Masterclass de fim de mundo (5): Luta de classes sem forma
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- 26/04/2022
Nos primeiros dias de março de 2019, passageiros se depararam com bilheterias fechadas em diversas estações do metrô de São Paulo. Não era de todo estranho, já que dores de cabeça com o sistema de recarga de cartões são parte da rotina de quem usa o transporte público na cidade. Aquilo que do lado de fora das cabines parecia mais um problema técnico era, entretanto, um movimento invisível dos bilheteiros terceirizados contra descontos ilegais nos salários, entre outros expedientes ilícitos utilizados com frequência pela prestadora de serviços para reduzir seus gastos com pessoal (*155).
“Explorando o limite ambíguo entre a precariedade do sistema que já é normalmente disfuncional, a enrolação (...) e a ‘paralisação parcial’ de fato”, os terceirizados conduziram uma greve intermitente na qual as interrupções e o retorno ao trabalho se sucediam “em diversas bilheterias, de acordo com oportunidades, a força do momento”, e sem coordenação aparente (*156). A uma catraca de distância, o conflito passava quase despercebido aos olhos da maioria dos funcionários efetivos do metrô, conhecidos por sua intensa atividade sindical. Além de expor o abismo aberto pela terceirização dentro de um mesmo espaço de trabalho, a dificuldade em reconhecer aquela greve, completamente fora do rito oficial – sem começo nem fim delimitado, sem um anúncio claro, sem assembleias ou negociações formais –, é sinal da perda de forma do conflito social no mundo do trabalho sem forma (*157).
Como a mobilização subterrânea nas bilheterias, inúmeras paralisações de entregadores explodem e se desfazem sem contornos precisos, nos espaços de sombra voltados para o trabalho difuso que movimenta a logística urbana: docas de shoppings, bolsões de motos, centros de distribuição, dark kitchens e dark stores (*158), além dos ambientes virtuais. Se entre os terceirizados do metrô a insubordinação oscilava de uma estação a outra de acordo com as brechas e a pressão do momento, entre os motoboys é comum que o conflito salte de loja em loja, de um bairro a outro, ou de cidade em cidade de maneira descontínua e imprevisível: enquanto os primeiros grevistas chegam ao seu limite de forças e recursos, um novo grupo anuncia um breque noutro canto, contagiado por vídeos e relatos que se espalham em tempo real.
Quando a alta rotatividade do trabalho é a regra, as lutas também se tornam altamente rotativas: dentro de uma mesma cidade é comum que os entregadores da “linha de frente” de um protesto não tenham participado de movimentos anteriores. E se dificulta um processo consistente de cooptação das lideranças, a dinâmica centrífuga das lutas também desafia qualquer esforço de organização do movimento. Grupos de WhatsApp surgem e são abandonados a cada mobilização, trabalhadores se reúnem e se dispersam com a mesma volatilidade com que se interrompe uma conversa na calçada quando toca um novo pedido: como moléculas de gás que se condensam na hora da tempestade, é apenas no instante do enfrentamento que ganha corpo esse proletariado em nuvem.
“Uma ‘base’ que só existe num processo de enfrentamento”, que se “dissolve tão logo a ação declina”, “não está disponível para ser gerenciada” (*159). Mesmo as lideranças que despontam publicamente, longe de dirigir um contingente coeso de motoboys, contam, quando muito, com uma rede difusa de seguidores, também na nuvem. Para youtubers e influencers ligados ao movimento, menos dirigentes do que “empreendedores políticos” (*160), o engajamento na causa frequentemente se confunde com a carreira pessoal. Ganhar a luta não se dissocia de ganhar com a luta, o que pode significar desde a monetização de vídeos até a colaboração em ações de marketing, passando pelo convite para tornar-se dono ou gerente de uma operadora logística. A ambiguidade, que descreve uma zona de indistinção entre atuação política e trabalho, já está em alguma medida contida no vocabulário corrente dos entregadores: ser um “guerreiro” ou “ir pra luta” são expressões que podem se referir tanto ao conflito contra o aplicativo, como à guerra de baixa intensidade vivida no dia a dia da correria sobre duas rodas (*161). A profusão de candidaturas de motoristas de app nas eleições municipais de 2020, (*162) em sua maioria por legendas fisiológicas e de direita, representam muito mais uma via de ascensão individual do que a tática deliberada de um movimento articulado do setor, que não existe.
Hoje, estruturas organizativas só perduram fora do conflito à medida que passam a operar como engrenagens do próprio trabalho, caso das inúmeras associações profissionais, sindicatos e cooperativas que funcionam, para os entregadores, como canais de inserção no mercado de trabalho – e também dos grandes movimentos sociais de décadas atrás, que agora subsistem como mediadores do acesso a programas governamentais e ao mercado. Basta lembrar do mais novo êxito do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no setor financeiro, uma parceria com grandes grupos empresariais para levantar recursos para sete cooperativas de assentados – entre as quais figuram algumas das maiores produtoras de alimentos orgânicos do continente (*163) –, emitindo títulos ao alcance de “pequenos e médios investidores” em uma plataforma online (*164). Diante da insuficiência e do desmantelamento das políticas de fomento à chamada “agricultura familiar”, o MST recorreu diretamente ao mercado, numa operação que captou mais de 17 milhões de reais, sem a mediação de programas governamentais, em sintonia com a crescente valorização (e quantificação) do “impacto social” dos investimentos mundo afora (*165).
