilha?

Alguns anos mais tarde, precisamente em 18 de dezembro de 2015, poucos dias após o início do processo de impeachment, a presidente Dilma promulgou aquele antigo acordo iniciado com Lula por meio do Decreto 8.609, após a aprovação pelo congresso nacional em junho do mesmo ano. Em Washington, assinou pelo Brasil o então ministro de Defesa, o petista Jacques Wagner e pelos Estados Unidos, o secretário de Defesa, Ashton Carter. O decreto de Dilma foi igualmente ignorado pelo militante da esquerda liberal, mais ainda do que a pioneira decisão de Lula em favor da política imperialista.

O pânico derivado do início do processo de destituição capturou todas as atenções políticas de tal forma que uma decisão de alcance estratégico, tomada provavelmente para buscar aliados externos com a intenção de se manter no posto, simplesmente não teve repercussão alguma. É verdade que o Acordo sobre Proteção de Informações Militares Sigilosas foi assinado por Dilma em 26 de junho de 2015, véspera da visita a Washington para um encontro com o democrata Obama. O Ministério da Defesa publicou sua avaliação em nota, afirmando que, após “cinco anos de espera e de debate”, os dois acordos, então aprovados na Câmara e no Senado vão, finalmente, “abrir portas para novas perspectivas de cooperação no setor de defesa com o governo norteamericano”.

A despeito das manobras, golpes, traições, alianças espúrias e acusações de toda espécie no interior do parlamento burguês que marcaram o ano anterior da campanha contra Dilma, o Ministério da Defesa do Brasil não perde a linha da necessária lucidez quando assuntos estratégicos estão em jogo. A nota firma que a “articulação do ministro da Defesa, Jaques Wagner, junto aos presidentes das duas casas legislativas, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), foi fundamental para a promulgação da matéria, pois desde 2010 os dois acordos aguardavam a apreciação do Congresso Nacional devido à necessidade de alguns ajustes”. Não se pode desprezar a capacidade de políticos vulgares como Eduardo Cunha e Renan Calheiros em separar, como Lenin diria, o governo passageiro do governo permanente, para usar a terminologia da direita estadunidense. Tampouco devemos ignorar a ação de Jacques Wagner, um dos cardeais do petismo, que, mesmo diante da chapa quente produzida pela oposição na campanha do impeachment, não deixou a peteca cair e levou, a despeito de rusgas aqui e acolá, a ação estratégica comum para regularizar e trocar informações militares sigilosas entre um país dependente e a potência imperialista.

Portanto, a presença de 240 militares estadunidenses em território brasileiro, entre 28 de novembro e 18 de dezembro de 2021, é resultado de longo esforço da classe dominante em afirmar, com governos da esquerda liberal ou da direita liberal, os interesses estratégicos da potência imperialista no Brasil. Tal constatação evidencia o quanto o “pragmatismo” vulgar colocado em prática pela esquerda liberal, produto da ignorância histórica e do desprezo pela tradição teórico-política da esquerda latino-americana anti-imperialista, tem sido nocivo para a soberania defendida apenas de maneira retórica.

Considerando a “sabedoria política” da esquerda liberal encabeçada pelo PT, especializada em legalizar todo tipo de assalto ao Estado e agressões à soberania com medidas pretensamente destinadas a regulamentar a ambição burguesa e imperialista – como se fosse possível ordenar a vida com leis e decretos – é legitimo supor que o mencionado acordo de “proteção de informações militares sigilosas” tenha sido proposto para regular a espionagem que os órgãos da potência imperialista realizaram e foram devidamente denunciados por Snowden à época. Uma vez mais, a subserviência e a impotência política da esquerda liberal aparecem na forma de um legalismo infantil que os organismos da potência imperialista sabem driblar há séculos, tornando inútil a letra da lei.

A situação era, de fato, muito grave, pois naquele período, já existiam provas suficientes para não levar adiante semelhante acordo; pouco tempo antes – em junho de 2013 - Edward Snowden, um ex-funcionário da CIA revelou a espionagem em nada menos que a correspondência eletrônica de Dilma por parte da NSA, a Agência de Segurança Nacional dos EUA. Entretanto, a gravíssima violação da correspondência presidencial foi considerada pelo petismo apenas um “episódio” e, em consequência, olimpicamente esquecido pelo governo brasileiro de tal forma que nada impediu seguir adiante nos planos de “cooperação militar” com os Estados Unidos. Assim, a obra iniciada por Lula e concluída com Dilma estava, finalmente, completa.

