A eleição de nossas vidas
- Detalhes
- Marcelo Badaró Mattos
- 30/09/2022
Ricardo Stuckert
A princípio, poderia parecer difícil, para qualquer militante da esquerda socialista que foi educado (corretamente) a relativizar a importância das eleições, subordinando-as à dinâmica das lutas sociais, aceitar o fato de que as eleições presidenciais brasileiras de 2022 possuem outro caráter. Elas terão sim um peso determinante sobre o futuro imediato da própria esquerda socialista e, mais importante ainda, sobre as próprias condições de sobrevivência da maioria da população.
Não há por que disputar aqui caracterizações ou a pertinência de categorias de análise para qualificar e compreender o que Bolsonaro representa. Do ponto de vista de quem escreve este texto, trata-se de um neofascista, mas chamem-no como quiserem – extrema-direita, protofascista, pós-fascista, e até populista de direita. O que realmente importa é não fugir da realidade e reconhecer o tamanho da ameaça.
Em um primeiro mandato, Bolsonaro foi capaz de: criar as condições para a destruição da floresta amazônica numa rapidez e dimensão que transforma o Brasil de esperança em vilão no contexto da catástrofe climática que o mundo enfrenta (e à destruição da floresta está associada a aceleração sem precedentes recentes do genocídio indígena, assim como dos ataques a quilombolas, ribeirinhos e povos da floresta em geral); agitar contra todas as medidas sanitárias e contra a vacinação da covid-19, promovendo falsas curas e desprezando o sofrimento de milhões, com a perspectiva eugenista de sacrificar os “mais frágeis” no altar satânico da economia que “não pode parar”, sendo diretamente responsável por boa parcela das quase 700 mil vidas perdidas para doença; asfixiar até o limite da sobrevivência as instituições públicas nas áreas da saúde, educação, ciência e tecnologia, cultura... Enquanto isso, criou, junto com seus apoiadores no Congresso, o maior mecanismo de desvio de dinheiro público para interesses políticos privados e corrupção, através das emendas do relator, num “orçamento secreto” que faz parecer piada qualquer conversa sobre pedaladas ou pedalinhos; reunir em torno a si uma tropa de generais reacionários, viúvas de um poder despótico que não exerceram por serem a geração do oficialato que se formou já no fim do regime ditatorial e que agora exalam seu odor pútrido de orgulhosos saudosistas do terrorismo de Estado, ao mesmo tempo que abocanham com gana todas as “boquinhas” que se lhes oferecem; de estimular, através dos seus discursos e exemplos, a exacerbação cotidiana e escancarada do racismo, da misoginia, da lgbtfobia e de todas as perversas taras anticivilizatórias dos “cidadãos de bem” que o mitificam; mobilizar uma legião de fanáticos frustrados e a postos para descontar sua frustração psíquica e social num culto à violência como arma (literalmente) de extermínio dos seus inimigos projetados; corroer por dentro as já muito débeis instituições e os limitadíssimos direitos democráticos, do regime surgido da transição transacionada pelo alto ao fim da ditadura militar.
É pouco? Imaginem o que poderia fazer com mais quatro anos na presidência. Como neofascista (ou usem o termo que preferirem), Bolsonaro e o bolsonarismo possuem a especificidade, em relação à marca dominantemente desmobilizadora da trajetória histórica da contrarrevolução no Brasil, de se caracterizarem como um movimento de massas, de bases sociais pequeno-burguesas, principalmente, dispostas a seguir o “Mito” em sua sanha exterminista, contra a esquerda, as camadas empobrecidas da população (“vota no Lula? Não tem mais marmita”) e todos os avanços civilizatórios que as mobilizações populares possam alguma vez ter conquistado no país.
Mas o fascismo do século 21 germina em um solo histórico próprio, em que a progressiva blindagem que os regimes democráticos regidos pelas batutas do neoliberalismo ergueram contra as demandas da maioria trabalhadora da população, acabou por criar democracias totalmente porosas à ação política fascistizante de correntes políticas como o bolsonarismo.
Por isso, chegando ao governo pela via eleitoral, em 2018, Bolsonaro continua apostando suas fichas na reeleição este ano, ainda que sem descartar por um minuto sequer a agitação golpista pelo fechamento do regime. Avançar com seu projeto radicalmente autocrático, pelas portas abertas no próprio regime democrático, tem sido a sua estratégia, até aqui bem sucedida.
A hora é agora, eleger Lula no primeiro turno, sim!
A julgar pelas pesquisas eleitorais, hoje, o quadro mais provável é o de uma vantagem razoável para Lula, mas com grande chance de segundo turno, no qual, graças ao voto das mulheres, das camadas mais pauperizadas e do Nordeste, Bolsonaro sairia do Planalto derrotado.