Por sinal, faz algum tempo que certos movimentos sociais migraram para a nuvem. Ao longo dos anos 2000, os desafios da gestão de acampamentos com centenas de famílias nas periferias, atravessados por disputas com poderes territoriais concorrentes e sempre na iminência do despejo, fizeram com que cada vez mais movimentos de moradia – com destaque ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) – passassem a reconhecer as ocupações como um momento necessariamente provisório e adotassem, como estrutura permanente, um grande cadastro de famílias. Enquanto outras organizações constituíam uma base cobrando aluguel em prédios ocupados, o MTST expandiu suas fileiras exigindo engajamento ao invés de dinheiro: a participação nas assembleias e atos rende pontos que condicionam o acesso ao “bolsa aluguel” negociado com o governo, e o score de cada família dita o ranking da fila de espera pela casa prometida (*166). Em suma, o “trabalho de base” deu lugar ao trabalho da base. Com um núcleo de tecnologia pioneiro, o movimento digitalizou parte dessa logística interna de ocupações e manifestações em um app e, mais recentemente, lançou a campanha “Contrate quem luta”, que conta com um bot de WhatsApp capaz de conectar sem-teto cadastrados a clientes em busca de uma série de serviços (*167).
Se “a fronteira entre formas de associação voltadas para a luta coletiva e aquelas destinadas a engajar ainda mais o trabalhador na exploração se esfumaçou” (*168), não é estranho que os conflitos do nosso tempo ocorram por fora das organizações consolidadas, ou até contra elas, mas sem edificar estrutura alguma em seu lugar. A maior onda de greves da história do país, de 2011 a 2018 – e não nos anos 1980, como se poderia supor –, tem tão pouco a ver com o ciclo de lutas que marcou o final da ditadura que a comparação fica quase descabida (*169). Ao ressurgir em nichos fordistas relativamente estáveis quarenta anos atrás, o sindicalismo ainda nutria um horizonte de ampliação de conquistas, no qual se forjaram novas e importantes organizações de massa, integradas no esforço geral de “construção da democracia” – mantra que, de lá pra cá, se dissiparia “num presente perpétuo de trabalho redobrado” (*170). Ao longo da última década, as greves passaram “a ocorrer, cada vez mais, no campo das reações imediatas, urgentes” (*171): pelo pagamento de salários atrasados e o cumprimento da legislação, contra o fechamento de unidades e demissões em massa, entre outras reivindicações “defensivas”. Levados adiante à revelia dos sindicatos e frequentemente hostis a seus representantes, tais movimentos por vezes assumiam traços insurrecionais, como as rebeliões nos canteiros de grandes obras do finado Programa de Aceleração do Crescimento (*172) ou as paralisações selvagens de motoristas de ônibus fora das garagens às vésperas da Copa do Mundo (*173).
A despeito da sua dimensão sem precedentes, a avalanche de greves dos anos 2010 não deixou margem para qualquer “acúmulo de forças” – nem aqui, nem na China. Ao contrário do que se poderia imaginar, a situação era parecida no coração industrial do planeta, atravessado por uma onda de motins operários no mesmo período. Sem canais oficiais de representação, as paralisações dispersas e violentas que se multiplicaram nas fábricas chinesas terminaram “incapazes de construir uma organização durável ou de articular demandas políticas” (*174). Com ares de “saque”, a greve aparecia como momento de “arrancar tudo o que fosse possível” a troco do dia a dia insuportável nos distritos industriais: “recuperar salários, bônus de férias e benefícios não pagos, ou simplesmente se vingar de gerentes que cometiam assédio sexual, de patrões que pagavam capangas para espancar trabalhadores em luta etc.” (*175) Outras vezes, os operários “simplesmente pegavam o dinheiro e saíam”, chutando o balde – ou melhor, “levantando o balde” e abandonando os alojamentos, para usar a expressão típica dos trabalhadores migrantes chineses que viralizou recentemente ao lado de vídeos críticos à vida nas fábricas (*176).
Sem o antigo “horizonte de ‘conquistas’ a serem acumuladas, numa perspectiva mais ampla de integração progressiva”, o que resta às lutas do nosso tempo é refluir aos poucos ou escalar imediatamente, “assumindo sem qualquer mediação formas insurrecionais (sem antes e depois)” (*177). Daí que protestos contra um aumento nas tarifas de transporte se tornem, em poucos dias, terremotos nas ruas do Brasil ou do Chile; que a violência policial incendeie cidades na Grécia, nos Estados Unidos ou na Nigéria; que um aumento nos combustíveis paralise o Equador, a França, o Irã ou o Cazaquistão. Ainda que as reivindicações iniciais forneçam contornos mínimos a esses levantes, sua explosão tende a extrapolá-las e diluí-las em uma revolta generalizada contra a ordem – que acaba por se traduzir em muitos casos, de maneira imprecisa, em uma revolta “contra o governo” (*178).
