Correio da Cidadania

A convergência putinista

0
0
0
s2sdefault



Foto: Presidential Executive Office of Russia

Mais que “tempos sombrios” (como identificam os nostálgicos do lulismo, do progressismo e da estabilidade democrática burguesa abalada desde a crise mundial de 2008), vivemos uma época bizarra e interessante. Não sabemos se ela vai durar, se veio para ficar ou se em breve voltaremos à apologia da globalização capitalista. Ao menos na dimensão virtual das redes antissociais, o nacionalismo como gramática explicativa e afeto mobilizador tem predominado sobre o liberalismo e o marxismo. É o que evidencia a histeria masculina em torno da guerra da Ucrânia.

Na ausência do socialismo soviético, não basta ressuscitar Stalin enquanto “guia genial dos povos” em meio às incertezas planetárias do século XXI. Vale tudo, até mesmo apostar em Putin como figura viril, supostamente capaz de enfrentar o “nazismo” ucraniano e o imperialismo estadunidense. Muita gente cai nessa esparrela, preferencialmente se for lulista, independentemente da predileção pessoal e identitária de Bolsonaro pelo ditador pan-eslavista em Moscou. Essa verdadeira salada russa (para fazer a piada óbvia) no campo das ideias revela toda a confusão ideológica que aproxima a “esquerda” nacionalista do “patriotismo” da extrema-direita. A derrocada do sonho neoliberal não encontrou um marxismo ressurgente, pelo contrário: a decadência da ex-esquerda brasileira e mundial se aconchega na confusão programática que o nacionalismo inevitavelmente promove.

A crise política internacional e a polarização dela decorrente rapidamente trocaram os figurinos burgueses da política institucional. Antes tínhamos tecnocratas inodoros como Clinton, FHC, Tony Blair, Angela Merkel. Eles foram sendo sucedidos por figuras odiosas como Trump, Bolsonaro e Boris Johnson. A boçalidade e o histrionismo tornaram-se recursos fundamentais do jogo político, no lugar dos bons modos e da passividade elitistas. É a resposta possível, na ordem democrática realmente existente, à crise de representação (negada pelos lulistas) e de legitimação (na acepção habermasiana) que o status quo capitalista sofre. Como animar a cidadania na vida dos trabalhadores? Como fazer o “povo” acreditar no capitalismo, ainda, se não por meio do carisma, substituto da fraquejante hegemonia burguesa na sociedade civil (segundo a explicação weffortiana de mais de meio século atrás, é sabido…)? (*1)

O equívoco teórico e analítico fundamental, de liberais e de progressistas, é supor que “golpes” via impeachment (veja-se agora a situação do governo peruano!) ou regimes políticos convertidos em “iliberais” não possam fazer parte da experiência democrática burguesa no mundo. Nós, marxistas, refutamos essas idealizações e esses desejos que a mídia empresarial e o lulismo nos empurram.

Quando fracassa o liberalismo, é o nacionalismo que assume a frente do palco das ideologias burguesas. Mas, no plano do senso comum, ser nacionalista hoje em dia é quase sinônimo de ser de esquerda – quando, na verdade, o nacionalismo expressa a antecipação reacionária à insatisfação popular que deveria ser estimulada pela esquerda em direção socialista e revolucionária. O que não é possível, pois a ex-esquerda passou a crer na democracia representativa e no Estado-Nação.

Deixando de lado classismo e marxismo, a transformação da ex-esquerda – consumindo autores como Losurdo, Korybko (*2) e Dugin ou cultivando os saudosismos stalinista e lulista – levou-a ao velho chauvinismo pré-Primeira Guerra Mundial da Segunda Internacional, à época denunciado por Lenin, Trotsky e Rosa Luxemburgo (*3) em nome do internacionalismo proletário. Mais uma vez a tragédia torna-se farsa, agora um século depois.

Em termos societários, esses saudosismos correspondem à nostalgia conservadora do bolsonarismo, do “olavismo” e do próprio Dugin – da extrema-direita, enfim. O antiliberalismo de uns afina-se com o dos outros, por meio do nacionalismo como ideologia – mas também como ideia fora do lugar, pois se trata de resposta desesperada à falta de horizontes emancipatórios da atualidade ou às mudanças promovidas pelo “globalismo”, respectivamente.

