O médico e o monstro: Lula tentará reapaziguar um sistema que sempre produzirá suas patologias
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- Gabriel Brito, da Redação
- 10/11/2022
É indiscutível que a vitória de Lula gerou um sentimento de alívio talvez nunca antes visto. Todo o mundo democrático e progressista assim enxerga a vitória do ex-metalúrgico sobre um ser desprovido de qualquer nobreza de espírito ou ética, adorador da ditadura e fonte de inspiração de movimentos neofascistas. E há condições para traduzir tal alívio em melhorias palpáveis. No entanto, a longo prazo, nada do que possamos considerar o avanço dos ritos civilizatórios estará garantido sem em algum momento não se questionar a própria lógica da reprodução social e econômica cotidiana. Esta é a reflexão que o economista Daniel Feldmann traz, em entrevista ao Correio da Cidadania.
Além disso, a reação bolsonarista à derrota, com bloqueios de estradas, pedidos de golpe de Estado e manutenção de um certo estado de guerra mostra a extensão do fenômeno que acomete as democracias liberais – ou neoliberais – mundo afora. “Política não significa mais a busca de consensos, de acordos, de uma visão de país em que ao menos retoricamente se reconheceriam as divergências, tudo dentro do assim chamado espírito republicano de respeito às instituições. A política então passa a ser vista como o prolongamento de uma espécie de uma guerra civil permanente onde o que importa é manter "os meus" agrupados e armados (literalmente!) para as próximas batalhas. Uma patologia social? Sem dúvida, mas uma patologia que se ancora numa dinâmica histórica que também é patológica, no Brasil e no mundo, daí sua resiliência”.
No centro de tudo, jaz o capitalismo e seu metabolismo, isto é, a forma como estrutura a sociedade e condiciona a vida de milhões de pessoas que perdem o chão do bem estar social e se veem cercadas de uma implacável lógica de cada um por si. Sua crise estrutural não pode ser estancada por nenhum projeto político que opere de acordo com os desejos dos mercados, conforme podemos verificar claramente há 15 anos. Daí a popularização de uma extrema-direita que exige uma liberdade total para, no fim das contas, apenas realizar os sonhos materiais que o capital nos promete.
“Refiro também àquilo que Gabriel Feltran chama de ‘Rebelião dos Jagunços’. A onda bolsonarista abriu e ‘democratizou’ à sua maneira posições de poder e riqueza que antes eram cativas da alta elite. Os ‘Jagunços’ seriam justamente os agentes que sempre fizeram de forma subalterna a mediação entre elites e povo, mas agora se rebelaram e passaram a clamar por seu quinhão e sua liberdade para empreender sem maiores constrangimentos. Aí entram milícias, militares de baixa patente e altos negócios, líderes religiosos a quem não se deve dar muita fé, youtubers inescrupulosos, produtores de fake news etc. A própria dinâmica destrutiva do bolsonarismo gerou novos negócios que dão lastro para a sua permanência. E como contê-los?”
Coautor do ensaio O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos, Daniel Feldmann compreende a eletrizante polarização eleitoral que acabamos de viver como uma manifestação de um dilema muito maior que paira por todo o planeta. A vitória de Lula tende a esfriar a natureza destrutiva e espoliadora do sistema. No entanto, mais ou menos hora, este mesmo sistema, isto é, seu metabolismo, voltará a manifestar toda essa potência.
“Todo o problema é que tais políticas de contenção da crise social não apenas não podem impedir uma dinâmica de aceleração destrutiva, como acabam involuntariamente contribuindo para ela. Daí a metáfora do Médico que não pode evitar o Monstro. Pois tal inclusão é uma inclusão para dentro de uma dinâmica cujo sentido maior é o de preparar novas e maiores exclusões. Ninguém pode criticar em si mesmas políticas que visam integrar as pessoas aos mercados. Mas isso não nos isenta de constatar que o mercado, sobretudo no Brasil, não é para todos, fazendo com que o que hoje aparenta ser uma integração social num segundo momento mostre a sua verdade de um processo desintegrador”.