Tão intensos quanto descontínuos, sem jamais assumir formas estáveis, os conflitos que se proliferam de um extremo ao outro do globo podem ser descritos como “não-movimentos sociais” (*179). Trazida à tona nos debates de certos círculos militantes, a expressão vem a calhar num contexto de “luta de classes sem organização de classe” (*180), cada vez mais atomizada, cuja propagação passa menos por estruturas centralizadas do que por ações que se replicam de maneira dispersa. Não-movimentos se expandem através de gestos que podem ser “copiados e imitados, acumulando instâncias de repetição” (*181) e se ramificando como memes na internet – só que nas ruas, numa dinâmica que retroalimenta as redes. É o caso do Breque dos Apps, que não era uma organização nem uma campanha planejada, mas um gesto replicável difundido por meio de vídeos que seguiam o mesmo roteiro. E também das paralisações no setor de telemarketing logo após a chegada do novo coronavírus por aqui; dos bloqueios de dezenas de rotatórias por pedestres vestidos com coletes refletivos na França; dos “catracaços” estudantis e da “primera línea” nos protestos chilenos... Através da multiplicação desses atos descentralizados, os conflitos adquirem escala sem adquirir uma forma estável (quando a forma se fixa, o meme perde força e corre o risco de se converter em marca, em imagem vazia de conteúdo, numa estetização da revolta; *182).
Pressionados por tumultos difusos e sem interlocutores com quem negociar, governos e empresas ao redor do mundo têm o desafio de “responder unilateral e racionalmente a uma insurgência ‘irracional’” (*183). A formalização dos não-movimentos – isto é, sua tradução a uma gramática legível pelas instituições – aparece, aqui, como precondição para sua neutralização e incorporação. Contudo, mesmo quando as revoltas saem vitoriosas em suas reivindicações imediatas, a volta à normalidade costuma carregar a sensação de que nada melhorou, ou mesmo de que a situação piorou. A incapacidade do Estado em absorver por completo a energia de contestação deixa uma insatisfação latente, que pode se reverter no avesso do impulso original – não foi essa, afinal, a continuidade entre a revolta de junho de 2013 e a insurgência bolsonarista (*184)? Da eleição de políticos que assumem abertamente a violência social à degradação em guerras civis propriamente ditas, com frequência os não-movimentos terminam acelerando a tendência destrutiva da própria crise (*185). Mobilizações intensas e desgastantes que, entretanto, não saem do lugar: estariam os conflitos do nosso tempo presos também ao ciclo infernal do nèijuǎn?
Nas paredes carbonizadas das estações de metrô de uma Hong Kong sublevada, frases como “prefiro virar cinzas do que pó” ou “se queimarmos, vocês queimam conosco” condensavam uma imagem precisa não apenas do beco sem saída enfrentado pelos amotinados daquela cidade, mas do clima sufocante que pesa sobre as revoltas do nosso tempo (*186). Se faz pouco sentido falar em acúmulo de forças, “a raiva certamente se acumula” (*187), e está sempre a um triz de descambar para a violência entre os próprios esfolados. Sem mudanças significativas nas condições de trabalho, não é incomum escutar motoboys defendendo as paralisações como uma forma de, ao menos, se vingar dos aplicativos (*188) – mas o ódio coletivo pode rapidamente se voltar contra um motorista numa briga de trânsito ou contra um ladrão de motos pego em flagrante e prestes a ser linchado. Com os mesmos contornos vingativos e suicidas das explosões individuais de desespero, os enfrentamentos frequentemente se reduzem a uma escalada de violência sem sentido (*189). E alguém precisa ficar para varrer – como ocorreu na manhã seguinte à maior manifestação da história do Chile, quando imigrantes venezuelanos se organizaram para limpar voluntariamente as ruas do centro de Santiago; ou em Quito, naquele mesmo outubro de 2019, onde a faxina das barricadas ficou a cargo de um mutirão organizado pela própria Coordenação Nacional Indígena do Equador (CONAIE) após o acordo que encerrou o levante. Vistos daí, motins e rebeliões das mais variadas dimensões se tornam mais um dado rotineiro do nosso cotidiano catastrófico.
Curiosamente, a expressão “não-movimentos” apareceu primeiro na literatura sociológica para descrever o “estado constante de insegurança e mobilização” das camadas urbanas subalternas “cujos meios de vida e a reprodução sociocultural frequentemente dependem do uso ilegal dos espaços públicos da rua”, numa “longa guerra de atrito” com as autoridades nas metrópoles do Oriente Médio contemporâneo (*190). Nada muito distante da correria de marreteiros ou motoboys nas ruas brasileiras, sempre prontos a driblar uma blitz ou burlar a fiscalização, não pagar a passagem ou cruzar o farol vermelho para se virar: “esforços dispersos”, individuais, cotidianos e contínuos, que podem envolver “ações coletivas quando os ganhos são ameaçados” (*191). Com apenas uma faísca, essa rotina desesperadora de trabalho, que transita a todo momento entre a resistência e o engajamento, pode se romper numa explosão desesperada – não custa lembrar que foi a autoimolação de um ambulante cujo carrinho de frutas acabara de ser confiscado que serviu de estopim aos protestos de 2011 na Tunísia.
