Correio da Cidadania

Sobreviver à pandemia e ao capitalismo pandêmico brasileiro

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Foto: Marcos Corrêa / PR

Ubu, o rei-bufão do drama de Alfred Jarry (1896), cumpre seu dever diversionista, enquanto lança a ordem de seguir em frente com o extermínio. Deste personagem derivou o adjetivo “ubuesco”, que caracteriza quem seja munido de poder e estultice, em razão direta. No caso brasileiro, a bizarrice concentra as atenções enquanto o sorrateiro se espraia. É um poder derivado da capacidade de projeção de pânicos morais e de, em nome deles, anular regulamentações intersetoriais e acordos interclassistas. A grotesca corporificação de Bolsonaro confere habeas-corpus ao voraz metabolismo do capitalismo brasileiro.

Na Amazônia, logo se aprende que sobreviver à COVID e suas variantes não basta. A pandemia se soma à peste metabólica do capitalismo rentista-neoextrativista, marcada por seu impulso acumulador irrefreável. O sentimento predominante que lhe acompanha pode ser definido como uma sanha predadora, já tão naturalizada que parece espontânea.

O marco legal, nos três níveis de governo, segue aberto para a normalização das sujeições e usurpações criminosas, premiadas, portanto, com o mérito do “interesse geral”. A depender dessa jurisprudência, sempre haverá tempo para normalizar e consolidar os próximos retrocessos. A indecorosa proposta do marco temporal das terras indígenas mostra que a ofensiva empresarial-latifundiária, depois de saturar e homogeneizar o espaço, se volta contra o tempo, para promover saques ainda mais derradeiros.

O mercado financeiro, o agronegócio e a grande mídia, os incubadores da criatura ubuesca, agora tentam simular alguma distância regulamentar. No fundo lhe são eternamente gratos, depois de tantos serviços prestados em termos de destituições, fraudes e negociatas. Por isso Bolsonaro continua intocável.

A espetacularização da antipolítica tem como contraface o pseudo-antídoto da despolitização. O negacionismo é a cara explícita que coroa o mascaramento dos efeitos socialmente diferenciados da pandemia. Acordos liberal-keynesianos, quando admitidos, são válidos apenas como enxertos, por definição, temporários. A conta será convertida em dívida pública futura, ou seja, em novas levas de sacrifícios sociais e de concessões setoriais e territoriais.

A intermitência entre dissoluções cada vez mais vastas e integrações cada vez menores, é o que marca a ordem pós-social que fez escola no Brasil, especialmente após o golpe de 2016. O que brotar de instituições de tal modo corroídas? Com dispositivos de autorregulação do capital financeirizado fincados na Constituição, com contrarreformas privatistas em curso ou já engatilhadas, com marcos regulatórios e grandes projetos de infraestrutura que reiteram a centralidade político-decisória do agronegócio e da mineração, é preciso avaliar o que pode ainda significar governo e governabilidade no Brasil.

Depois das últimas avalanches privatistas, pode-se deduzir qual seria a “média” das expectativas dos mercados. O que pode ser racional e normal depois deste show de pilhérias e horrores? Vê-se ao longe a razoabilidade em recuo permanente. Digamos sem edulcorantes: é dos extremos da barbárie capitalista que se está medindo o “centro político” admissível ou o centro apto. Caiba nele quem puder.

O rei está nu, mas nenhuma nudez será castigada, calejadas que estão as vistas. O mesmo motivo que explica Esteves fora da prisão e ainda comandando negócios bilionários no interior do Estado, explica também por que Bolsonaro continua Presidente. Natural que o CEO do BTG diga não estar “preocupado com a consequência eleitoral”, considerando que 2022 já foi precificado como uma inapelável corrida ao centro. E se por acaso “os extremos ficarem nos extremos, o centro vai andar”, conclui o banqueiro, em tom blasé. Uma inovação e tanto essa capacidade de “autocorreção” dos mercados que faz com a “terceira via” seja declarada de antemão a única via que pode vencer. Quem precisa de golpe, após tal entendimento?

Potentados das commodities e “Faria Limers” procurarão manter a tensão no mesmo lugar. Que outro motivo para que não tenha havido impeachment, por que até agora Bolsonaro não foi julgado e condenado pelos inúmeros crimes cometidos, acobertados e estimulados? A eclosão de motins e conflitos internos no bloco de poder, neste momento, parece que seria exposição demasiada.

Demonstração disso foram as sanções em dosagem calculada com que foram tratados os episódios em torno do movimento golpista no dia 7 de setembro de 2021. Esta pactuação financeira, jurídica e política coube num bilhete do jurisconsulto, beneficiário primeiro deste ciclo autoritário. Transcrita e assinada a carta, o autogolpe foi temerariamente assimilado. Fazendo as vezes dos partidos na cena política, agentes do Supremo, avançam ou recuam, cada um a seu modo e a seu tempo, para salvar as aparências do calendário eleitoral e consequentemente de um rito de transição.

Logicamente, entre os mercados e seus arautos, não há quem queira abrir mão de uma “maturidade institucional” marcada pela abolição de qualquer condicionalidade frente à população, à nação e à coletividade. Ponte para o futuro que virou Plano Mais Brasil (com menos direitos). Os três “ds” repetidos ad nauseam: desvincular, desobrigar, desindexar. “Ele [Bolsonaro] nos deu escudo para avançarmos”, é a deixa final de Guedes.

A consigna oficial, portanto, é “não recuar”. A recandidatura de Bolsonaro e a manutenção dos direitos políticos dos grupos bolsonaristas significa assentimento com uma faceta antissocial e autoritária no interior do Estado e do sistema político brasileiro. A internacionalizada burguesia situada no Brasil expressa por meio da candidatura oficial, seu apego ao legado do golpe de 2016: máxima elasticidade da lucratividade e um cenário de fusão entre interesses econômicos e regras institucionais que não se viu mais depois de 1930.

Eis aí a peste que nos aflige em profundidade. O país como lugar prioritário para novos ciclos de superacumulação que absorvem regiões, biomas e povo. Não há confrontos quanto a isso. O simulacro de polarização anula, na prática, a contestação sistêmica. Vai se consolidando assim uma ordem assimétrica espontânea, sem mais mediações. O regime de acumulação que torna o canibalismo social e a devastação ambiental condição sine qua non para a elevação das taxas de rentabilidade é acompanhado de discurso triunfalista e de chamados à “autodefesa”.

Esquecimento, neste contexto, é escolher seguir em frente, sem olhar o que fica nos extensos rastros deste capitalismo de desastre, continente adentro. “Oh, Minas Gerais”, antes lugar de evocação de uma eventual rebeldia de origem, se tornou um grito de desassossego, um soluço de dor, em função dos recorrentes “danos colaterais” das novas derramas requeridas pela cadeia global da mineração. A memória, ainda que tardia, requer desagravo, reparação e reinvenção.

Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo, doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ e professor da Universidade Federal de Rondônia.
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