A entrevista completa com Daniel Feldmann pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como recebeu o resultado eleitoral que marcou o retorno de Lula à presidência do Brasil e o que a polarização entre ambos os candidatos representa mais amplamente?
Daniel Feldmann: A sensação maior foi de alívio, de um grande peso a menos para se carregar nas costas. Por óbvio, a reeleição do Bolsonaro significaria um cenário muito pior em todos os sentidos. Um segundo mandato para a extrema-direita brasileira, tal qual podemos observar com governos de extrema-direita em outros países, serviria como uma espécie de carta branca para que o bolsonarismo avançasse sem freios em seu projeto de destruição. Dito isso, é preciso frisar que alívio não significa otimismo, como se em 30 de outubro tivéssemos definitivamente virado a página de um período nefasto de nossa história e agora tudo correrá muito bem, obrigado.
É verdade que houve uma forte mobilização da esquerda e dos movimentos sociais para a eleição de Lula, uma mobilização que há muito tempo não se via, e isto é um elemento importante para o período vindouro. Todavia, eu não embarcaria em certas análises que cravam que a eleição teria significado uma enorme vitória política da esquerda. É certo que Bolsonaro usou e abusou da distribuição de dinheiro, houve a pressão de empresários, prefeitos, da PRF etc. e que mesmo assim tivemos um caso inédito de presidente em exercício que não se reelegeu. Mas o fato principal numa perspectiva de longo prazo é que, apesar de toda a devastação, pandemia, o país como pária internacional, situação econômica precária, miséria etc. Bolsonaro quase ganhou as eleições, sem falar aqui do resultado do Congresso e dos governadores. Uma das lições decisivas desta eleição é que o Bolsonarismo persiste como força política importante não apesar de toda destruição, mas justamente por causa de tal destruição. Tal lógica destrutiva foi chancelada não apenas por setores das elites e das classes médias, mas também por grandes contingentes populares.
Ao mesmo tempo, do lado de Lula, houve sim forte mobilização, mas não se pode desconsiderar também o grande arco de alianças e o apoio explícito ou implícito de setores importantes do mercado, da mídia, do governo dos EUA etc. Lula reivindicou ser o candidato da defesa das instituições, do resgate de uma estabilidade política perdida da Nova República (simbolizada pela aliança com Alckmin) e mesmo assim quase perdeu. Ademais, não fosse a força do nome Lula, seu carisma intransferível, é muito provável que Bolsonaro ganhasse. Ou seja, a força do nome do Lula também reflete de certa forma uma fraqueza e dependência da esquerda.
Assim sendo, eu diria que a polarização que se expressou nas eleições reflete, de um lado, um projeto que visa conter a profunda crise social brasileira e seus impasses; de outro, um projeto que visa governar através de tal crise, acelerando-a. E como nossos impasses e tendências destrutivas são derivados da própria lógica de reprodução do capitalismo brasileiro num cenário de crise permanente do capitalismo global, nada autoriza a ideia de que a extrema-direita é um raio em céu azul que logo passará. É só vermos o caso do trumpismo nos EUA.
Portanto, recuperando a ideia inicial, é preciso dizer que, sim, nós pudemos finalmente respirar um pouco com as eleições, respiro esse muito justo e que se soma à sensação de respiro que vem com a amenização da pandemia. Respiro que não é pouco importante também dado todo o stress psíquico que nos tomou nesses últimos anos. Mas esse respiro deve servir como pausa e preparo para novos desafios e dificuldades que certamente se colocarão muito cedo.
Correio da Cidadania: Quais serão as maiores tarefas de Lula em seu início de mandato?