Quem quer que tenha militado em uma organização política de esquerda radical nas últimas décadas já sofreu pressões pelo voto útil e já respondeu a essas pressões, afirmando que a eleição se resolve em dois turnos e que no primeiro turno se afirma a convicção política, votando na candidatura que expressa mais diretamente seu programa, para no segundo turno escolher o menos pior. Nenhum desses argumentos pode ser invocado hoje, sem o risco de um arrependimento profundo logo mais.
As eleições no Brasil não estão decididas. O prato que nos foi servido nos últimos anos, resultante de uma receita com ingredientes como uma facada “em boa hora”, com tuitadas de quatro estrelas por sobre a cobertura de turma da toga e recheio de mamadeiras de piroca, já nos causou suficiente indigestão para termos certeza de que uma eleição nem sempre se decide com antecedência no Brasil de Bolsonaro.
Nesse contexto, a simples passagem de Bolsonaro ao segundo turno ampliaria em muito a reverberação de seu discurso golpista de que o “datapovo” demonstra como as pesquisas são manipuladas e as urnas eletrônicas fraudadas. Um discurso que pode não ser suficiente para a efetivação de um golpe de Estado (que, de resto, não conta com sustentação no capitalismo central, nem parece contar com uma base militar efetivamente disposta a romper com as regras de um jogo que tanto lhe tem sido complacente). Mas, que certamente fortalecerá o bolsonarismo para credenciar-se como principal polo de oposição a um eventual governo Lula em 2023. E ai de Lula e da direção petista se continuarem apostando que a vitória nas urnas, com uma frente eleitoral ampla, será suficiente para calar Bolsonaro e seus fanáticos seguidores, ou para governar com o mesmo tipo de oposição que tiveram na primeira década do século.
Não nos esqueçamos também que, mesmo que seja derrotado eleitoralmente e não encontre espaço para efetivar seus planos golpistas, o atual presidente ainda terá a caneta e o acordo com o Centrão por mais dois meses, para tornar ainda mais difícil reduzir os danos monstruosos de seus quatro anos na cadeira. O respaldo de uma disputa em dois turnos só tornaria mais perigoso esse período de final de mandato.
Por isso, não basta derrotar Bolsonaro no segundo turno. Se existe uma chance de conferir a vitória a Lula no primeiro turno, essa chance deve ser aproveitada, sim ou sim.
Claro, camaradas revolucionários, que, legitimamente, apoiam candidatos dos partidos da esquerda radical: Lula e o PT continuam sendo Lula e o PT e seu projeto é governar aliado às representações da burguesia e a seu serviço, para administrar a decadência destrutiva do capitalismo dependente brasileiro e, no limite, retomar alguns programas sociais focalizados e políticas de inclusão barganhadas com as forças da reação.
Como as condições de 2023 serão ainda mais inóspitas que as de vinte anos atrás, os limites serão ainda maiores para a estratégia democrático-popular de conciliação de classes. E Lula sabe disso, pois ao escolher Alckmin como vice, está passando o recado inequívoco para o grande capital de que se seu governo não for suficientemente confiável, podem lhe dar outro golpe, pois o vice é um legítimo campeão da burguesia paulista.
Ainda assim, depois do furacão de retrocessos pós-golpe de 2016 e, especialmente, no mandato de Bolsonaro, quem ainda pode negar que esse reformismo de baixíssimo impacto – ou essa opção social-liberal, de terceira via, etc. – seria hoje algo muito distinto do que temos com o neofascista no governo? Quando menos, porque nos abriria mais espaço para criticar e fazer política pela esquerda da conciliação de classes. O que depende não apenas da vontade proclamada pela esquerda radical, mas também de sua capacidade de ir além das práticas fraticidas e das limitações programáticas que a empurraram para uma posição quase marginal diante do processo político dos últimos 20 anos, reconheçamos com humildade.
Já para os que acreditam que Ciro Gomes é o mais preparado e ainda acham viável seu programa neodesenvolvimentista (com contraditórias fatias de austeridade) de administração da crise capitalista, a pergunta que fica é: sabendo que ele não irá ao segundo turno este ano, porque arriscar levar Bolsonaro ao segundo turno e com isso ameaçar a existência não só de candidaturas como a de Ciro daqui a quatro anos, como a própria certeza de que teremos novas
eleições em 2026?
Diante de tamanhos riscos, dessa encruzilhada monumental, a cada dia que passa a margem se estreita mais e as horas que nos restam não podem ser consumidas por outras prioridades que não a de eleger Lula presidente no primeiro turno. Como o Brasil de Bolsonaro já devia nos ter ensinado, é questão de vida ou morte.