Preços dos alimentos disparam com pandemia, guerra e crise ambiental
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- José Eustáquio Diniz Alves
- 07/03/2022
Foto: CEAGESP. São Paulo. Créditos: Gervacio Rosales / Licença Creative Commons
O Brasil adiou o carnaval, mas o atual clima nacional e global é digno de uma Quarta-feira de Cinzas. A Covid-19 continua causando danos após dois anos da declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelecendo o estado de pandemia, em 11/03/2020. Como “desgraça pouca é bobagem”, a doença do SARS-CoV-2 nem acabou e uma guerra injustificada e inoportuna tem provocado a perda de vidas inocentes e espalhado o pânico na economia mundial. Pairando sobre tudo isto – como uma “Espada de Dâmocles” – a crise climática e ambiental não dá trégua e só se aprofunda, como mostrou o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado na segunda-feira de carnaval (28/02).
O panorama nacional e global da pandemia
A pandemia da covid-19 atingiu o auge da média diária de pessoas infectadas em janeiro de 2022, embora tenha apresentado um declínio em fevereiro e uma continuidade de queda em março. Este padrão é generalizado para quase todos os continentes (menos a Oceania) e para o Brasil. No mundo o pico de infecções foi de 435 casos por milhão em 25/01 e caiu para 192 casos por mil em 04/03. No Brasil o pico de infecções foi de 884 casos por milhão em 29/01 e caiu para 199 casos por milhão em 04/03, conforme mostra o gráfico abaixo.
O único continente que apresenta alta em março é a Oceania e isto se deve ao aumento das infecções na Nova Zelândia. A primeira-ministra Jacinda Ardern, que teve grande sucesso na política de covid zero durante dois anos, foi vencida recentemente e tem assistido a um surto de casos da Covid-19 entre a população neozelandesa. Mesmo assim, o coeficiente acumulado de incidência na Nova Zelândia é de 40,5 mil casos por milhão de habitantes, enquanto do mundo é de 56,4 mil e no Brasil 135,4 mil por milhão de habitantes.
Embora a média de casos do novo coronavírus em 2022 tenha atingido valores sem precedentes, a média de óbitos não teve o mesmo comportamento. O gráfico abaixo mostra que todos os continentes apresentam coeficientes de mortalidade abaixo dos valores de 2020 e 2021. Por exemplo, o coeficiente de mortalidade do mundo teve um pico de 1,8 óbito por milhão em 29/04/2021 e caiu para 0,94 óbito por milhão em 04/03. O Brasil teve um pico de 14,5 óbitos por milhão de habitantes em 11/04/2021 e caiu para 2 óbitos por milhão em 04/03/2022.
Em termos de coeficiente acumulado de mortalidade, no dia 04/03/22, o mundo chegou a 761 óbitos por milhão e o Brasil chegou a 3.045 óbitos por milhão de habitantes. Para efeito de comparação, a Nova Zelândia registrou apenas 12 óbitos por milhão de habitantes no dia 04/03 (235 vezes menos do que o coeficiente brasileiro). Se o Brasil tivesse o mesmo coeficiente da mortalidade neozelandesa teria registrado menos de 3 mil mortes em toda a pandemia, ao invés dos 651 mil óbitos registrados em 04 de março de 2022.
O panorama econômico global, a pandemia e a guerra entre Rússia e Ucrânia
A pandemia da Covid-19 provocou, em 2020, a maior recessão da economia mundial no espaço temporal de um século. No ano de 2021, a economia global se recuperou, mas a renda per capita apenas voltou ao nível pré-pandêmico. Nas projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI), divulgadas em outubro de 2021, o crescimento econômico global em 2022 seria de 4,9%. Mas, em janeiro, o FMI reduziu a projeção para 4,4%. Com o surto da variante Ômicron em janeiro e a invasão russa da Ucrânia a perspectiva é de um crescimento menor em 2022. Em abril serão divulgados novos números e o mais provável é que as novas estimativas do FMI fiquem bem abaixo das projeções anteriores.
O mundo precisava de paz para se recuperar da pandemia. A guerra só gera perdas e sofrimento. No ritmo da última semana, o povo ucraniano será obrigado a suportar grandes danos humanos e enormes prejuízos econômicos.
A Rússia também deverá pagar um alto preço pela inconsequente invasão. Mas nenhum país vai sofrer sozinho, todos vão sofrer, pois vivemos em um mundo globalizado. Os efeitos sociais da situação econômica internacional serão mais sentidos pelos países mais pobres e pelas populações de baixa renda. Além da provável elevação do desemprego, a inflação deve corroer o poder de compra, especialmente de quem vive de salários e de auxílios governamentais.
