2022: No capitalismo de fim do mundo, extrema-direita se vende revolucionária. Hora de mudar relações sociais
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- Raphael Sanz, da Redação
- 22/12/2022
O ano de 2022 vai chegando ao seu fim após uma campanha eleitoral que durou cerca de dez meses – e segue viva de alguma maneira nas portas dos quartéis –, em paralelo com uma série de mazelas históricas que se acentuaram com a pandemia iniciada em 2020 e o governo Bolsonaro iniciado em 2019. O Brasil voltou ao mapa da fome, as cenas das filas para obtenção de ossos e carcaças nos fundos dos supermercados ou de enormes áreas florestais sendo queimadas, entre outras, chocaram não apenas o Brasil, mas o mundo. Ficou um sentimento de que a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) passaria uma régua nesse período, mas sabemos que as coisas não são tão simples.
A fim de refletir sobre a conjuntura do ano que passou, o Correio da Cidadania entrevista Douglas Rodrigues Barros, jovem filósofo brasileiro, doutor em Ética e Filosofia Política pela Unifesp e autor de diversos livros, entre eles “Lugar de negro, lugar de branco” (Hedra), “Racismo” (Edições Brasil & Fibra) e “Revolução Africana: uma antologia do pensamento Marxista” (Autonomia Literária).
“Os membros da extrema-direita no Brasil acreditam que estão em processo revolucionário e é para isso que temos que dar atenção. Agem como uma espécie de duplo poder, mantendo um pé dentro da institucionalidade e outro fora, justamente para provocar a agitação e a ameaça contínua ao processo institucional”, sintetizou.
Douglas constata o caráter internacional deste fenômeno, que no Brasil se reflete numa esquerda que nunca entendeu o caráter estruturante das manifestações de junho de 2013. Mas para além deste contexto brasileiro, esquerda alguma do mundo ainda se apresentou como portadora de uma nova mensagem e seguimos a nutrir esperanças de contenção da barbárie por dentro de uma institucionalidade que sempre a produziu.
“É um fenômeno global diante das transformações do capital, e parte da crise de 2008. Nesse sentido, é importante também ressaltar que temos um imaginário neoliberal ainda em pleno vigor ao mesmo tempo em que a política econômica neoliberal entrou em falência. Então há o imaginário ainda do individualismo radical, do empreendedorismo como algo atado à natureza humana, mas ao mesmo tempo você já não tem mais as formas sociais possíveis que dão vazão para a finalidade que esse imaginário constrói. Nesse campo o que se abre é uma guerra de todos contra todos em que a extrema direita nasce e nada de braçada”, explicou.
No nosso caso, a vitória de Lula representa uma enorme esperança de se retomar uma mínima normalidade, capaz de reorganizar e dar sentido à vida social e produtiva. No entanto, não se trata da capacidade administrativa deste ou daquele governo; estamos no meio de uma crise geral do Capital que já dura ao menos 15 anos. E este mesmo capital se divorciou de seu caráter “progressista”; não depende da criação de valor para se reproduzir, e sim de sua financeirização, que caminha à margem de um processo produtivo e suas contrapartidas sociais e, no final das contas, se serve perfeitamente da violência do projeto político das extremas-direitas.
“A coisa se tende a se aprofundar e sejamos francos: tivemos um grande golpe de sorte pela liderança da extrema-direita ser totalmente inábil e ignorante a respeito dos processos políticos. Uma liderança que se forjou mas que teve uma grande inabilidade política de orquestração da governamentalidade e não deu respostas efetivas, por exemplo, à crise sanitária, ao desemprego ou à fome. Levando isso em consideração, acredito que o que está em gestação pelas novas dinâmicas das lutas empregadas pela extrema-direita no Brasil é a tentativa de uma construção de uma nova liderança”, analisou.
As saídas não são nada fáceis de encontrar e não poderão ser oferecidas por direções políticas ocupadas com a administração pública. É um processo amplo que exige a absorção de outros imaginários de mundo, onde entra a contribuição de movimentos disfuncionais à reprodução histórica do Capital: indígenas, negros e LGBTQIA+. Mas como o capitalismo e sua atual forma neoliberal são uma ditadura de classe, é preciso descobrir formas de atuação que aliem esses outros modos de ser/estar no mundo à ainda vigente luta de classes. Pois, como afirma Douglas Rodrigues de Barros na entrevista, os capitalistas jamais perderam de vista seu caráter de classe.
