Correio da Cidadania

Lula deverá atacar neoliberalismo para conter popularização da extrema-direita

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Confira temas discutidos por Lula e Bolsonaro no 1º debate; Auxílio Brasil  foi um deles
A eleição presidencial deste 30 de outubro aproxima-se mais de um plebiscito civilizatório do que da decisão entre dois modelos de administração pública. De um lado, a ofensiva contra o tecido social e a natureza, a lei do mais forte, representada por Bolsonaro. De outro, um projeto de conciliação que coloca as formas tradicionais de exploração sob algum acordo social. É esta a síntese que Ruy Braga, sociólogo do trabalho, apresenta em entrevista concedida ao Correio.

“Estamos diante desse dilema, entre uma sociedade do trabalho apoiada na exploração do trabalho assalariado e um tipo de sociedade que se apoia na expropriação social da massa, do povo, em detrimento das suas condições de reprodução e favorecimento do lucro imediato de alguns setores econômicos poderosos, como é o caso notório do agronegócio”.

Em caso de vitória de Lula, os desafios de sua governabilidade são imediatos. E, apesar de tudo, acessíveis. Desde que os programas de transferência de renda sejam prestigiados, além de uma retomada da ação estatal na coordenação do investimento e da regulação mínima das relações sociais e trabalhistas.

“Tem o reforço dos programas de transferência de renda, algo parecido com o Bolsa Família e a manutenção do pagamento do auxílio emergencial em 600 reais. Isso deve fazer com que o cenário econômico não seja tão desastroso no próximo período, em termos de interesse dos trabalhadores. Do ponto de vista do cenário internacional é bem provável que nós continuemos no curto prazo vivendo uma apreciação do valor das commodities, o que também favorece o investimento capitalista no país e garante algum fôlego no início do governo. Existe um horizonte de melhoria de curto prazo nas condições de vida das famílias trabalhadoras no país com uma vitória do Lula”.

Ruy Braga reconhece que o país está entre a escolha de um governo autoritário e violento e outro de viés conciliador, formado por uma diversidade de setores que não compartilham exatamente do mesmo projeto, mas podem dialogar entre si. No entanto, isso não exime a eventual administração petista do mínimo de ousadia em agir a favor da classe trabalhadora contra os setores do grande capital, em especial o financeiro e não produtivo.

“A conciliação tem limites e restará saber quais serão as escolhas do governo Lula, quais setores irá privilegiar no interior de uma proposta global de conciliação. A minha expectativa é que o governo Lula priorize, até pela realidade da crise social que o país vive, da fome e assim por diante, o gasto público, as transferências de renda aos setores subalternos mais pauperizados e investimentos capazes de recuperar rapidamente o emprego. Normalmente esses investimentos tendem a se concentrar nos setores de infraestrutura. Espero que ao menos no início do governo isso aconteça e a gente não entre num caminho de austericídio que só vai alimentar a extrema-direita”.

Não se pode ignorar que estamos diante de um processo de popularização da extrema-direita nas massas. Seus valores, por mais destrutivos que sejam, têm poder de mobilização em meio à tragédia social deixada pelo neoliberalismo e o desespero que galopa entre uma população abandonada pelo Estado. É a partir de tal compreensão que uma esquerda que não terá suas pautas mais profundas assumidas pelo governo, mas mesmo assim deverá ajudar em sua estabilidade, deverá saber operar.

“Ela precisa pressionar por uma política tributária que aponte na direção da redistribuição de renda e ataque setores rentistas que praticamente não pagam nada de imposto no país. E que possa de fato oferecer um horizonte de intervenção política a partir dessa ideia, de reposicionamento global de reconstrução nacional, de reposicionamento global da sociedade brasileira
no mundo, enfim, que a gente consiga de fato discutir uma intervenção mais ativa da esquerda a partir da reconstrução das suas bases, da reconstituição, da reconfiguração, da ressignificação de seu projeto político. Não podemos ficar refém do governo do PT, mas ao mesmo tempo não podemos desconsiderar que este governo significa a manutenção do jogo democrático tal como conhecemos e as classes subalternas conquistaram”.

A entrevista completa com Ruy Braga pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como enxerga o cenário para a disputa de segundo turno à presidência da República entre Lula e Bolsonaro, à luz da votação do primeiro turno e um desempenho do atual presidente que escapou ao que foi captado pelas pesquisas?