Desta forma, fica cada vez mais distante a meta número 2 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), de acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhorar a nutrição até 2030. Isto porque o preço dos alimentos que já vinha subindo desde o ano passado, bateu um recorde histórico em fevereiro de 2022.
O Índice de Preços dos Alimentos (FFPI) da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) ficou em 140,7 pontos em fevereiro, o valor mais alto em cerca de 100 anos, sendo superado apenas pelo preço dos alimentos na época da 1ª Guerra Mundial e da pandemia da Influenza, no quinquênio 1915-1920.
O gráfico abaixo mostra que os recordes de alta do FFPI aconteceram em 1974 e 1975 (quando houve o primeiro choque do petróleo decorrente da guerra do Yom Kippur de 1973). A década de 1971-80 foi a que teve a maior média decenal da série, com 110,2 pontos. Nas décadas de 1980 e 1990 os preços dos alimentos caíram e marcaram os menores valores do século XX. Mas a comida voltou a ficar mais cara no século XXI e está atingindo o ápice em função da pandemia, da guerra da Ucrânia e da crise climática e ambiental.
Ainda é cedo para prever a média do preço dos alimentos da década 2021-30, mas o FFPI de 2021 ficou em 125 pontos e os dois primeiros meses de 2022 apresentaram valores acima de 135 pontos. Por conseguinte, a atual década pode registrar a maior média do preço dos alimentos, agravando a situação geral da insegurança alimentar.
O aumento do preço dos alimentos já vinha subindo em decorrência do rompimento das cadeias produtivas ocorrido na pandemia da Covid-19 e em função da crise climática e ambiental que tem dificultado a produção de alimentos devido às secas, enchentes, erosão e acidificação dos solos e das águas. O aumento de fevereiro reflete os fatores estruturais, mas também o aumento do preço dos combustíveis fósseis provocado pelo impacto das ações militares da Rússia. Os efeitos serão ainda maiores em março de 2022.
De fato, a guerra entre Ucrânia e Rússia ameaça o abastecimento global de alimentos. A Ucrânia e a Rússia são os principais exportadores de alguns dos alimentos mais básicos do mundo, representando, juntos, cerca de 29% das exportações globais de trigo, 19% da oferta mundial de milho e 80% das exportações mundiais de óleo de girassol. Mas a Rússia também exporta nutrientes agrícolas, bem como gás natural, que é fundamental para a produção de fertilizantes à base de nitrogênio. Cerca de 25% do suprimento europeu dos principais nutrientes das culturas, nitrogênio, potássio e fosfato, vêm da Rússia.
Portanto, com as condições geopolíticas desarticuladas, as maiores fontes de matéria-prima para a produção de alimentos estão sujeitas a limitações e não há alternativas de curto prazo. Os preços futuros do trigo dispararam nos últimos dias com a interrupção dos embarques de grãos da região do Mar Negro. Os preços dos fertilizantes aumentaram acentuadamente nos últimos meses, acompanhando o aumento dos custos do gás natural e do petróleo. O Brasil será bastante atingido pela escassez de insumos agrícolas e o agronegócio brasileiro deve ser obrigado a reduzir a produção a partir do segundo semestre de 2022. O pior está por vir e qualquer melhoria dependerá do fim da pandemia, assim como do fim da guerra.
O panorama climático e ambiental
Existem crises conjunturais e crises estruturais. A pandemia e a agressão russa são fenômenos conjunturais que devem ser superados em algum momento, no curto ou médio prazo. Mas a crise climática e ambiental é um evento estrutural que está saindo do controle, deve se agravar nas próximas décadas e pode se tornar irreversível. Em um novo relatório publicado na última segunda-feira (28/02), o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU alerta que ações urgentes são necessárias para lidar com os riscos trazidos pelas mudanças climáticas. O documento adverte que, para evitar a perda crescente de vidas, a redução da biodiversidade e o enfraquecimento da infraestrutura social e econômica, é necessária uma ação ambiciosa e acelerada para mitigar crise climática, com cortes rápidos nas emissões de gases de efeitos estufa.
Nos últimos 250 anos, a economia global cresceu cerca de 135 vezes, a população mundial cresceu 9,2 vezes e a renda per capita cresceu 15 vezes. Este crescimento demoeconômico foi maior do que o ocorrido no conjunto dos 200 mil anos anteriores, desde o surgimento do Homo sapiens. A pegada ecológica ultrapassou a biocapacidade do Planeta e superou a capacidade de carga da Terra. Segundo o relatório do IPCC: “As mudanças climáticas induzidas pela humanidade, incluindo eventos extremos mais frequentes e intensos, causaram impactos adversos generalizados e perdas e danos relacionados à natureza e às pessoas, além da variabilidade climática. Alguns esforços de desenvolvimento e adaptação reduziram a vulnerabilidade”.