Leia, a seguir, a entrevista na íntegra.
Correio da Cidadania: Como você definiria, a partir das tuas reflexões, o ano que passou, sobretudo no que se refere à permanente mobilização das extremas-direitas que acompanhamos e a situação mais ampla em que o seu governo entrega o país, com fome, falta de recursos para serviços, destruição ambiental, negacionismo científico e assim por diante?
Douglas Rodrigues Barros: Para pensar nessa questão temos que fazer algumas mediações a fim de entender o fenômeno da extrema-direita e suas consequências com maior profundidade. Primeiro, é importante pensar a determinação econômica do processo e em segundo lugar a determinação política. Para compreender a determinação econômica desse processo é preciso levar em consideração a posição do Brasil no cenário do capital globalizado. E a posição que o Brasil ocupa nessa relação está dentro de um jogo de poder do capital globalizado sob liderança dos dois países que estão na dianteira do processo de acúmulo do capital: a China por um lado e os Estados Unidos do outro.
É importante observar que já no período lulista houve importante investimento no Brasil por parte da China, sobretudo após a crise 2008, nas áreas das commodities. Isso vai levar também ao processo de reorganização de uma classe latifundiária, balizada pelo que iremos chamar de agronegócio mais adiante, que se reestrutura à luz deste processo e torna-se um negócio muito lucrativo e rentável.
Durante esse período das exportações de commodities, o latifúndio brasileiro viveu uma espécie de modernização, reinventou-se e compôs uma nova classe, ou melhor, uma nova-velha classe. A crise de 2008 vai ser também aproveitada pelo setor para sua dinamização e financiamento. A partir da crise, o que é curioso, veremos também uma espécie de deslocamento do eixo do capital no Brasil.
Esses eixos do capital brasileiro não são desligados. Nesse sentido precisamos nos lembrar da velha frase do Marx de que os capitalistas, embora sejam concorrentes, não são uma classe que se boicota. Eles estão ligados por interesses de classe e ao fim esses interesses de classe dinamizam o próprio motor da economia. Assim, vemos um deslocamento nesse breve e pequeno período de bonanças, de exportações de commodities, que naquele momento estava reconfigurando a própria dinâmica do capital brasileiro.
Foi quando houve também o advento do que o jornalismo chamou de ‘farialimers’. Os jovens do mercado financeiro da Avenida Faria Lima em São Paulo, totalmente vinculada ao mercado financeiro e trazendo o grau de especulação necessário para financiar novos empreendimentos, buscando dar uma cara mais moderna para a classe. Ao mesmo tempo em que se consolida uma classe robusta no campo que vai crescendo e dando os tons da política – muito mais do que os ‘farialimers’ urbanos e seu partido ‘Novo’. A classe do campo cresce e não está totalmente desligada da financeirização, mas começa a deter o monopólio do giro do capital e a se sobressair de forma mais ampla, dando tons importantes da política.
Em 2013 vemos uma grande virada a partir das Jornadas de Junho, que completam dez anos no ano que começa dentro de dias. Bem, esse acontecimento foi radical e mudou, com certeza, o mapa das relações políticas do Brasil, acelerando todo o processo e promovendo uma fricção no polo político do país, graças sobretudo à incapacidade da esquerda em responder às novas demandas que surgiam do processo político aberto pelas Jornadas de Junho. Ao mesmo tempo, e ao passo que os manifestantes iniciais iam sendo expulsos das ruas, vimos uma rápida ascensão da direita como possível alternativa. Ao mesmo tempo, é preciso dizer, ocorre uma politização radical do país como nunca houve antes da história. Essa radicalização se torna algo popular.
Como a esquerda estava nos aparatos de poder naquele momento, acabou assumindo o papel de bastião da espera de consolidação da ordem no período, deixando para a direita o papel de ser aquela que vai apresentar as falsas ou pseudoalternativas, em especial a extrema-direita. Nesse processo, é preciso que lembremos, os próprios partidos de direita mais ‘liberal’ e ‘moderada’ são arrastados para o programa de extrema-direita em movimento que não os traz benefícios, uma vez que as bases recém-formadas os veem como partidos da ordem. Ou melhor, partidos ‘legalistas’ que nas novas narrativas organizadas pela extrema direita, sobretudo a partir das redes sociais, são vistos como ‘partidos socialistas disfarçados’, prontos para fazer com que o ‘comunismo reine sobre o Brasil’. Foram repelidos.