Daniel Feldmann: Penso que o discurso da vitória de Lula, à sua maneira, refletiu ele mesmo uma contradição entre as aspirações e esperanças depositadas nele por muitos e a realidade concreta. Creio que Lula, ao invocar Deus várias vezes, não estava apenas querendo dialogar com o numeroso eleitorado religioso. Deliberadamente ou não, a invocação divina do discurso soou como uma tentativa de fechar uma equação muito complexa. De um lado, Lula reconheceu as imensas dificuldades que se colocam, usando como exemplo imagens infernais como a de um país em ruínas e a de famílias que se digladiaram nas eleições. Entretanto, de outro lado, ele prometeu também a volta do paraíso lulista de seus governos anteriores. O efeito de sentido da figura divina aqui indica uma tentativa de se lidar com a contradição objetiva entre o céu a que se aspira e o inferno que nos ronda.
Todo o problema - que creio que nem Deus pode resolver - é que o paraíso lulista consistiu numa situação efêmera de ganha-ganha da parte de pobres e ricos, trabalhadores e capitalistas, que dependeu por sua vez de uma situação externa muito favorável. Se antes os dólares vindos de fora lubrificavam a economia, ajudando a sustentar crescimento, crédito, aumento da arrecadação e dos gastos públicos etc., hoje o cenário é de uma estagflação global em que se prenunciam aumentos dos juros externos que carreiam os dólares para fora e o crescimento esperado da economia brasileira em 2023 é de 1%.
Salvo um novo boom pronunciado das commodities, curto-prazista por sua própria natureza, o que poderia mesmo motorizar um novo crescimento sustentado e uma lógica de ganha-ganha 2.0? Uma reindustrialização do país? Acho pouco provável e mesmo que exitosa ela não teria capacidade de gerar bons e numerosos empregos dadas as tendências tecnológicas que poupam cada vez mais mão de obra. Nesse cenário, dadas as "regras do jogo" muito limitadas do capitalismo brasileiro e global, penso que já seria um avanço o governo conseguir aprovar medidas mais imediatas de mitigação da pobreza e de contenção da crise social brasileira.
Mas notemos que nem isso é tão simples. Se a vitória de Lula foi apreciada pelos mercados inicialmente e o real foi a moeda que mais se valorizou no mundo por algum tempo, o mero anúncio de gastos sociais para além do teto para cumprir as promessas de campanha e também a indefinição da equipe econômica de Lula já geraram ruídos nesses últimos dias: bolsas caindo e dólar subindo, além de toda a chiadeira. Lula frisou várias vezes que ele era o candidato da estabilidade e da previsibilidade. E, de fato, parcelas importantes do mercado, mesmo com suas rusgas em relação ao PT, compraram o discurso de Lula ou ao menos o preferiram diante do caos bolsonarista. Todavia, o que se esquece muitas vezes é quem causa instabilidade e imprevisibilidade são os próprios movimentos curto-prazistas e voláteis do assim chamado mercado. Se essas são as "regras do jogo", como ter um projeto econômico nacional de longo prazo como muitos ainda sonham na esquerda brasileira?
Correio da Cidadania: Como observa a reação bolsonarista e as centenas de bloqueios de estradas pelo Brasil?
Daniel Feldmann: Como dissemos mais acima, as eleições foram um alívio, mas um alívio efêmero num cenário muito turbulento. De certa forma, esse tipo de reação bolsonarista já era bola cantada. Eu não esperaria que Bolsonaro e menos ainda seu flanco de apoiadores mais radicalizado aceitasse de bom grado a derrota. Todavia isso não deixa de ser um sintoma de algo maior, a saber, o fato de que de que a extrema-direita que já tomou o governo em 2018 foi sobremaneira empoderada nesses últimos quatro anos. Esse é um problema que por vezes penso ser subestimado. Mesmo que o bolsonarismo mais radical não seja majoritário nem mesmo entre os eleitores de Bolsonaro, trata-se de uma minoria mobilizada e articulada e que por isso mesmo consegue incidir com certo peso na política.
Se há uma maioria estatística que rechaça o golpismo, o fato de que temos uma minoria ativa que não apenas deseja um golpe militar, mas explicita esse desejo em diversas manifestações país afora, é sintomático de que a eleição de Lula não significa por si uma volta à "normalidade". Podemos nos contentar que tal golpismo até aqui deu com os burros n'água - outro alívio temporário - mas a ruptura com a "normalidade" da vida política brasileira já está feita há alguns anos e veio para ficar. O próprio discurso telegráfico de Bolsonaro após as eleições ratifica isso. Política não significa mais a busca de consensos, de acordos, de uma visão de país em que ao menos retoricamente se reconheceriam as divergências, tudo dentro do assim chamado espírito republicano de respeito às instituições.