Ruy Braga: Em primeiro lugar acho que vale a pena registrar que de fato houve uma diferença entre aquilo que havia sido aferido pelas pesquisas nos dias anteriores à eleição do primeiro turno e o resultado final. Houve uma migração de votos até então indecisos numa proporção maior para o atual presidente do que ao ex-presidente Lula.

Ao mesmo tempo, tivemos, digamos assim, um efeito que provavelmente vamos sentir no segundo turno, de certa compreensão da população, em especial a mais pobre, de que a economia tem melhorado em relação àquilo que vinha acontecendo até alguns meses atrás, quando havia cenário marcado por inflação alta, aumento do preço dos combustíveis e tudo aquilo que a gente acompanhou a partir do início do ano. E, evidentemente, existe o efeito do Auxílio Brasil, associado ao empréstimo consignado.

O cenário de segundo turno em larga medida é muito parecido com aquele do primeiro, ou seja, uma disputa bastante acirrada e uma diferença pequena de votos. A disputa vai até o final.

Minha previsão é de que tenhamos uma reta final de campanha muito apertada e se eu fosse dar um chute diria que o ex-presidente Lula continua como franco favorito, a despeito dessa reação do atual presidente. Mas Lula deve ganhar com uma diferença entre três e seis milhões de votos. Esse é o cenário que consigo imaginar

Correio da Cidadania: Quais os grandes dilemas que essa eleição simboliza para a sociedade?

Ruy Braga: A sociedade brasileira está diante de uma encruzilhada e tem de escolher entre dois caminhos. O primeiro caminho é um capitalismo, digamos, mais organizado. Ou seja, um capitalismo no qual certas garantias constitucionais são respeitadas e os direitos efetivamente são implementados pelo governo. Um capitalismo que, do ponto de vista econômico, se estrutura em torno de setores cujo eixo gravita em torno da ideia de exploração do trabalho assalariado. O que supõe, entre outras coisas, o pagamento do valor da força de trabalho, ou seja, um contrato de trabalho reconhecido pelas partes e assegurado pelo Estado. Nesse sentido, é um tipo de sociedade no qual o trabalho é pago pelo seu valor e explorado no âmbito econômico, nos locais de trabalho, nas fábricas, fazendas e assim por diante, com trocas, consequentemente, equivalentes.

É um tipo de capitalismo mais ou menos parecido com aquilo que foram os governos do PT, ao mesmo tempo com alguma vertebração daquilo que a gente poderia chamar de reformismo político. Ou seja, uma ampliação de direitos sociais que assegurem as condições mínimas de reprodução da força de trabalho com dignidade.

O outro caminho não é da exploração econômica do trabalho assalariado, baseado na troca de equivalentes, mas a expropriação da sociedade, que se manifesta essencialmente num tipo de economia que se apoia na troca de não equivalentes, ou seja, na base da pilhagem. Talvez o exemplo mais típico e mais claro seja o desmatamento ilegal da Amazônia, para ampliação da mineração ilegal, ampliação da produção bovina ilegal e a grilagem de terras. Esse é o elemento mais explícito.

Mas um elemento talvez não tão explícito seja a proposta discutida pelo Ministério da Economia de congelar o salário mínimo e as pensões, e desindexá-los de inflação. Isso também é uma forma de expropriação social, ou seja, que estava na ordem contratual e na constituição. Deve-se fazer uma reforma constitucional para excluir tais setores dessa forma de contrato, que por sua vez está apoiada sobre a troca de equivalentes.

Isso na realidade corresponde à dinâmica que já tem sido implementada no país há algum tempo, de sucessivas contrarreformas, que atingem diretamente o interesse dos trabalhadores. Evidentemente, estou me referindo aqui à reforma trabalhista, de novembro de 2017, e à reforma da previdência de 2018.

Ou seja, uma dinâmica que avança numa certa direção, que consiste exatamente em rebaixar as condições de reprodução das classes trabalhadoras, das classes subalternas no país, a fim de assegurar uma ampliação, que na minha opinião é bastante ilusória, mas de alguma forma corresponde a interesses econômicos muito poderosos, da lucratividade de determinados setores.

Portanto, estamos diante desse dilema, entre uma sociedade do trabalho apoiada na exploração do trabalho assalariado e um tipo de sociedade que se apoia na expropriação social da massa, do povo, em detrimento das suas condições de reprodução e favorecimento do lucro imediato de alguns setores econômicos poderosos, como é o caso notório do agronegócio, por exemplo.