E o programa da extrema-direita é a desgovernamentalidade, o que explica a não aceitação da direita dita moderada. A extrema-direita não está interessada numa governabilidade, para usar o jargão petista, porque acredita estar em um processo revolucionário. Repito: os membros da extrema-direita no Brasil acreditam que estão em processo revolucionário e é para isso que temos de dar atenção. Agem como uma espécie de duplo poder, mantendo um pé dentro da institucionalidade e outro fora, justamente para provocar a agitação e a ameaça contínua ao processo institucional.
Não se trata de uma loucura, não se trata simplesmente de um convencimento ético ou antiético, ou religioso, o que estamos presenciando é um novo acerto político. Não é simplesmente de um delírio de algumas pessoas ‘más’, mas uma nova forma política que ainda está se configurando enquanto gestão. A ordem agora é a desestabilização, causada sobretudo pela política entendida pela extrema-direita como conflito.
A esquerda nesse processo fica recuada diante da ascensão da extrema-direita na posição de defesa da institucionalidade, que é na verdade uma tentativa de sobrevivência a essa avalanche que se abre quando a extrema-direita se torna o ‘princípio esperança’ da sociedade atual. É isso que precisamos levar em consideração quando vamos pensar o que chamamos de ‘bolsonarismo’, ou o nome que for. Isso tudo tem a ver com uma nova dinâmica da acumulação do capital, com o deslocamento do eixo do capital nacional para o campo, que estrutura também uma forma-imaginário de consolidação da política e tem a ver, sem dúvida, com a própria politização do Capital nesse momento da história do capitalismo. Podemos observar que há problemas que se desenvolvem como um elo numa corrente do capitalismo global de forma generalizada. Não é simplesmente o fenômeno brasileiro.
É um fenômeno global diante das transformações do capital, e parte da crise de 2008. Nesse sentido, é importante também ressaltar que temos um imaginário neoliberal ainda em pleno vigor ao mesmo tempo em que a política econômica neoliberal entrou em falência. Há o imaginário ainda do individualismo radical, do empreendedorismo como algo atado à natureza humana, mas ao mesmo tempo já não há mais as formas sociais possíveis que dão vazão para a finalidade que esse imaginário constrói. Nesse campo o que se abre é uma guerra de todos contra todos em que a extrema direita nasce e nada de braçada.
Correio da Cidadania: O que uma vitória eleitoral do PT, mesmo com um programa considerado neoliberal por críticos à esquerda, significa nesse momento?
Douglas Rodrigues Barros: É muito importante essa tentativa de reconfiguração das forças que sejam antagônicas ao processo de ascensão da extrema-direita e do neofascismo. Agora devemos pensar enquanto uma força antagônica esse processo e as formas de sociabilidade que organizou. Porque estamos assistindo a uma falência administrativa e de gestão que foi gerada ainda na época das grandes ditaduras da América Latina. Vemos hoje a quebra de um modelo social que imperou durante 50 anos, se formos levar em consideração que esse processo se inicia nos anos 70.
E 50 anos da história para o capitalismo é muito tempo. Quando isso explode fica mais difícil ter respostas, e assim nem a direita e nem a esquerda conseguem responder ao processo de falência administrativa neoliberal que tem, na verdade, feito uma abertura para o neofascismo. É então que talvez sejam criadas novas formas de administração da vida social, com o esforço de se pensar como o capitalismo se regula no interior desse processo.
O problema é que há uma ortodoxia econômica basicamente pior do que o ‘bolsonarismo’ no sentido ‘religioso’. Eles querem dar as mesmas respostas antigas para problemas novos que reconfiguram a dinâmica do capitalismo global. Quais são as políticas que essa ortodoxia econômica que se formou em 50 anos de neoliberalismo quer dar? Austeridade, cortes sociais e assim por diante: querem manter a mesma trajetória que levou o mundo à falência.