Bolsonaro fez um discurso para os seus, se colocando muito mais como um líder redentor de uma extrema-direita que se fez de fato forte e barulhenta do que como presidente em exercício. A política então passa a ser vista como o prolongamento de uma espécie de uma guerra civil permanente onde o que importa é manter "os meus" agrupados e armados (literalmente!) para as próximas batalhas. Uma patologia social? Sem dúvida, mas uma patologia que se ancora numa dinâmica histórica que também é patológica, no Brasil e no mundo, daí sua resiliência.
Correio da Cidadania: Criminalizar o ex-presidente não é condição essencial para retomar um caminho de estabilidade política com reflexos reais na vida da população?
Daniel Feldmann: Creio que apurar os crimes do governo que sai, em especial sua atitude na condução da pandemia, é algo fundamental. Assim como, eu acrescentaria, uma apuração séria do assassinato de Marielle Franco é crucial e não deveria ser abandonada. Os fantasmas e monstros da história não ficam presos nos livros, eles voltam a nos assombrar caso a sociedade não acerte as contas com seu passado. O fato de que, diferentemente da Argentina por exemplo, não houve punição para os torturadores e assassinos ajuda a explicar por que no Brasil se observa tanta tolerância ou mesmo apoio às políticas mais repressivas da ditadura. Nunca é muito lembrar que a origem do setor militar que se aliou a Bolsonaro é justamente o porão da ditadura e não a ala castelista tida como mais moderada. Eles estiveram hibernando por muito tempo, mas chegaram de novo ao poder, pasmem, pela via das urnas.
Desse ponto de vista, sim, é muito importante que se acerte as contas com os crimes recentes. Entretanto, pelos motivos já apontados, eu não diria que isso em si garantiria algum tipo de estabilidade política mais duradoura para o período que se abre. Acrescentaria, ainda, que se o que vem pela frente é algo indefinido e impossível de prever, certamente não será algo como uma Nova República revivida com sua aparência de estabilidade institucional, a despeito de todo o simbolismo da aliança entre o PT e o que restou do antigo PSDB que governou o país.
Correio da Cidadania: Como enxergar toda a ambuiguidade das instituições brasileiras, em especial policiais e militares, diante de um golpismo tão explícito?
Daniel Feldmann: Se o bolsonarismo consiste numa ruptura, na transformação da política numa luta de vida ou morte e na preparação para uma guerra que virá (ou já está aí?) nada mais natural o vale tudo e o aparelhamento das instituições, sobretudo as instituições armadas. E se os militares até agora não embarcam num golpismo mais explícito é porque, diferentemente do golpe militar de 1964 ou do golpe parlamentar de 2016, as condições políticas internas e externas estão ausentes. Ou seja, há um consenso amplo, por enquanto, de que Lula deve governar.
E uma breve digressão aqui, já que falamos de ambiguidade. Não deixa de ser irônico e ambíguo que o mesmo Lula que foi preso pelas nossas instituições agora esteja no epicentro de um grande acordo nacional, chamado para salvar as nossas instituições e a democracia, acordo esse que inclui Deus e o mundo, aí inclusos vários golpistas de 2016. Até quando esse consenso institucional vai durar, veremos. Ou seja, para além do poder de fogo dos militares que continuarão sempre à espreita, não é de se descartar o fogo amigo do novo consenso que circunda Brasília. E aqui temos mais um motivo para certo ceticismo quanto a uma estabilização política duradoura.
