Correio da Cidadania

A Operação Mantiqueira

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Foto: Militares celebram dia do Soldado; imagem ilustrativa, não representa os fatos descritos no texto. Antônio Cruz / Agência Brasil

Diversos sites que abordam assuntos da política nacional divulgaram neste início de ano a notícia de que no mês de novembro de 2020 aconteceu em Piquete, pequena cidade paulista localizada no Vale do Paraíba, perto da fronteira com o Rio de Janeiro e Minas Gerais, um exercício militar levado a cabo pelo Exército alcunhado de Operação Mantiqueira. Tratou-se de uma atividade simulada que envolveu candidatos interessados em fazer parte da tropa de elite, os quais praticaram o combate a um grupo armado imaginário oriundo de uma desavença ocorrida no Partido dos Operários, encarregado de aliciar e treinar ativistas para o Movimento de Luta Pela Terra.

Vale lembrar que este evento não é único pois outros já existiram. Tais são os casos, por exemplo, da Operação Amazônia que levou em conta uma possível situação de guerra convencional entre dois países fronteiriços provocadores do aparecimento de movimentos guerrilheiros, da Operação Formosa concretizada pelo Corpo de Fuzileiros Navais juntamente com o Exército e a Aeronáutica e da Operação Alagoas voltada para o estabelecimento de uma pronta resposta frente a situações de calamidade pública.

Em termos comparativos sabe-se que outras Forças Armadas do mundo também executam estes treinamentos. Nos Estados Unidos da América do Norte, dentre inúmeros exercícios, ocorreu a ação da Contingency Expeditionary Force destinada a preparar as unidades castrenses para atuar no Iraque e no Afeganistão. Também no rol das múltiplas operações simuladas desenvolvidas pelas instituições bélicas israelenses aparece o Momentum que visa reproduzir todos os aspectos da defesa multidimensional, a limitação da ameaça de projéteis e a negação de qualquer vitória aos inimigos.

Apesar dessas simulações serem habituais, a Operação Mantiqueira, pela forma como foi concebida e executada causou reações adversas as quais podem ser enfeixadas no argumento de que passada várias décadas após o fim do período ditatorial os militares do Exército ainda persistem em continuar enxergando as manifestações sociais e políticas próprias da esquerda não só como inimigas mas, também, como movimentos a serem afrontados. Ao lado dele aparecem os discursos da inexistência de base legal e do desrespeito ao regime democrático.

O questionamento mais contundente partiu de um deputado federal do PSOL por meio da Lei de Acesso à Informação. Em resposta a ele o Exército justificou que o conteúdo informacional era fictício e serviu somente para contextualizar a realização do exercício, além de não possuir qualquer significado político, ideológico e de nacionalidade. Adicionou ainda que o mesmo visou apenas o desenvolvimento da capacidade de “combater Forças Irregulares, de Insurgência, de Guerrilha e/ou grupos armados contra o Estado de Direito”. Cabe observar que o fictício não surge a partir do nada, não emerge apartado da realidade objetiva pois uma base empírica é responsável pelo seu aparecimento. Ademais, as opções feitas pelos indivíduos não são neutras porque não é possível ao ser humano despojar-se dos conteúdos da subjetividade.

Mais observações precisam ser expostas. Uma delas se refere ao pensamento estratégico em vigor, estabelecido na Cúpula de Roma em fins do século passado, o qual prevê a decadência das guerras convencionais e propõe a constituição de pequenas unidades altamente profissionalizadas, dotadas de grande mobilidade e com capacidade de efetuar deslocamentos rápidos em pontos do território nacional cujos exemplos são as forças especiais. Ele outorga também aos integrantes das Forças Armadas o papel de agentes da conciliação o qual levou a ONU a criar o grupamento multinacional alcunhado de Capacetes Azuis. A Operação Viking 22, sob o comando do Ministério da Defesa procura atender esta diretriz. Parece certo então que os militares estão tentando colocar em prática o referido pensamento estratégico.

Porém há outra, referente ao fato de que eles ainda aparentam estar apegados ao obsoleto pensamento estratégico vigente no transcorrer da Guerra Fria adotado pela OTAN que previa um ataque amplo e surpreendente oriundo da União Soviética e seus aliados do Pacto de Varsóvia. Para enfrentá-lo se fazia necessário compor uma sólida e rápida defesa baseada em grandes contingentes alocados perto das fronteiras inimigas juntamente com o emprego de um contra-ataque nuclear. Aos países da América Latina, então quintal dos Estados Unidos da América do Norte, cabia combater os inimigos internos seguidores da ideologia comunista que no Brasil eram representados pela ALN, MR-8 e VAR-Palmares dentre outros. Note-se que tal incumbência constituiu um reforço ao comportamento anticomunista instaurado nas fileiras castrenses na década de trinta do século passado decorrente da Intentona Comunista.

Uma terceira aponta para os grupos terroristas hodiernos. A esse respeito sabe-se que os mais destacados são o Al-Qaeda composto por muçulmanos fundamentalistas, o Boko Aram, um fiel seguidor da lei islâmica, o Hamas que visa consolidar o Estado Palestino, o Estado Islâmico que almeja a criação de um emirado, o Talibã que deseja controlar o território do Afeganistão e o Hezbollah voltado para a eliminação de tendências colonialistas no Líbano. Observe-se que nenhum deles tem por fundamento qualquer ideologia esquerdista de cunho ocidental.

Ademais, os grupos que realmente ameaçam vários países democráticos na atualidade adotam ideologias de direita tais como os partidos Chega em Portugal, Liga na Itália, Alternativa na Alemanha e Reunião Nacional na França que seguem aumentando o número de representantes no Parlamento. Citem-se ainda o Skinheads germânico, o QAnon norte americano, o Alt-Right sueco e os incontáveis agrupamentos espalhados por todos os países do continente europeu hostis às minorias e aos imigrantes. Existem também associações menos expressivas de esquerda com viés anarquista, autonomista e marxista as quais costumam se manifestar contra os movimentos de direita e o sistema capitalista moldado pela globalização neoliberal cujos exemplos são o Rote Flora em Hamburgo e o Christiania, em Copenhague.

Derradeiramente cabe dizer que o marxismo, mais importante sustentáculo da esquerda, desde há muito tempo, não mais se apresenta como uma referência para os movimentos que almejam conquistar seus objetivos pelo uso da força. Com efeito, a partir da queda da Comuna de Paris, Marx e seus seguidores perceberam a inexistência de condições para a continuidade da revolução truculenta. Portanto, passaram a admitir que as mudanças sociais deveriam emergir por meio dos recursos oferecidos pelas democracias representativa e participativa, principalmente esta, bem como através do desenvolvimento cultural e dos processos educativos. Para tanto basta ler certas obras do próprio Marx, de Gramsci e de Poulantzas para confirmar a existência do acolhimento dessa conclusão.

É possível inferir então que a referida operação se assenta em concepções bem próximas do extemporâneo e da insustentabilidade, se mostra como mais um exemplo da indesejável e recorrente divergência dos fardados em relação aos paisanos quanto às ações dos grupos de esquerda ocorridas no passado, bem como expõe um cabuloso viés político e ideológico negado na resposta encaminhada ao deputado federal. Assim sendo, espera-se que, outra operação semelhante não se repita para evitar a concretização de um treinamento defasado, não minar a expectativa da aplicabilidade e, principalmente, obstar o uso inapropriado dos escassos recursos pertencentes ao erário nacional.


Antonio Carlos Will Ludwig é professor Aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes).

 

 

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