O carisma populista é truculento e antidialógico, tanto à direita como à “esquerda”. Não por acaso Bolsonaro copia o repertório chavista de ataques ao judiciário burguês (*4). Tal dimensão manipulatória favorece o estabelecimento de um “discurso único”, em torno de certezas belicosas tão propícias a um momento como o de guerra, caso da invasão russa da Ucrânia. Inseguros com a falta de esperança inerente ao presente capitalismo tardio e com a força dos movimentos identitários de mulheres e negros, muitos homens brancos animam-se com Putin lançando bombas sobre trabalhadores ucranianos. Imaginam estar a enfrentar o imperialismo estadunidense por meio de um redivivo mas há tempos inexistente campismo.

O chão social deste fenômeno é a ascensão da China enquanto potência mundial, a qual permite que muitos continuem apresentando-se como marxistas ainda que passem efetivamente a defender a sobrevivência do capitalismo por meio do modelo estatólatra e autoritário chinês. E entusiasmem-se com a transformação definitiva da antiga União Soviética numa República das Bananas versão petroleira. Assim deixa de ser ideia fora do lugar o “orientalismo” losurdiano: o modismo intelectual transforma-se em justificativa para a barbárie. Sabe-se que a posição marxista clássica não admite preferências por um imperialismo ou outro, evitando o nacionalismo metodológico da geopolítica e assumindo o ponto de vista internacionalista dos trabalhadores contra as guerras interburguesas.

A ascensão chinesa e o questionamento da força global dos EUA explicam também a simpatia de Bolsonaro e de parte da extrema-direita planetária pelo belicismo e autocratismo de Putin. Por isso o bolsonarismo tampouco é ultraliberal ou identificado com o imperialismo ocidental – sua subserviência é voltada a Trump. Tudo isso só aprofunda a balbúrdia político-ideológica em que parte da esquerda faz questão de se enredar.

Surpreendeu a extrema agitação das redes sociais nos últimos meses, sobretudo nas primeiras semanas, em torno da guerra, com o súbito aparecimento de tantos “especialistas” em geopolítica e história russa/eslava, todos reproduzindo industrialmente – à moda do gado bolsonarista – as fake news de Putin a respeito do Euromaidan ucraniano. Ainda mais porque sabemos que esses minions do lulismo e do stalinismo jamais estariam numa guerra se não fosse atrás de computadores ou celulares. Mais do que ideologia, estão em busca de monetização através de clickbaits. Afinal de contas, Youtube e cia. compõem o novo universo empreendedorista do capitalismo de plataforma.

Mas talvez aqui estejamos observando apenas um aperitivo – um exercício de treinamento virtual dos robôs ou gente agindo como tal? – do que será a campanha eleitoral deste ano, com o lulismo a reproduzir todo o repertório de baixarias do bolsonarismo nos WhatsApps da vida (*5). Sabemos que o nacionalismo lulista tem como inimigos não só as direitas tradicionais, mas também nós, da esquerda classista. Estejamos preparados! É preciso derrotar Bolsonaro nas ruas, bem como a conciliação de classes que retroalimenta o bolsonarismo.


Referências
    1. Veja-se: https://contrapoder.net/colunas/bolsonarismo-x-lulismo-beco-sem-saida-para-os-trabalhadores-brasileiros/
    2. A respeito, veja-se a resenha de Jonas Medeiros à obra de Korybko relativa às “guerras híbridas”: <https://passapalavra.info/2020/01/129676/>
    3. Momento propício para a esquerda contemporânea rever a questão das nacionalidades nas reflexões dessas grandes lideranças comunistas.
    4. <https://noticias.uol.com.br/colunas/diogo-schelp/2021/08/04/a-fraude-nas-eleicoes-de-2022-ja-aconteceu.htm>
    5. <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/03/whatsapp-suspende-contas-do-pt-e-restringe-grupos-de-comunicacao-de-lula.shtml>


Marco Antonio Perruso é professor de Sociologia; pesquisador na área de movimentos populares, esquerda e teoria marxista; militante do PSOL e do Andes-SN.
Fonte: Contrapoder.

 

 

Gostou do texto? Sim? Então entre na nossa Rede de Apoio e ajude a manter o Correio da Cidadania. Sua contribuição é fundamental para a existência de um jornal realmente independente.

0
0
0
s2sdefault