Na viração das esquinas, entre “empregos de merda” e “trampos” temporários – ali onde não há nada de promissor à vista a não ser cair fora –, a insubordinação irrompe com a mesma urgência, o mesmo imediatismo da produção just in time. Os conflitos explodem como um gesto desesperado, um grito de “foda-se” em que se misturam “sofrimento, frustração e revolta” (*192), frequentemente sob a forma de um ato de desforra individual – ou, quando muito, coletiva. Assim como a recente onda de deserções do trabalho nos Estados Unidos (*193) e em outras partes do mundo, a debandada dos call centers nos primeiros dias da pandemia no Brasil era um sinal de recusa a uma rotina que, para arcar com a “normalidade” em colapso, torna-se ainda mais infernal. A cada nova emergência – sanitária, ambiental, econômica, social –, gira o parafuso da intensificação do trabalho, todos integralmente mobilizados num esforço sem fim em que não se formam senão “experiências negativas” (*194). Se os “não-movimentos” trazem uma boa notícia, contudo, ela é justamente essa: eles “indicam que o proletariado já não tem nenhuma tarefa romântica” (*195), sem ter nada a esperar e também nada a perder.
Esta é a última parte, de cinco, deste artigo anônimo e coletivo sobre os conflitos entre capital e trabalho no Brasil em pandemia. Leia as outras partes.
Masterclass de fim de Mundo (1): Conflitos sociais no Brasil em pandemia
Masterclass de fim do Mundo (2): Assalto à nuvem
Masterclass de fim do Mundo (3): Sobrevivendo no purgatório
Masterclass de fim do Mundo (4): Abandonai toda esperança
Assina o artigo “um grupo de militantes na neblina”.
Fonte: Neblina.xyz
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Notas:
1-39: Masterclass de fim de Mundo (1): Conflitos sociais no Brasil em pandemia.
40-72: Masterclass de fim do mundo (2): Assalto à nuvem
73-118: Masterclass de fim do mundo (3): Sobrevivendo no purgatório
119-154: Masterclass de fim do mundo (4): Abandonai toda esperança
155. Dois funcionários do Metrô, “Metrô SP: Terceirizados da bilheteria denunciam descontos abusivos”, Passa Palavra, 3 mar. 2019.
156. “Bilheteiros do Metrô param os atendimentos contra descontos abusivos do salário”, Passa Palavra, 7 mar. 2019. Chama atenção que, no início da mobilização, um grupo de bilheteiros tenha recorrido ao sindicato que os representa legalmente frente a empresa e recebido a resposta de que “a greve só é benéfica aos funcionários públicos”, pois para os terceirizados a greve “não é legalmente aceita, e sim a paralisação”.
157. Dois anos e uma pandemia depois, numa estratégia acelerada pela perda de receita durante o período de isolamento social, o governo de São Paulo anunciaria a extinção do contrato com as prestadoras de serviço e o fechamento de todas as bilheterias do metrô, transferindo o trabalho dos funcionários para os usuários por meio de um app e máquinas de autoatendimento (Fernando Nakagawa, “Metrô de SP triplica prejuízo em 2020 e quer fechar bilheterias para economizar”, CNN, 1 abr. 2021).
158. A expansão do serviço de delivery por aplicativos vem produzindo, ao redor do mundo, a proliferação de cozinhas e lojas “fantasmas” – instalações sem atendimento presencial aos clientes, que por vezes reúnem diversos estabelecimentos virtuais, reduzindo custos com pessoal, mobiliário, estoque e aluguel (Nabil Bonduki, “Dark kitchens, que vieram para ficar, são boas para as cidades?”, Folha de S. Paulo, 16 fev. 2022). Nova frente de investimentos imobiliários, elas também se tornam pontos de reunião de entregadores, onde, com frequência, eclodem conflitos (ver, por exemplo, Treta no Trampo, “A greve na loja da Vila Madalena entra no 2º dia”, Twitter, 6 nov. 2021).
159. Francesc e El Quico, “Notas em defesa da centralidade do conflito”, Passa Palavra, 2 mar. 2021.
160. A expressão é utilizada por Rodrigo Nunes para lançar luz sobre a dimensão financeira da militância bolsonarista – um verdadeiro “fenômeno empreendedorístico”, que pode ajudar a compreender uma dinâmica presente em outras mobilizações. “Fosse pela criação de movimentos habilitados a captar recursos de destinação nebulosa, fosse pela conquista (ou reconquista) de espaços na mídia tradicional, fosse pela monetização de canais no YouTube e perfis no Instagram, eles constituíram um circuito em que a acumulação de capital político se convertia facilmente na acumulação de capital econômico, e vice-versa. Essa convertibilidade é, aliás, simultaneamente o meio pelo qual a trajetória de empreendedor político se constrói e um fim. Ao consolidar-se como influenciador, o indivíduo se cacifa para pleitear um cargo público, seja por eleição ou indicação; o cargo público, por sua vez, traz notoriedade e uma audiência fiel, retroalimentando a performance nas redes sociais. Mesmo quando não conduz a uma carreira na política, esse tipo de empreendedorismo sempre envolve vantagens pecuniárias, tanto diretas (convites para palestras, contratos publicitários e editoriais, venda de produtos como camisetas e adesivos, verbas públicas) quanto indiretas (perdão de dívidas fiscais, empréstimos, acesso a autoridades).” (Rodrigo Nunes, “Pequenos fascismos, grandes negócios”, Piauí, out. 2021).