O que sobra é um capital desigual que no Brasil é representado por economistas que querem dar as mesmas fórmulas que no mundo global ninguém mais leva a sério. É muito curioso porque agora nós assistimos à autocrítica dos economistas de fora do Brasil, especialmente na Inglaterra, que já pensam em novas formas de gestão dos problemas que foram abertos à sombra do neoliberalismo. Enquanto no Brasil nós ainda temos a mesma cantilena de sempre que prega um projeto de austeridade e uma tentativa de flexibilização econômica, mas é claro, com o Estado se mantendo como esse grande financista a atuar em favor das classes proprietárias – e nem pensar em programas sociais.
Ainda temos a mesma dogmática neoliberal quando não existe mais saída para isso e é preciso repensar novas formas. Eu espero e acho que vai acontecer de alguma maneira, e nesse sentido há algum otimismo da minha parte, de que tais formas dogmáticas de respostas da ortodoxia neoliberal entraram em falência e vão cair em descrédito também aqui.
Um dos primeiros componentes para o governo que se forma é tentar pensar a dinâmica de falência da gestão neoliberal ao mesmo tempo em que oferece respostas aos processos novos, reorientando a economia para um processo de desenvolvimento econômico e social. É preciso gerar uma redistribuição de renda e reforçar programas sociais que possam suplantar e superar a nossa entrada novamente no mapa da fome. Há um grau de possibilidade para fazer, só que a primeira questão que vai se impor é ter consciência profunda do processo de falência que foi organizado pelo neoliberalismo como tentativa de resposta e salvação do capitalismo contemporâneo.
Correio da Cidadania: Em entrevista ao Correio da Cidadania em 2021, fizemos um apanhado de momentos históricos do Brasil relacionando-os à ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo. Na ocasião, você havia dito que Bolsonaro seria uma consequência, e não a causa, do processo que discutimos. Como definir esse bolsonarismo e que rumos deve tomar agora que sua principal figura ficará sem um cargo público, podendo inclusive ser processado pelos crimes cometidos durante a gestão? Como deve se desenhar a extrema-direita brasileira no próximo período?
Douglas Rodrigues Barros: A coisa tende a se aprofundar e sejamos francos: tivemos um grande golpe de sorte pela liderança da extrema-direita ser totalmente inábil e ignorante a respeito dos processos políticos. Uma liderança que se forjou, mas teve uma grande inabilidade política de orquestração da governamentalidade e não deu respostas efetivas, por exemplo, à crise sanitária, ao desemprego ou à fome. Levando isso em consideração, acredito que está em gestação pelas novas dinâmicas das lutas empregadas pela extrema-direita no Brasil a tentativa de uma construção de uma nova liderança.
É por isso que eu estou chamando atenção para vermos o processo como um fenômeno neofascista de extrema-direita mais do que como ‘bolsonarismo’. Esse adjetivo pode mudar rapidamente de acordo com a liderança que se forjar. Digo porque hoje vemos a ascensão da extrema direita na Europa e se olharmos para a Itália, vemos um país que hoje é governado por uma fascista declarada. Tivemos muita sorte de os nossos fascistas não serem tão bons oradores e entenderem a dinâmica do capitalismo como a Giorgia Meloni (primeira-ministra da Itália).
O cenário fica mais preocupante para nós, pessoas do espectro político de esquerda. Devemos ficar mais alertas com a saída do Bolsonaro porque pode estar sendo gestada uma nova liderança de extrema-direita, inclusive mais capaz e formada pra lidar com questões do Estado e da economia. Não vejo hoje nenhum nome possível de ser ventilado, ainda. Acredito que os acampamentos são uma das formas de manter realmente acesa a chama da liderança, como por exemplo do Zé Trovão, eleito deputado federal por Santa Catarina, que se forjou em processo semelhante de mobilização.
E sejamos francos novamente: uma pessoa tocar fogo em carro em Brasília é algo muito sério. Não é só financiamento. É porque ela está disposta a dar a sua vida por uma causa que acredita, porque afinal se essa pessoa for presa, estraga a sua carreira e em alguma medida a própria vida social. Não é simplesmente loucura ou financiamento, explicações até muito cômodas de apontar sem levar em consideração o processo histórico que organizou essa extrema-direita que está nas ruas não só do Brasil como do mundo.
