Correio da Cidadania

Eleições são encruzilhada histórica e fascismo bolsonarista ameaça identidade brasileira

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Com vantagem de Lula nas pesquisas, Bolsonaro apela contra rejeição
Polarização foi a palavra mais usada no país nos últimos tempos. Mas se antes era conotada negativamente, passou a ser a chave para distinguir as questões que de fato se colocam em jogo, não só nas eleições deste domingo como em todo o curso histórico e político que nos aguarda. Se Lula não representa a superação das trágicas contradições brasileiras, ao menos não traz em seu bojo as bandeiras que ameaçam o direito de existir de todos os grupos sociais afastados do poder econômico, militar, paramilitar e religioso. É sobre este brutal quadro que o Correio da Cidadania conversou com o cientista político Rudá Guedes Ricci, último entrevistado antes da eleição de 2 de outubro.

Sobre a eventualidade da vitória de Lula, que parece próxima, Ricci elenca a vasta série de desafios que se coloca perante seu futuro arranjo de governabilidade, que, passada a euforia, se verá cercada por uma complicada variedade de componentes. “Temos a intenção e a circunstância. A intenção é um governo de reconstrução nacional, amplo, plural, com elementos de inovação, como a agenda ambiental, a criação de estatais que coordenem um impulso para a “nova economia” do século 21. A circunstância será da recessão mundial, da marca da continuidade e desgaste da guerra na Ucrânia, do embate diário com o fanatismo bolsonarista (para além da figura da família Bolsonaro), o equilíbrio num governo extremamente amplo, a administração da demanda reprimida”, sintetiza.

Isto é, o futuro governo terá suas capacidades de articulação política e convencimento exigidas em grau máximo. Aqueles que desfrutaram de vantagens obtidas nos quatro anos de obscurantismo e banditismo bolsonarista até a última gota estarão lá, com seus achaques e chantagens. E aqueles que pagaram o alto custo socioeconômico de um governo que produziu destruição e morte também, a rogar por urgentes melhorias em suas vidas, devastadas por uma mistura de ultraliberalismo selvagem com delinquência pura e simples, como se vê em especial nas fronteiras de proteção ambiental.

Não se trata, como a entrevista tenta elucidar, de uma disputa de condomínio de poder que opõe projetos com nuances administrativas e ideológicas particulares, mas que em última instância não ameaçam as bases fundantes do contrato social. E o Brasil é apenas um dos cenários desta contenda que pode direcionar os rumos da humanidade pelas próximas décadas.

“A imprensa e mesmo as instituições brasileiras não tratam deste governo como uma ameaça a toda identidade e civilização brasileira. Ora, tal ameaça está presente na Hungria, na Itália, na França, na Ucrânia, na Rússia, na Suécia, em Portugal, no Chile, para citar alguns países que se não têm governos de extrema-direita, mas têm a extrema-direita como segunda força política nacional. Esta excitação fascista tem várias motivações sociais: a crise econômica e de emprego (identificada como causada por migrantes), a intolerância disseminada nas redes sociais, a fragmentação das identidades coletivas (com coletivos ou comunidades fechadas, em formato de bolhas, cada vez mais radicalizadas e fechadas em suas pequenas pautas), ao aumento da desigualdade social no mundo”.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como você descreve o processo político eleitoral brasileiro de 2022? O que mudou em relação a 2018?

Rudá Ricci: São muitas mudanças. Em 2018, Jair Bolsonaro era outsider e antissistêmico. Em 2022, é vidraça, presidente em exercício que cometeu muitos erros básicos e não cumpriu o que prometeu. Talvez, a promessa mais visível foi a aliança com o Centrão. Na campanha, dizia que destruiria a “velha política”. Ora, nada mais velho que o clientelismo do baixo clero expresso no Centrão. Também cometeu erros grosseiros, como imitar uma pessoa com falta de ar no ápice da pandemia, que ofendeu muitos brasileiros, algo que foi capturado como a mais chocante e negativa expressão de Jair Bolsonaro durante seu governo.

Do outro lado, temos o retorno de Lula como adversário, muito mais experiente, popular e articulado que Fernando Haddad, extremamente paulista, classe média e liberal.