Em perspectiva histórica, é trágico e espantoso perceber como a esquerda liberal no governo – com Lula e Dilma – banalizou até o fundo e o fim as relações com o imperialismo estadunidense não somente ignorando a violação da correspondência presidencial como também a influência cada dia maior do Comando Sul dos Estados Unidos na formação e iniciativas políticas dos militares brasileiros. De fato, a “influência” da potencia imperialista nas forças armadas brasileiras era antiga e é justo afirmar que os sucessivos governos petistas não fizeram mais do que fortalecê-la e torná-la oficial, auferindo perverso verniz republicano às suas decisões. A consciência anti-imperialista que marcou a longa e tortuosa trajetória da esquerda brasileira estava, finalmente, rarefeita ou mesmo, dissipada. Em seu lugar, uma sorte de pragmatismo vulgar orientou – e ainda orienta – o “realismo petista” como se fosse possível, de fato, construir soberania sem luta contra a potência imperialista. No lugar da análise fria, calculista e apegada à memória histórica, o recurso do petismo foi, tal como manda a tradição do país, uma tirada literária de um compositor popular a serviço da consciência ingênua: agora, nos governos petistas, anunciou Chico Buarque, o “Brasil não fala fino com os Estados Unidos e tampouco grosso com o Paraguai”. Na operação, o tabuleiro da geopolítica onde conflitos de classe emergem e orientam seu itinerário, deixava trânsito livre para a tirada literária do boteco da zona sul carioca.

Os dados anteriores são indispensáveis se quisermos entender a razão pela qual nesse mês, protegido por imenso silêncio da imprensa burguesa e sem qualquer registro pelos instrumentos digitais da esquerda liberal, 240 soldados estadunidenses realizam desde o dia 28 de novembro treinamento militar em terras brasileiras a convite do protofascista Bolsonaro. É verdade que o atual presidente da república jamais escondeu sua filiação canina ao imperialismo estadunidense: bateu continência para a bandeira tricolor, realizou inédita visita à sede da CIA em Langley, na Virgínia, em março de 2019, e não poupa elogios ao país do norte dirigido por republicanos ou democratas.

A operação conjunta de tropas brasileiras e estadunidenses foi autorizada pelo Decreto 10.834 publicado no dia 13 de outubro e assinado pelo protofascista juntamente com o general Braga Neto. Até onde alcança nossa informação, é um exercício militar inédito. Segundo o Correio Brasiliense, as “duas equipes” participam “da edição 2021 do chamado Combined Operations and Rotation Exercises (Core), um tipo de treinamento militar concebido durante conferência bilateral de Estado-Maior Brasil-EUA realizada em outubro de 2020, "com o objetivo de incrementar a interoperabilidade entre os dois exércitos".” A secretaria da presidência da república informou a novidade eliminando qualquer improviso em assunto tão sério e estratégico: o “exercício” se realizará todos os anos até... 2028!

É muito provável a ausência de curiosidade jornalística da chamada mídia independente necessária para investigar a fundo algo relevante sobre a inédita presença de tropas americanas no Brasil. Da mesma forma, os parlamentares da esquerda liberal tampouco buscarão por meios legais e legislativos ações para esclarecer a razão e o sentido – além de antecedentes e repercussão – de tão grave presença militar estadunidense em nosso país. Nas atuais circunstâncias, a única esperança é, talvez, a possibilidade de um pesquisador no futuro, orientado por sentimento e convicção nacionalista e revolucionária, encontrar no baú esquecido da História, as razões que levam um país de enorme potencial à miserável posição de dependência e subdesenvolvimento em que nos encontramos.

Finalmente, bastam duas moléculas de lucidez e outra de honestidade intelectual para perceber o quanto ações simples e silenciosas como essas são as responsáveis por levar as forças armadas no Brasil à radical submissão política e ideológica, à doutrina “América para os americanos” anunciada por James Monroe em 1823.

O Brasil vive um clima de pré-campanha eleitoral e tudo indica que o essencial – como a presença das tropas estadunidenses no Brasil – permanecerá longe da atenção do público e simplesmente será ignorado como se jamais tivesse existido. Mais cedo do que tarde, não será surpresa alguma se a esquerda liberal comandada pela consciência ingênua – agora livre da antiga tradição antiimperialista atualmente exorcizada por seus novos profetas e “dirigentes” – manifestará cinicamente sua surpresa e até oposição diante da ação entreguista de um presidente protofascista, adepto confesso do alinhamento automático do Brasil à política de segurança e do expansionismo permanente dos Estados Unidos, como se não fosse ela também responsável pelas tropas estadunidenses em território brasileiro. Da mesma forma, antes que ironia da História, o “episódio” revela que ninguém ficará impune de severo juízo histórico necessário para superar os limites objetivos do liberalismo de esquerda a que estamos aparentemente condenados.


Nildo Ouriques é economista, professor da UFSC e membro do IELA - Instituto de Estudos Latino-Americanos.

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