Não acho que esse processo vá cessar no próximo período. Observo uma recomposição do espectro da política organizado hoje por redes sociais que com uma base algorítmica alicerçada constrói bolhas, e essas bolhas geram pseudoverdades para os grupos de pertencimento.
Essa dinâmica vai continuar e pode redundar na construção de uma nova liderança ou na consolidação da imagem de Bolsonaro como mártir. Embora nós ganhamos o processo eleitoral, fomos expulsos das ruas. Estamos recuados e ligados a um processo de defesa das instituições para tentativa de sobrevivência. Ainda estamos resistindo mesmo tendo ganho o pleito eleitoral.
Correio da Cidadania: Quais caminhos acredita que devam ser tomados, na sociedade, nas ruas, nos movimentos sociais, comunitário ou mesmo na institucionalidade, a fim de 'desnormalizar' a extrema-direita no Brasil? Que exemplos internacionais poderíamos seguir nesse sentido, uma vez que a própria redemocratização brasileira falhou nesse sentido?
Douglas Rodrigues Barros: É muito difícil dar uma resposta efetiva ao processo. Mas o que eu acredito de fato é que nós devemos retomar o campo da política como processo de conflito. Quer dizer, é preciso entender novamente a dinâmica política pra além da tentativa de salvamento dos grupos de pertencimento. Mais do que nunca temos de pensar como as pautas particulares dos grupos singulares estão elencadas a algo de uma singularidade maior, no sentido de que a luta indígena - só pra dar um exemplo - não implica apenas a dignidade do indígena, mas a dignidade da humanidade de forma mais ampla.
Temos de entender desse momento em diante como devemos estar implicados nas lutas singulares, abrindo espaço para a conflituosidade política. Acredito que os três movimentos hoje mais fortes e que de certa forma ameaçam o status quo são o movimento indígena, o movimento negro e o movimento LGBTQIA+. A questão é que o grau de ameaça potencial desses grupos é paralelo ao grau de tentativa de controle deles. Assim, se cria toda uma gramática, e com ela a arapuca pra capturar o imaginário potencialmente político que esses grupos trazem para o status quo. Tais grupos estão totalmente vigiados numa tentativa de controle da demanda política que eles realmente efetivam.
Quando pensamos em movimento negro, movimento indígena e movimento LGBTQIA+, estamos pensando em uma reestruturação de imaginário social. Bem, o movimento indígena e a sua implicância com o território nos remontam à história de violência na qual foi fundado esse país. O movimento negro e a sua estrutura de classe – não vamos esquecer que o MNU (Movimento Negro Unificado) sabe que ‘pobre é preto e preto é pobre’ desde os anos 70 – mostram a aversão ao processo de exclusão radical que o capitalismo subalterno brasileiro impôs nas costas de grupos historicamente excluídos. Já o LGBTQIA+ implica uma nova forma de pensar a própria ideia de amor na sociedade contemporânea. Esses três grupos precisam conseguir criar um diálogo efetivo com a sociedade. E aí é importante frisar que isso é transversal à ideia de classe, e é o meu ponto: não é uma demanda simplesmente econômica, mas também de abertura de horizonte para algo político efetivamente.
Isso se reflete no imaginário da extrema direita global, em que são justamente tais grupos que eu nomeei aqui que estão na mira do discurso neofascista. Também não podemos esquecer que pra além da estruturação imaginária que provocam, há uma infraestrutura social que se chama capitalismo. Nesse sentido não podemos classificar a demanda de tais grupos como específicas e dizer que não se orientam por um conflito de classe. Afinal de contas, as classes continuam sendo o fundamento lógico e pressuposto da sociedade capitalista. A exclusão dos processos de modernização é uma exclusão também orientada por uma classe. Portanto, é preciso repensar o que significa o proletariado hoje, o que significam “os condenados da terra” de hoje, tal como pensava Fanon ali nos anos 60.
A depreciação do espaço do trabalho continuará correndo solta porque a flexibilização veio pra ficar, e essa é a nova prática mundial, refletida também pelo deslocamento dos limites do capitalismo global para a Ásia, sobretudo a China. E para entender esse processo, além de estar em dia com as novas demandas e dinâmicas, precisamos também da velha e empoeirada consciência de classe. Pensar o que significa uma consciência de classe no momento em que o mundo do trabalho praticamente volta à esfera de um uma espécie de neoescravismo contemporâneo ligado a essa flexibilização do capitalismo e à queda tendencial da taxa de lucro, que já não se mantém de pé.