161. Não é incomum que, durante um piquete em um shopping center, alguém apareça com uma caixa de som portátil tocando Racionais MC's, SNJ, 509-E, DMN, entre outros grupos de rap nacional, que despontaram nos anos 1990 cantando a guerra civil não declarada em curso nas periferias brasileiras. Ao longo da década seguinte, a contradição social expressada nas letras ganharia contornos cada vez mais ambíguos, entre a resistência e a adesão à concorrência generalizada. Nos versos que enunciam que “o hoje é a realidade que você pode interferir” e que “o futuro será consequência do presente” (Racionais MC's), ou que “se tu lutas tu conquistas” (SNJ), a convocação pode representar o chamado para um combate em que a conquista só é possível por meio da interferência coletiva no presente – a luta social. Mas também pode ser a expressão de uma condição objetiva que se impõe a todos aqueles para quem o dia a dia é uma sucessão de batalhas pela sobrevivência, como o “desempregado, com seus filhos passando fome e uma grande família” (SNJ). É preciso “não medir esforços” (SNJ) ou, como explicam letras compostas pelos próprios entregadores, ser “ninja” e “arriscar a vida” tanto na correria do cotidiano como para brecar o sistema – “todo dia nessa luta” ambivalente. (Racionais MCs, “A Vida é Desafio” em Nada como um dia após o outro dia, 2002; SNJ, “Se tu lutas tu conquistas” em Se tu lutas tu conquistas, 2001; Sang, “Diz pro iFood”, Rzl Prod., 2020 e Família019 CPS, “22 de junho de 2020”).
162. Leandro Machado, “Eleições municipais 2020: os entregadores e motoristas do Uber que viraram candidatos”, Folha de S. Paulo, 13 nov. 2021.
163. Para uma reflexão crítica sobre a trajetória do MST, ver “MST S.A.”, Passa Palavra, 8 abr. 2013 e Ana Elisa Cruz Corrêa, Crise da modernização e gestão da barbárie: a trajetória do MST e os limites da questão agrária, tese de doutorado, UFRJ, 2018.
164. Paula Salati, “MST inicia captação de R$ 17,5 milhões no mercado financeiro para produção da agricultura familiar”, G1, 27 jul. 2021 e Maura Silva e Luciana Console, “Fundo de investimento permite financiar cooperativas de pequenos agricultores”, MST, 22 mai. 2020.
165. “Apesar das dificuldades enfrentadas com a falta de auxílio [na pandemia], políticas de fomento e acesso à créditos, camponesas e camponeses seguem fomentando soluções”, afirma um pequeno balanço da operação financeira publicado no site do MST. Para os milhares de interessados que não conseguiram adquirir suas cotas, o movimento promete repetir a dose em breve (Lays Furtado, “Finapop consolida horizontes de investimentos para a agricultura familiar camponesa”, 28 out. 2021). Sobre a gestão financeirizada do conflito social que se delineia a partir desta e de outras iniciativas, estruturadas para capturar “fluxos de rendimentos gerados por ações sociais”, ver Isadora Guerreiro, “Impacto Social, Apps e financeirização das lutas”, Passa Palavra, ago. 2021 e “O futuro dos trabalhadores é a rua?”, Passa Palavra, 14 fev. 2022.
166. “O sistema de pontuação foi originado pelos movimentos populares urbanos do campo Democrático Popular, e serve como fila não apenas para o acesso a processos de construção, mas para qualquer outro relacionamento da família com a organização.” De ferramenta de controle interno, nota Isadora Guerreiro, o MTST faria do cadastro também um instrumento de negociação com o poder público. Em meados de 2010, um coletivo já alertava para o uso do controle de presença em “assembléias, reuniões políticas ou atos públicos considerados importantes pela direção”, e até mesmo em ações de “campanhas eleitorais”, para determinar quem tinha acesso “às promessas do movimento: casas, bolsas em Faculdades, cursos de formação, loteamentos”. Isso quando o cadastro não era “também meio de controle e monitoramento para (...) prestação de contas do movimento junto ao Estado, em razão de convênios e parcerias afins estabelecidas com ele.” (Isadora Guerreiro, Habitação a contrapelo: as estratégias de produção do urbano dos movimentos populares durante o Estado Democrático Popular, tese de doutorado, FAU-USP, 2018 e Passa Palavra, “Entre o fogo e a panela: movimentos sociais e burocratização”, Passa Palavra, 22 ago. 2010).
167. “Núcleo de tecnologia - Setor de formação política – MTST”.
168. Francesc e El Quico, “Notas em defesa da centralidade do conflito”, cit.
169. A comparação da série histórica de greves encontra-se em DIEESE, “Balanço das greves de 2018”, Estudos e Pesquisas, n. 89, abr. 2019.
170. Um grupo de militantes, “‘Olha como a coisa virou’”, cit.
171. Segundo o “Balanço das greves de 2017” do DIEESE, “(...) a ênfase defensiva da pauta das greves continua, mas observam-se algumas rupturas, algumas descontinuidades. Pode-se dizer, de modo breve, que o aspecto civilizatório das greves defensivas passa a ser relativizado. Ou seja, sem deixar de abordar aqueles direitos historicamente descumpridos, as greves passam a ocorrer, cada vez mais, no campo das reações imediatas, urgentes: contra a realização de demissões e contra o atraso no pagamento de salários.” (DIEESE, Estudos e Pesquisas, n. 87, set. 2018).