Finalmente, as redes sociais. Bolsonaro não teve mais o efeito surpresa do uso dos grupos de Whatsapp, como ocorreu em 2018. A campanha de Lula se revela muito mais profissional que a de Bolsonaro. Bolsonaro só alimenta a sua própria bolha (relevante, ao redor de 20% a 30% do eleitorado), enquanto Lula atrai muitos outros setores e segmentos. Nas redes sociais, o domínio bolsonarista de 2018 foi sendo debelado de julho para cá.

As diferenças são muitas, portanto. Mas a polarização entre bolsonarismo e lulismo se mantém. Num país tão desigual (7º país mais desigual do mundo, segundo a ONU), não há espaço para liberais da terceira via.

Pandemia, crises quase diárias, conluios público-privados em todos os setores essenciais da administração pública, destruição ambiental coordenada de Brasília e ainda por cima uma gestão sabotadora da maior crise sanitária da história do país. Qual o grau de desmoralização da nova República que Bolsonaro e toda a retaguarda militar pró-64 produziram? Como sair disso?

O pacto da Nova República, um pacto entre elites políticas, econômicas e militares, foi sendo descontruído ao longo dos anos 1990, mas foi realmente confrontado a partir de 2015. Lula, de alguma maneira, reafirma este pacto. Já Bolsonaro foi um personagem desajeitado e afoito, que não soube como projetar sua estratégia inusitada, uma extrema-direita ultraliberal, sem partido de massas, mas com mobilização e excitação permanente de sua base social pelas redes sociais.

Uma novidade de tipo fascista que se revelou limitada ao seu bloco mais fanático. De certa maneira, este estilo e limitação facilita a vida de Lula, caso vença a eleição de outubro. As maiores dificuldades de Lula estarão na administração da extremamente ampla aliança eleitoral e coalizão de governo num cenário de recessão mundial. Tal coalizão envolverá chantagens diárias tendo a ameaça do bolsonarismo extremado que se insinuará nas ruas.

Correio da Cidadania: O que é possível imaginar, passada a euforia eleitoral, de um terceiro mandato de Lula? Quais caminhos você considera viáveis para uma reorganização política e econômica do Brasil com repercussões positivas para a população?

Rudá Ricci: Temos a intenção e a circunstância. A intenção é um governo de reconstrução nacional, amplo, plural, com elementos de inovação, como a agenda ambiental, a criação de estatais que coordenem um impulso para a “nova economia” do século 21 (nova matriz energética, novas tecnologias industriais, a percepção da infraestrutura e políticas sociais como fundamentos do desenvolvimento e retomada do crescimento econômico), a ampliação de direitos sociais (em especial, de mulheres, LGTQIA+, indígenas e negros), política diplomática mais ofensiva e articuladora, dentre outros.

A circunstância será da recessão mundial, da marca da continuidade e desgaste da guerra na Ucrânia, do embate diário com o fanatismo bolsonarista (para além da figura da família Bolsonaro), o equilíbrio num governo extremamente amplo, a administração da demanda reprimida. Os desafios e obstáculos serão imensos e tenho a impressão de que o partido de Lula não está preparado – enquanto organização política que se destina a tomar o poder – para enfrentar estas contradições.

Lula, enfim, parece mais consciente que o partido. Isto porque o partido se tornou uma máquina eleitoral e deixou de discutir o Brasil com seus militantes.

Correio da Cidadania: Como conviver com uma oposição repleta de elementos, pra dizer o mínimo, golpistas? A criminalização do bolsonarismo será condição inelutável para a retomada de um projeto de democracia crível?

Rudá Ricci: São três possibilidades: divisão do governo em “reservas de mercado” para cada bloco de apoiadores que formarem uma identidade específica; acordos clientelistas com bancadas no Congresso Nacional que diminuam a barganha de forças internas e em disputa no interior do governo e; articulação com a sociedade civil para criar mobilizações por demandas populares, diminuindo o ímpeto das elites clientelistas e conglomerados econômicos. Não será nada fácil e teremos muita instabilidade e jogos de poder durante quatro anos.