Correio da Cidadania: Independentemente do resultado, o que imagina no contexto político brasileiro para os próximos tempos, com avanço geral da extrema-direita, inclusive no tecido social, e achatamento da direita dita moderada?

Ruy Braga: Independentemente de qual seja o resultado de 30 de outubro o país vai continuar muito conflagrado. Ou seja, nós teremos, caso o atual presidente perca a eleição, uma contestação do resultado, o que muito provavelmente irá mobilizar diferentes grupos, de apoiadores mais fanatizados, no sentido inclusive de fazer avançar a violência política sobre os setores democráticos. Temos uma espécie de indagação a respeito de qual vai ser o papel das forças armadas caso de fato o resultado seja apertado. É uma incerteza muito grande. Possivelmente, se a diferença for muito pequena entre os dois candidatos teremos algo semelhante ao que aconteceu no Peru, onde a Keiko Fujimori contestou o resultado da eleição através do judiciário e essa situação se desdobrou durante muito tempo. Provavelmente, deverá criar um clima de incerteza econômica e de desvalorização do real frente ao dólar, aumento de preço de combustíveis e assim sucessivamente.

Do ponto de vista imediato, eu prevejo alguns meses bastante turbulentos para a sociedade brasileira após a eleição. No que diz respeito ao tecido social nós verificamos com muita clareza que existe, em minha opinião como resultado de todo um processo de desenvolvimento histórico recente da sociedade brasileira, não apenas dos governos, mas também da economia e dos valores da sociedade, um rumo na direção de esgarçamento desse tecido.

Porque a economia brasileira, o Estado, o governo, não têm um projeto de sociedade. E tais setores são formados basicamente por pequenos e médios proprietários, que por sua vez produzem, contratam. Muitos trabalhadores dessas pequenas e médias empresas, de setores que foram mais beneficiados pelo ciclo anterior de crescimento dos anos 2010 – basicamente, a agroindústria, varejistas, atacadistas – não produzem, mas fazem que haja uma circulação de mercadorias no país. Percebe-se que para esses setores, incluído o bancário, o problema econômico chave não é a elevação da produtividade do trabalho com subsequente distribuição dos ganhos de produtividade entre os grupos assalariados. O que se verifica é um pouco contrário, ou seja, eles só conseguem identificar as possibilidades de ampliação das suas margens de lucro a partir do rebaixamento geral das condições de reprodução da classe trabalhadora, o que implica um aumento da degradação de setores assalariados, em especial os que estão sendo empurrados pra informalidade.

O exemplo mais evidente, mais típico, é o dos motoristas e entregadores de aplicativo, toda essa enorme massa de trabalhadores, que são trabalhadores assalariados, mas na realidade trabalham na economia informal para grandes empresas multinacionais, que exploram exatamente esse tipo de trabalho. Esse é o horizonte que temos pela frente. Ou seja, um tipo de sociedade apoiada numa economia que não se notabiliza e estrutura em torno de ganhos de produtividade, consequentemente na possibilidade de distribuição desse ganho entre os assalariados, mas ao contrário. É um tipo de economia que se especializa na expropriação do trabalho, que por sua vez tem como desdobramento o rebaixamento das condições de vida e se organiza basicamente em torno da ideia da troca do não equivalente, ou seja, da espoliação social.

Isso acaba fazendo com que o problema da violência política se imponha sobre o eixo aglutinador e garantidor dessa economia e sociedade. Não à toa Bolsonaro é o grande representante da violência política no país. E ele faz questão de utilizar essa violência política como forma de gestão e campanha, a fim de atrair os setores que não conseguem identificar propriamente um futuro que não seja o futuro de uma sociedade organizada em torno da expropriação capitalista, ou seja, de uma sociedade apoiada na força.

Correio da Cidadania: Em caso de uma vitória de Lula, é possível apostar em uma retomada de políticas minimamente comprometidas com a inclusão e a justiça social e econômica sem fortes movimentos de mobilização da sociedade? Quais seriam os caminhos para um governo que ofereça perspectivas mínimas de melhorias?

Ruy Braga: A vitória do Lula representaria a escolha da sociedade, ainda que muito dilacerada e dividida, por um projeto de país que se organiza em torno desta economia, de acumulação apoiada sobre a exploração do trabalho assalariado, que significa uma inclusão ou um projeto de inclusão dos trabalhadores no interior do sistema de troca de equivalentes e das garantias constitucionais, do direito trabalhista, enfim, dos direitos sociais e assim sucessivamente.