172. Entre 2009 e 2014, greves explosivas ocorreriam nas obras das usinas hidrelétricas de Jirau, Santo Antônio e Belo Monte, do Complexo Portuário de Suape, da Refinaria Abreu e Lima e do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – “greve não, terrorismo”, explicaria um operário de Jirau ao filmar pelo celular o incêndio nos alojamentos do canteiro de obras. Ver, além do documentário Jaci: sete pecados de uma obra amazônica (Caio Cavechini, 2015) as pesquisas de Cauê Vieira Campos (Conflitos trabalhistas nas obras do PAC: o caso das Usinas Hidrelétricas de Jirau, Santo Antônio e Belo Monte, dissertação de mestrado, UNICAMP, 2016) e Rodrigo Campos Vieira Lima (Desenvolvimento e Contradições Sociais no Brasil contemporâneo. Um estudo do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj, dissertação de mestrado, UNESP, 2015).
173. Para o então prefeito Fernando Haddad, a paralisação dos motoristas e cobradores de São Paulo à revelia do sindicato não era exatamente uma greve, mas “uma guerrilha inadmissível. Como você entra no ônibus e manda o passageiro descer? Entra no ônibus e joga a chave fora?” (“Greve de ônibus trava SP, e Haddad fala em ‘guerrilha’”, ANTP, 21 mai. 2014). No rescaldo dos conflitos em torno do transporte que sacudiram o país, aquela onda de paralisações selvagens, entre maio e junho de 2014, se somou a protestos e “catracaços” de passageiros em terminais de ônibus e estações de metrô. Para registros dessas lutas em diferentes cidades, ver “Sem choro nem vela: paralisações no transporte em Goiânia”, Passa Palavra, 18 mai. 2014; “De baixo para cima: a greve dos rodoviários em Salvador”, Passa Palavra, 27 mai. 2014 e “São Paulo: greve dos metroviários e catracaço dos usuários”, Passa Palavra, 5 jun. 2014.
174. Eli Friedman, Insurgency Trap: Labor Politics in Postsocialist China, Londres, ILR Press, 2014, p. 13. No início dos anos 2010, militantes e intelectuais que acompanhavam as greves na China ainda “esperavam uma generalização da passagem de ações ‘defensivas’ para ações ‘ofensivas’, nas quais os trabalhadores procurariam aumentos salariais além das leis e normas existentes, em vez de ‘reagir’ quando os patrões os empurravam para longe demais e não cumpriam as normas legais. Nos anos que se seguiram, porém, essas demandas ‘reativas’ (por salários não pagos, seguro social, etc.) permaneceram dominantes nas lutas trabalhistas.” (Chuang, “Picking Quarrels”, Chuang 2: Frontiers, 2019).
175. A onda de greves dos anos 2010 não era indício do “surgimento de um ‘movimento trabalhista’ tradicional, nem de qualquer coisa parecida com isso. Não existe tal movimento na China, e não é simplesmente devido à repressão, porque também não existe tal movimento na Europa, nos Estados Unidos ou em outros lugares sem a opressão ‘dura’ característica da política estatal chinesa.” (Lorenzo Fe, “Overcoming mythologies: An interview on the Chuang project”, Chuang, 15 feb. 2016).
176. G., “Scaling the Firewall, 1: #LiftTheBucket”, Chuang, 24 set. 2020.
177. Francesc e El Quico, “Notas em defesa da centralidade do conflito”, cit.
178. A difusão da pauta não deixa de ser outro sintoma da perda de forma das lutas. Em junho de 2013, a existência de um interlocutor organizado, o Movimento Passe Livre (MPL), ainda conferia algum contorno aos distúrbios das ruas, especialmente em São Paulo. “A explosão da revolta é (...) também a explosão do sentido e, na medida em que essa explosão tem que ser contida, a manutenção da pauta (em que se empenha o MPL) cumprirá um papel limitador fundamental.” (Caio Martins e Leonardo Cordeiro, “Revolta popular: o limite da tática”, Passa Palavra, 27 mai. 2014). Anos depois, na França, a insurgência dos coletes amarelos pareceu se radicalizar conforme perdia importância a pauta inicial do imposto sobre o combustível; aliás, entre os manifestantes, havia até aqueles que defendiam abertamente que não se reivindicasse nada, para não dar ao Estado a chave da desmobilização (ver “On se bat pour tout le monde”, Jaune - Le journal pour gagner, 6 jan. 2019).
179. “Onward Barbarians”, Endnotes, dez. 2020.
180. A expressão, usada por Chris King-Chi Chan para descrever os conflitos fabris na China, coincide curiosamente com a síntese do marxista brasileiro Luiz Carlos Scapi sobre os protestos de junho de 2013: “movimento de massas sem organização de massas” (ver C. K. Chan, The challenge of labour in China: strikes and the changing labour regime in global factories, tese de doutorado, University of Warwick, 2008).
181. Adrian Wohlleben, “Memes Without End”, Ill Will, 16 mai. 2021. Ver também Paul Torino e Adrian Wohlleben, “Memes With Force – Lessons from the Yellow Vests”, Mute, 26 fev. 2019.