Sem falar do Centrão, que não vai abrir mão de seu Orçamento Secreto e outras prebendas. Mas voltando ao tema da pergunta, é preciso dizer que o vale tudo do bolsonarismo não tem a ver apenas com uma ideologia messiânica de extrema-direita, mas também com interesses materiais muito concretos. Como todo moralismo exacerbado, a retórica bolsonarista exacerbada serve como uma cortina de fumaça, no caso para se "passar a boiada" em diferentes planos, elidindo a fronteira entre norma e exceção, entre o legal e o ilegal. Aí entram a mineração e o agronegócio predatórios, a grilagem, a devastação natural etc., isto é, uma lógica extrema de acumulação por espoliação muito brasileira que o bolsonarismo não inventou, porém, deu total salvo conduto.
Mas aqui nesse vale tudo eu me refiro também àquilo que Gabriel Feltran chama de "Rebelião dos Jagunços". A onda bolsonarista abriu e "democratizou" à sua maneira posições de poder e riqueza que antes eram cativas da alta elite. Os "Jagunços" seriam justamente os agentes que sempre fizeram de forma subalterna a mediação entre elites e povo, mas agora se rebelaram e passaram a clamar por seu quinhão e sua liberdade para empreender sem maiores constrangimentos. Aí entram milícias, militares de baixa patente e altos negócios, líderes religiosos a quem não se deve dar muita fé, youtubers inescrupulosos, produtores de fake news etc. A própria dinâmica destrutiva do bolsonarismo gerou novos negócios que dão lastro para a sua permanência. E como contê-los?
Correio da Cidadania: Que papel caberá à sociedade civil e movimentos organizados neste cenário que se abrirá em 2023? Uma atuação decidida de tais setores não é condição fundamental para viabilizar novas políticas públicas com impacto social e econômico positivo?
Daniel Feldmann: Antes de entrar diretamente na questão, uma primeira observação é que, passada a hecatombe bolsonarista no governo, o que vier agora naturalmente tende a soar como muito melhor. Se isso é compreensível e até mesmo justificado, há também o risco de normalizarmos um horizonte bem rebaixado em nome da lembrança recente do pesadelo. Isso me leva ao seguinte ponto, agora sim tentando responder a pergunta. Eu faria aqui uma separação entre o governo e a esquerda em geral, que mesmo sob risco de soar problemática para alguns, me parece totalmente necessária. Pois a questão crucial, a meu ver, não é a eterna disputa pelos rumos do governo, que se expressa na retórica a meu ver já desgastada “do acúmulo de forças", "da busca por hegemonia", "a escolha das alianças estratégicas" etc. Tampouco creio que a questão é de uma postura supostamente principista de esquerda e radical que irá denunciar as incoerências do governo – que certamente virão com peso - como "traições".
A questão de fundo, a meu ver, é a seguinte: como colocar no centro do combate o tema da reprodução da vida econômica e social brasileira que tem gerado tantos problemas insolúveis e impasses, entre os quais se situa com destaque o fortalecimento da extrema-direita? Isso não quer dizer, por outro lado, que a esquerda deve ser indiferente em relação ao governo, por exemplo, deixando de defendê-lo diante do golpismo que ainda paira no ar, ou ainda, inversamente, deixando de cobrar com intensidade o atendimento de pautas importantes dos diferentes movimentos sociais. Todavia, se levarmos a sério como penso que devemos a vigência de uma permanente crise econômica, social, política, ambiental etc., deverá ser claro que governar tende a se reduzir cada vez mais a administrar tais crises em condições bastante precárias, salvo em conjunturas excepcionais como a de parte dos antigos mandatos de Lula.
Assim, se impedir um novo governo de extrema-direita foi muito importante, cabe perguntar de outro lado: será que o problema crônico da esquerda não passa justamente pela sua ausência de respostas para questões que transcendem a questão do governo? Questões, por exemplo, como a da selvageria do mundo do trabalho, numa situação na qual todos devem trabalhar muito mais justamente porque não há perspectiva de bons empregos para a maioria. Ou seja, quando começaremos a fazer uma crítica ao trabalho enquanto tal ao invés de continuar louvando-o? Ou ainda, quando abordaremos o fato de tanta gente viver em penúria quando há condições técnicas que permitiriam a todos usufruírem diretamente da riqueza material, sem ter de passar pela seleção cada vez mais estreita da mercadoria e do dinheiro?