Qual a chance de prosperar? Eu diria que a chance é pequena se o governo apostar no aprofundamento do projeto neoliberal, de concentração de renda, de aumento da desigualdade e assim por diante. Mas não me parece este o caso, pelo menos quando observo as propostas da área econômica da campanha de Lula.

Ele tem apostado basicamente na ideia da distribuição de renda, via aumento real do salário mínimo e políticas públicas que ataquem a questão do endividamento das famílias. O que ele está propondo no final das contas é uma espécie de grande renegociação das dívidas das famílias com o sistema financeiro. Imagino que ele está pensando em utilizar o BNDES ou o Banco do Brasil e a Caixa Econômica como instrumentos de renegociação de tais dívidas.

Eu diria que do ponto de vista mais de curto ou médio prazos isso tem um efeito de reativação da economia, com investimento na chamada
demanda agregada, na soma dos gastos públicos com o investimento das empresas. Um investimento privado das empresas é que vai assegurar em última instância o crescimento econômico. Imediatamente, se tais medidas forem implementadas mais dinheiro circula na economia.

Tem ainda o reforço dos programas de transferência de renda, algo parecido com o Bolsa Família e a manutenção do pagamento do auxílio emergencial em 600 reais. Isso tudo deve fazer com que o cenário econômico não seja tão desastroso no próximo período, em termos de interesse dos trabalhadores.

Do ponto de vista do cenário internacional é bem provável que nós continuemos no curto prazo vivendo uma apreciação do valor das commodities, o que também favorece o investimento capitalista no país e garanta algum fôlego no início do governo. Existe um horizonte de melhoria de curto prazo nas condições de vida das famílias trabalhadoras no país com uma vitória do Lula.

Correio da Cidadania: Há espaço para a repetição das práticas conciliatórias num terceiro mandato de Lula? As confrontações com a classe dominante do país não estão se mostrando incontornáveis?

Ruy Braga: Sim, espaço existe na medida em que o PT está propondo a formação de um governo que em priscas eras chamaríamos de salvação nacional. O governo de salvação nacional é uma frente amplíssima, que contará com a participação de setores muito diversificados e em grande medida contraditórios. Ou seja, a conciliação está posta. Esse é o projeto que está sendo votado pelas pessoas. Um projeto de conciliação nacional. Eu acredito que se apenas este projeto for apresentado para a sociedade, em especial os trabalhadores, iremos verificar num futuro próximo um acirramento da luta de classes com um fortalecimento da extrema-direita no país.

Por quê? Porque a conciliação tem limites e esses limites dizem respeito exatamente a quais são os limites distributivos das políticas que vão ser implementadas pelo governo, em especial quando se trata do capital financeiro, da tributação de grandes fortunas, do financiamento das políticas públicas, do redesenho dos gastos orçamentários, de quem vai levar mais, quem vai levar menos, pra onde vão os recursos. Isso tudo se expressará, evidentemente, no Congresso.

Portanto, a conciliação tem limites e restará saber quais serão as escolhas do governo Lula, quais setores irá privilegiar no interior de uma proposta global de conciliação. A minha expectativa é que o governo Lula priorize, até pela realidade da crise social que o país vive, da fome e assim por diante, o gasto público, as transferências de renda aos setores subalternos mais pauperizados e investimentos capazes de recuperar rapidamente o emprego. Normalmente esses investimentos tendem a se concentrar nos setores de infraestrutura. Espero que ao menos no início do governo isso aconteça e a gente não entre num caminho de austericídio que só vai alimentar a extrema-direita.

Em especial, Lula deve utilizar a Petrobras como uma espécie de freio de mão do aumento dos preços dos produtos, em especial da cesta básica. Ocorre que isso é uma medida eleitoreira, não tem nada de estrutural. A política de formação de preços da Petrobras não foi revisada. Ela foi contida na base da pressão política do governo, que é o principal acionista, o que vai acontecer caso Bolsonaro vença. Caso Lula vença, precisará de uma proposta mais séria de revisão da política de formação de preço da Petrobras.