182. Basta lembrar como aquela violência popular anônima e difusa que chocou os noticiários brasileiros durante os tumultos de junho de 2013 – na época, chamada simplesmente de “vandalismo” ou “baderna” – foi gradualmente substituída, já na ressaca das grandes manifestações, pela figura midiática cristalizada do black bloc. O refluxo dos conflitos torna-se visível quando o que antes viralizava e se transformava como meme se reduz a uma marca estática ou uma encenação simbólica da revolta. Há algo disso na insistência para “não voltar à normalidade” dos incansáveis manifestantes que continuaram a se reunir regularmente na inóspita rotatória central de Santiago meses depois do auge do estallido social chileno; assim como nos grupos franceses que, passado o auge da mobilização, tentaram transformar os “coletes amarelos” em uma identidade fixa.
183. Eli Friedman, Insurgency Trap, cit., p. 19.
184. Discutimos tal continuidade a fundo em “Olha como a coisa virou”, cit.
185. Nesse sentido, Ana Elisa Corrêa e Rodrigo Lima observam que “tais explosões acabam por agravar a fragmentação generalizada e tornar ainda mais abstrata a própria revolta”, a qual termina por contribuir “para ampliar o quadro de risco que compõe o arsenal” de realização da acumulação de capital nos nossos dias (“Revolta popular e a crise sistêmica: a necessária crítica categorial da práxis”, Anais do XIV Encontro Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia, Editora Realize, 2021).
186. Apurando o olhar em meio às miragens geopolíticas que envolviam os protestos de Hong Kong em 2019, um grupo de militantes encontrou um aparente paradoxo: “Como é possível que o agrupamento menos abertamente político – aquele que parece não querer nada mais do que ver a cidade queimar – seja, na verdade, o único com uma intuição precisa do terreno político real? Isto porque, por um lado, a sua própria falta de coordenadas políticas é um reflexo exato do estado da consciência coletiva do movimento. O seu ato literal de dilacerar a cidade é também um desdobramento figurativo do fundamento político e ideológico da cidade.” (Chuang, “O Deus Dividido”, Chuang, jan 2020).
187. “Estamos de volta ao tempo do ódio de classe... na ausência de classes no sentido histórico e marxista do termo”, conclui a análise de outro grupo sobre os protestos contra o passaporte sanitário na França. “Aqui, a raiva certamente se acumula, mas não tem o caráter da ‘experiência proletária’ que objetivou a luta de classes e inscreveu nela ciclos de luta e, portanto, continuidades e descontinuidades com períodos de maior e menor intensidade que se sucederam no tempo. (...) Aqui, a sensação de que nada realmente começou dá a impressão de que a própria temporalidade desapareceu.” (Temps Critiques, “Demonstrations Against the Health Pass… a Non-Movement?”, Ill Will, 5 out. 2021).
188. Sem perspectiva de conquistas, as reivindicações dos trabalhadores dão lugar à vingança. Em julho de 2021, um rastro de destruição chamaria atenção dos jornais de São Paulo: em diferentes pontos da cidade, dezenas de ônibus vinham sendo abordados por grupos pequenos e não identificados que murchavam pneus, cortavam a correia dos motores, quebravam vidros ou danificavam as chaves. A misteriosa onda de sabotagem foi atribuída a “ex-funcionários desligados das empresas de ônibus” (Adamo Bazani, “Polícia faz diligências para identificar autores de vandalismo contra ônibus em São Paulo e classifica participantes como criminosos”, Diário do Transporte, 12 jul. 2021). Em 2019, um coletivo de jovens demitidos de empregos precários em pequenos estabelecimentos na Itália se organizou para assombrar seus antigos “patrões de merda” indo protestar na frente das lojas com o rosto coberto por máscaras brancas – “fazê-los pagar” poderia dizer respeito tanto às verbas rescisórias quanto à vendetta (Francesco Bedani e outros, “È l’ora della vendetta?”, Commonware, 12 set. 2019).
189. A ocupação das ruínas de uma loja de fast food em Atlanta, incendiada em meio à rebelião de junho de 2020 nos Estados Unidos, depois que outro jovem negro foi morto ali pela polícia, e de onde adolescentes saíam todas as noites “para bloquear as estradas com lança-chamas, armas, espadas e veículos”, ilustra bem essa dinâmica. O relato de um grupo de militantes “intoxicados por uma mistura de adrenalina de 17 dias seguidos de revolta, um grande estoque de álcool saqueado, MDMA” e muito mais, conta como os “ares nitidamente ‘anti-políticos’” daquele espaço rapidamente evoluíram para uma mistura de “paranoia e fatalismo”: “estou pronto para morrer por esta merda!” era o que se escutava dos “jovens negros armados até os dentes” que se revezavam em vigília para “defender um estacionamento que continha pouco mais do que um prédio destruído” de um suposto ataque iminente de supremacistas brancos ou da polícia. A ocupação terminaria “privatizada” por grupos identitários armados, com um saldo de sete tiroteios e a morte de uma criança de oito anos (Anônimos, “Wendy’s: luta armada no fim do mundo”, Passa Palavra, mai. 2021). Em meio a lutas travadas num contexto de profunda desagregação social, esses militantes toparam com problemas que soam familiares a quem tenta se organizar nas periferias brasileiras. Num balanço de mais de uma década de “tentativas de criar ocupações urbanas, assentamentos próximos de cidades, grupos de base em bairros de periferia”, uma militante de Pernambuco relatava como “alguns bons frutos pareciam não compensar os fracassos e as frustrações, que se avolumavam. As avaliações eram recorrentes: a pobreza extrema dificultando a disciplina, (…) a juventude distante dos objetivos políticos, a veloz rotatividade fazendo a formação sempre recomeçar do zero. É um diálogo de surdos, dizia um dirigente. Não podemos admitir que nossas mobilizações virem clínicas de recuperação, dizia outro. A percepção geral é de que se trata de um povo degenerado – quase incapacitado para a organização social. (...) Não temos palavras em nosso vocabulário, conceitos em nossas teorias, páginas em nossas cartilhas e espaço em nossas reuniões para assimilar a dilacerante realidade da periferia.” (Carolina Malê, “Critérios de periferia”, Passa Palavra, set. 2010).