Há, ainda, a perda de hegemonia da esquerda. Os valores humanistas e de esquerda eram hegemônicos no Brasil e se percebia, nas duas décadas finais do século 20, que poucos brasileiros tinham coragem de se identificar como de direita. Hoje, os valores hegemônicos são liberais, de direita, como o empreendedorismo, o controle fiscal de gastos públicos e a meritocracia. Tal situação invoca a necessidade de um projeto pedagógico do governo, algo que Lula fugiu nos seus dois governos anteriores.

Lula nunca adotou um modelo de tomada de decisão efetivamente participativo e mobilizador da sociedade, como nos modelos federativos da Bolívia (envolvendo aldeias indígenas), Equador, Venezuela, dentre outros países latino-americanos. Lula privilegiou acordos de cúpulas políticas, econômicas, sindicais e sociais. Terá de inovar.

Correio da Cidadania: Qual a responsabilidade dos setores não alinhados à esquerda, alguns até aliados recentes do antipetismo mais ferrenho mas que não querem caminhar ao lado do bolsonarismo, nessa reconstrução nacional?

Rudá Ricci: Imensa. Cobrarão uma fatura enorme. De certa maneira, foram setores que apoiaram o governo Bolsonaro no final, alguns ingressando na sua campanha a partir do segundo turno das eleições de 2018. Lembremos que os setores mais fiéis do empresariado foram os pequenos, médios e redes varejistas. O setor financeiro e indústrias de transformação entraram mais tarde. Algo semelhante ocorreu com grandes igrejas evangélicas, como a Universal. Esses setores cobraram duramente do governo Bolsonaro e se revelaram pragmáticos. Quando perceberam que o barco vazava, não tiveram pudor de dar acenos à Lula. É exatamente o que farão num governo Lula.

A agenda dos grandes empresários é a mesma desde a década de 1990. Se expressa nas políticas formuladas pelo Instituto Atlântico – liderado por Paulo Rabello de Castro -, pelos Instituto Liberais e pelo Instituto Milenium. Paulo Rabello de Castro e Jorge Gerdau foram os líderes do empresariado na ofensiva política sobre a agenda estatal brasileira. Abandonaram rapidamente o discurso do Estado Mínimo e passaram a disputar fundos públicos. Esta será sua intenção em 2023.

Correio da Cidadania: A polarização continuará? Não estamos diante de uma encruzilhada civilizatória de abrangência global que, num esforço de ampliação do olhar, poderá definir o rumo deste século?

Rudá Ricci: A encruzilhada civilizatória tem como um dos polos o fascismo. O governo Bolsonaro é nitidamente fascista: mobilizador, confunde a figura do líder com a Nação, violento, estimulador do terrorismo estocástico (em que o discurso do líder dispara instruções e motivações para atos violentos de lobos solitários), organizador de “câmaras de eco” que interditam o contraditório ou diálogo, que ameaça instituições e normas de convivência.

A imprensa e mesmo as instituições brasileiras não tratam deste governo como uma ameaça a toda identidade e civilização brasileira. Ora, tal ameaça está presente na Hungria, na Itália, na França, na Ucrânia, na Rússia, na Suécia, em Portugal, no Chile, para citar alguns países que se não têm governos de extrema-direita, mas têm a extrema-direita como segunda força política nacional. Esta excitação fascista tem várias motivações sociais: a crise econômica e de emprego (identificada como causada por migrantes), a intolerância disseminada nas redes sociais, a fragmentação das identidades coletivas (com coletivos ou comunidades fechadas, em formato de bolhas, cada vez mais radicalizadas e fechadas em suas pequenas pautas), ao aumento da desigualdade social no mundo.

As organizações de extrema-direita se multiplicam numa miríade que se espraia pelos países, como as comunidades 4chan e 8chan, a Manosfera (que atrai celebridades efêmeras como Monark), o Tradicionalismo (que envolve parte do PDT a partir da corrente Nova Resistência), a cultura vaporwave (linguagem cifrada usada pela extrema-direita dos EUA e que está sendo empregada por Carlos Bolsonaro e Carla Zambelli) ou libertarianos (que disseminam valores ultraliberais e hiperindividualistas, como uso de armas e antiestatais, como o MBL). Enfim, são múltiplos núcleos extremistas que envolvem muitos jovens. Não parece que é algo efêmero ou passageiro.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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