Se der Bolsonaro, a política de preços anterior, de paridade com dólar e o barril no mercado internacional, será retomada para assegurar os lucros e dividendos dos acionistas privados da Petrobras. O que eu posso dizer com alguma tranquilidade é que em torno de PT, Lula e seus aliados existe um projeto alternativo, grosso modo estruturado em torno da economia da exploração do trabalho assalariado e da troca de equivalentes. Existe aí um espaço maior para pensar um modelo de desenvolvimento mais includente e que, evidentemente, revise essa insana política de formação de preços de um insumo absolutamente estratégico.

Portanto, acredito que com a vitória de Lula poderemos pelo menos começar a discutir mais estruturalmente, mais seriamente, uma revisão geral dessas políticas neoliberais que tanto mal fizeram à classe trabalhadora nos últimos anos.

Correio da Cidadania: Qual papel das esquerdas, dentro e fora do PT, neste eventual terceiro mandato de Lula, diante de uma governabilidade que se anuncia tão difícil?

Ruy Braga: O papel dos setores de esquerda, na minha opinião e tendo em vista a atual situação brasileira, de encruzilhada em que estamos metidos, com avanço do bolsonarismo como um projeto político de mobilização de setores populares inédito na história do país, ou seja uma espécie de extrema direita popular, que só pode ser compreendido na sua amplitude, como o resultado de mudanças muito profundas da sociedade nos últimos 20, 30 anos, ou seja, o período em que de fato vigorou o neoliberalismo no país, no imediato é pressionar o governo pra que de fato consiga implementar políticas pró-trabalho. Ou seja, revisar a reforma trabalhista de novembro de 2017, ampliar direitos trabalhistas, fortalecer as políticas públicas de transferência para setores mais vulneráveis, discutir seriamente o investimento em educação e saúde, o que significa entre outras coisas revisar a política de teto de gastos do governo e ampliar o auxílio emergencial para as famílias mais vulneráveis.

Precisa pressionar por uma política tributária que aponte na direção da redistribuição de renda e ataque setores rentistas que praticamente não pagam nada de imposto no país. E que possa de fato oferecer um horizonte de intervenção política a partir dessa ideia, de reposicionamento global de reconstrução nacional, de reposicionamento global da sociedade brasileira no mundo, enfim, que a gente consiga de fato discutir uma intervenção mais ativa da esquerda a partir da reconstrução das suas bases, da reconstituição, da reconfiguração, da ressignificação de seu projeto político.

Não podemos ficar refém do governo do PT, mas ao mesmo tempo não podemos desconsiderar que o governo do PT hoje significa a manutenção do jogo democrático tal como conhecemos e tal como as classes subalternas brasileiras conquistaram, a partir do processo de redemocratização dos anos 80. Eu acredito que, infelizmente, é esse modesto papel que cabe à esquerda brasileira no momento.

Trata-se de se reconfigurar, se reinventar e ao mesmo tempo pressionar o governo pra que possa apontar numa direção que acolha os interesses autênticos dos trabalhadores no país e a gente consiga ter um horizonte de saída dessa encruzilhada histórica na qual a reprodução, por décadas, de um de um modelo neoliberal de sociedade nos enfiou.

Sobre a questão da governabilidade, ou seja, a relação com o Congresso e assim por diante, eu diria duas coisas: a primeira é que um eventual governo Lula irá com certeza conseguir formar um governo minimamente viável, com uma certa coerência, capaz de se estruturar.

A relação com o Congresso é sempre muito complicada por conta da sua composição. No entanto eu não sou daqueles que considera que o resultado das eleições legislativas, de deputados e senadores, foi desastroso e inviabiliza um governo de centro-esquerda. Na realidade, a composição política do senado ficou mais ou menos semelhante ao que já era e no caso da câmara, mesmo com essa votação recorde do PL, percebemos que a distribuição de poder entre a centro-direita, centro-esquerda, esquerda, direita, enfim, fica estável, com algum avanço inclusive dos setores de centro-esquerda.

Assim, me parece que tendo em vista as características da vida legislativa brasileira, a importância do governo no controle do orçamento público, a capacidade efetiva e a margem de manobra para negociar interesses mais paroquiais - e considerando a experiência do Lula como um presidente que já negociou com o Congresso de forma bastante exitosa -, pelo menos nesse ponto, estou um pouco mais moderadamente otimista. Acho que Lula conseguirá constituir um governo viável e ao mesmo tempo governar, ainda que com muitos atritos com o Congresso, tais como os que existem hoje.


Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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