190. A ideia de “não-movimentos sociais” parece ter sido cunhada pelo sociólogo iraniano-americano Asef Bayat, em estudos sobre as transformações nas cidades do Oriente Médio, e empregada mais recentemente pelo autor para refletir sobre a origem das “revoluções sem revolucionários” que varreram a região no início da década passada (ver A. Bayat, Revolution without revolutionaries: making sense of Arab Spring, California, Stanford University Press, 2017, p. 104-108, e N. Ghandour-Demiri e A. Bayat, “The urban subalterns and the non-movements of the arab uprisings: an interview with Asef Bayat”, Jadaliyya, 26 mar. 2013). Segundo o Bayat, “existem tensões constantes entre as autoridades e esses grupos subalternos, cuja subsistência e reprodução sociocultural muitas vezes depende do uso ilegal de espaços públicos externos. A tensão é frequentemente mediada por suborno, multa, confronto físico, punição e prisão, quando não permanece marcada pela insegurança constante, por táticas de guerrilha como ‘operar e fugir’. (...) A ligação entre os não-movimentos e o episódio das revoltas reside no fato de que os ‘não-movimentos’ mantêm seus atores em constante estado de mobilização, mesmo que os atores permaneçam dispersos, ou seus vínculos com outros atores permaneçam frequentemente (mas nem sempre) passivos. Isto significa que quando eles sentem que há uma oportunidade, é provável que forjem protestos coletivos coordenados, ou se fundam numa mobilização política e social maior” (The urban subalterns and the non-movements of the arab uprisings, cit.). Curiosamente, um dos exemplos mencionados pelo sociólogo são os “milhares de motociclistas que sobrevivem trabalhando ilegalmente nas ruas de Teerã, transportando correspondência, dinheiro, documentos, mercadorias e pessoas, em conflito constante com a polícia” (A. Bayat, Revolution without revolutionaries, cit., p. 97).
191. A. Bayat, Revolution without revolutionaries, cit., p. 106-108.
192. Temps Critiques, “Sur la valeur-travail et le travail comme valeur”, Lundi Matin, 22 nov. 2021.
193. Nos últimos meses de 2021, demitir-se também virou meme nos Estados Unidos. Numa gravação em selfie no TikTok, uma jovem funcionária de fast food pula pela janela do drive-thru enquanto, rindo, anuncia sua demissão para o gerente. Com a hashtag #antiwork, o vídeo em que uma trabalhadora usa os alto-falantes de um supermercado para xingar os chefes e declarar sua saída circula ao lado de fotos de lojas sem atendentes, onde um cartaz escrito à mão explica que toda equipe pediu as contas. Os memes dão notícia de uma onda demissionária muito mais ampla (4 milhões de demissões por mês), descrita por um ex-Secretário do Trabalho como uma “greve geral não oficial” – a qual também não deixa de ser um sinal da perda de forma do trabalho. Entre relatos, piadas e denúncias contra empresas e patrões, as publicações em fóruns online como o Antiwork: Unemployment for all, not just the rich! (https://reddit.com/r/antiwork) oscilam entre o anarquismo e o “empreendedorismo de si mesmo” – com alguma frequência, “ser seu próprio chefe” aparece como alternativa aos empregos de merda. (Ver Robert Reich, “Is America experiencing an unofficial general strike?”, The Guardian, 13 out. 2021 e Passa Palavra, “Greves e recusa ao trabalho nos EUA e no mundo: novo ciclo de lutas?”, Passa Palavra, out. 2010).
194. “Nestas recentes reações contra o trabalho, escutamos gritos de sofrimento, frustração e revolta misturados, numa expressão que a princípio não é coletiva, mas particular, individual e subjetiva. Enxergar aí uma consciência coletiva seria uma ficção, pois, hoje, são a noção e a experiência de uma consciência coletiva que tendem a se alterar, se dissolver, se decompor, já que, do trabalho, partem apenas ‘experiências negativas’ – e negativas no sentido original do termo, e não no sentido hegeliano e marxista (...). Da mesma forma que o proletariado não pode mais afirmar uma identidade operária, ele não pode mais se referir a uma ‘experiência proletária’” – e só existe politicamente, nesse sentido, em “suas ações imediatas”: frágeis e instáveis parênteses que se fecham tão logo o conflito cessa. (Temps Critiques, “Sur la valeur-travail et le travail comme valeur”, cit.). Paulo Arantes já localizara “essa recentralização negativa do trabalho na origem da atual explosão de um novo sofrimento nas empresas e nas sociedades” em comentário aos achados de Christophe Dejours (“Sale Boulot”, cit.).
195. Endnotes, “Onward Barbarians”, cit.