Por certo tais questões não são nada simples nem têm uma solução imediata. Mas o fato de a esquerda via de regra nem sequer abordá-las contribui para a dificuldade em respondê-las. Talvez um aspecto positivo, passadas as eleições e a luta contra o governo de extrema-direita que consumiu tanta energia, é que agora possa haver maior abertura para se endereçar estas e outras questões de fundo que vão muito além dos governos de plantão.
Correio da Cidadania: No livro que você escreveu ao lado de Fabio Luis Barbosa dos Santos (O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos), fala-se que os governos progressistas conduziram, com suas nuances, o mesmo projeto de desenvolvimento econômico neoliberal defendido pelas direitas. A diferença seria a velocidade do trem, e não o rumo dos trilhos. Como colocar essa problemática à luz do próximo período que se abre?
Daniel Feldmann: Eu não sei se eu descreveria a tese do nosso livro "O Médico e o Monstro" exatamente dessa forma, mas eu aproveito para pegar um gancho interessante da pergunta para tentar amarrar alguns dos pontos das questões acima. Dizer que há um "rumo do trilho" que ratificou o neoliberalismo tanto nos governos de esquerda como nos de direita quer dizer que o neoliberalismo não é uma mera ideologia ou apenas uma forma de condução da política econômica. Pensamos o neoliberalismo como algo incrustrado na própria dinâmica social contemporânea que reduz todas as dimensões da vida à lógica da concorrência e a uma total atomização das pessoas. Um governo de esquerda pode dizer que é contra o neoliberalismo, mas isso pouco adianta se é o próprio cotidiano que o gera.
Na era petista, a soma de uma dada conjuntura e de políticas muito bem articuladas pelo governo permitiram incluir mais gente no jogo. Esse foi a causa do grande sucesso do governo na época, a saber, a reprodução exitosa por um período de um neoliberalismo inclusivo e não, como muitos queriam, o resgate de um "projeto nacional", "a volta do desenvolvimentismo" etc. Todo o problema é que tais políticas de contenção da crise social não apenas não podem impedir uma dinâmica de aceleração destrutiva, como acabam involuntariamente contribuindo para ela. Daí a metáfora do Médico que não pode evitar o Monstro. Pois tal inclusão é uma inclusão para dentro de uma dinâmica cujo sentido maior é o de preparar novas e maiores exclusões.
Ninguém pode criticar em si mesmas políticas que visam integrar as pessoas aos mercados. Mas isso não nos isenta de constatar que o mercado, sobretudo no Brasil, não é para todos, fazendo com que o que hoje aparenta ser uma integração social num segundo momento mostre a sua verdade de um processo desintegrador. Assim, o lema "Brasil de todos" da era petista não poderia evitar a explicitação de uma situação em que definitivamente não há lugar para todos. A ideia de um fair play cidadão foi se esboroando e esse foi um dos elementos cruciais que deram munição para a retórica da extrema-direita. E essa retórica passou a soar como mais verdadeira e autêntica para parcelas importantes da população. Se a vida é cada vez mais algo que se assemelha a uma guerra - sobretudo a vida no trabalho - que nos deixem lutar essa guerra com todas as armas disponíveis (mais uma vez aqui a ideia de "vale tudo"). "E daí?", diria o líder carismático que não busca conter, mas sim quer deixar correr tal dinâmica social destrutiva, liberando ainda toda a Caixa de Pandora do ressentimento, do racismo, da misoginia etc.
É certo que com a vitória de Lula, as forças da contenção tendem a novamente a predominar sobre as forças da aceleração. Onde tudo isso vai dar? Não há como saber. Mas mais uma vez insistimos que o cerne do problema são as formas caóticas de reprodução da vida brasileira. Sem nelas nos centrarmos, estaremos apenas tentando apagar as chamas de um incêndio sempre crescente...
Gabriel Brito é jornalista, repórter do Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.
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