A temperatura da Terra já aumentou 1,2º Celsius desde o período pré-industrial e a meta estabelecida no Acordo de Paris, em 2015, era limitar o aquecimento global a 2º C, com esforços para que ele não ultrapasse os 1,5º C. Mas, as gerações que estão nascendo agora e que terão muitas pessoas sobreviventes no ano de 2100, vão passar por quatro vezes mais extremos climáticos do que passam agora, no cenário de 1,5º C. Mas se as temperaturas aumentarem por volta de 2º C, elas terão cinco vezes mais inundações, tempestades, secas e ondas de calor do que agora. Por conseguinte, pelo menos 3,3 bilhões de pessoas estarão altamente vulneráveis às mudanças climáticas e 15 vezes mais propensas a morrer por condições climáticas extremas.
O degelo do Ártico, da Groenlândia e dos glaciares tem ocorrido de forma acelerada. Na Antártida, a quantidade de gelo estava aumentando ligeiramente até 2015, mas reverteu a tendência nos últimos anos. Em fevereiro de 2022, o gelo marinho ao redor da Antártida apresentou o menor nível de todos os tempos, desde que começaram as medições por satélite, ficando abaixo de 2 milhões de km2, pela primeira vez. Dependendo dos níveis das emissões futuras e da aceleração do aquecimento global, o nível dos oceanos deve subir dezenas de centímetros no século XXI. A maior parte do litoral brasileiro está ameaçado pelas inundações. Bilhões de pessoas de todo o mundo, que moram perto das áreas costeiras, serão afetadas diretamente e permanentemente.
Como mostrou Liana Melo, no artigo “Distopia climática à vista”, publicado aqui no # Colabora, em 28/02/2022, o novo relatório do IPCC aponta perdas e danos devastadores. Ela diz: “Vem por aí um mundo distópico do ponto de vista climático e ambiental, além de mais injusto socialmente, dado que os impactos do aquecimento global vão recair sobre os ombros daqueles que menos alimentam a crise climática: as populações mais pobres e vulneráveis.
De 2010 a 2020, a mortalidade causada por tempestades, secas ou enchentes foi 15 vezes maior nas regiões vulneráveis do que nas menos vulneráveis. Não bastasse a pandemia e a guerra, que já seria uma combinação absurda, os impactos das mudanças climáticas delineiam um mundo à beira do apocalipse.
E se as emissões de gases de efeito estufa forem reduzidas apenas no ritmo atualmente planejado, o aumento de temperatura resultante ameaçará a produção de alimentos, o abastecimento de água, a saúde humana, os assentamentos costeiros, as economias nacionais e a sobrevivência de grande parte do mundo natural. Cortes mais rápidos de emissões serão a única maneira de evitar tamanha distopia”.
Sem dúvida, a 6ª extinção em massa das espécies e o agravamento do aquecimento global são sinais de um colapso ecossocial que se vislumbra no horizonte. O aquecimento global é a maior ameaça existencial à humanidade. Assim como existe uma emergência de saúde pública (por conta do coronavírus), existe também uma emergência climática por conta do aumento da temperatura global. O mundo precisa aprender com o trauma da Covid-19 e acordar para a urgência de se resolver os problemas ambientais do século XXI. Como mostrei em artigo da Revista Latinoamericana de Población (2019), teremos uma “Terra inabitável”, se nada for feito com urgência, tal como disse o jornalista David Wallace-Wells.
Depois da Primeira Guerra Mundial e após o fim da pandemia da Influenza, em 1918 e 1919, houve o “maior carnaval de todos os tempos”. No auge da crise, o comércio e as fábricas haviam fechado as portas para evitar a contaminação em massa. Mas em 1920, no ano que marcou a estreia do Cordão da Bola Preta na cidade do Rio de Janeiro, houve uma grande folia no carnaval, comemorando o início de uma década de recuperação e progresso.
Infelizmente, o carnaval de 2022 (que foi adiado para abril), provavelmente, não será marcado pelo mesmo entusiasmo de 102 anos atrás. A conjugação de pandemia, guerra e crise ecológica tende a arrefecer o ânimo dos Pierrôs e Colombinas e fomentar o clima de 4ª feira de Cinzas. Na tradição Cristã as cinzas são um símbolo para a reflexão sobre a necessidade de conversão do estilo de vida. Na perspectiva ambiental, a 4ª feira de Cinzas é um símbolo para lembrar que as queimadas e fogos provocados pelas ações humanas criminosas (e potencializadas pelo aquecimento global) podem transformar a cobertura vegetal e a biodiversidade em pó. Desta forma, a vida na Terra e os futuros carnavais vão depender de um forte compromisso global e imediato com a proteção e a restauração do meio ambiente.
José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia e doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Fonte: Projeto Colabora (06/03/2022)