Fico pensando se Mackenzie Wark não está certa. Será que estamos no capitalismo ou em algo ainda pior? Eu acho que a provocação dela é muito boa naquele livrinho chamado “O capital está morto”. Devemos pensar um pouco a respeito, porque de certa forma aquilo que equilibrava o capital era o trabalho. Se o mundo do trabalho está amplamente desestruturado, significa que realmente alguma coisa mudou na composição e manutenção do acúmulo do capital. Daí que vemos uma tendência aos monopólios, à constituição de bilionários e assim por diante.
Pra finalizar gostaria de lembrar que em 2008 a grande saída do presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, foi salvar tudo que pode com o dinheiro público. Os bancos centrais salvaram tudo e nós continuamos numa situação de capitalismo piramidal estritamente especulativo. E que, portanto, o capitalismo não fez o seu processo de depuração para manter, como diria Schumpeter, o seu caráter sadio. Estamos diante de um capitalismo adoecido, que depende do novo regime de neoescravidão elencado por uma flexibilização radical do trabalho e da depredação do horizonte social. Quer dizer, estamos lascados, e dar respostas a isso exige não só uma inventividade, mas saber do potencial político que os grupos sociais organizados têm pra uma tentativa de resposta.
Correio da Cidadania: Como enxerga a atuação das Forças de Segurança (Forças Armadas, polícias etc.) no último período, sobretudo no que se refere à sua adesão política à extrema-direita historicamente e ao bolsonarismo recente? Qual a expressão desse movimento no cotidiano brasileiro?
Douglas Rodrigues Barros: É curioso porque o papel da polícia não pode ser relativizado numa sociedade cujo fundamento é a violência de classe. O papel da polícia é o controle efetivo de qualquer possibilidade de subversão daquilo que está posto. De qualquer possibilidade de construção de uma alternativa ao que está posto. De modo que o papel da polícia no horizonte de capitalismo depauperado, de capitalismo fim de linha ou de pós-capitalismo para algo infernal, ou como queira chamar, se revela sem a apreciação ideológica do que o liberalismo propôs. Temos nesse processo é o desnudamento radical do papel da polícia, que sempre foi matar e prender pobre. E se você for um pobre racializado, aí meu amigo, você já está na área de exclusão desde sempre e a sua morte eventual sequer causa sensibilidade política e pública. Esse papel fica cada vez mais claro para todo mundo e para própria polícia.
Entre outras coisas o papel dela é se assumir politicamente de um lado do espectro político, e esse lado é evidentemente a direita e a extrema direita. Nesse quadro, para além de toda a destruição do social, a polícia se torna algo central para a manutenção da nova forma de governabilidade, expondo o caráter necropolítico atual e sua violência radical contra qualquer tentativa de consolidação de uma alternativa.
E como que a esquerda fica quando pega um governo em tal quadro? O que Safatle estava pensando na sua campanha é interessante: que é preciso pensar uma alternativa a essa polícia militarizada, senão mais tarde a coisa fica pior. Nesse sentido, mantenho a minha pauta de 2013: a PM tem que acabar.
Correio da Cidadania: Com Lula à frente do governo, como ficam as lutas e mobilizações populares tão necessárias para os avanços e respostas tão necessários? Quais os principais desafios agora que a esquerda volta a um espaço de poder?
Douglas Rodrigues Barros: Permita-me só uma pequena reflexão que vai parecer diletante: o poder nunca esteve no governo. O poder está na classe. Precisamos parar de confundir o poder com o governo, com o fato de estar na direção do Estado e pensar mais o poder como algo que se consolida numa classe organizada. Afinal, se pensarmos os anos anteriores de governo petista o que mais se fez foi enfraquecer o poder da classe.
E como se faz pra enfraquecer o poder da classe? Basta acreditar que o poder está no governo, na institucionalidade e não na mobilização da classe. Só pra dar uma balançada naquilo que a gente acredita, o poder não está no planalto. E quem entendeu isso me parece que foi a extrema-direita. Vamos pensar o que foi o governo de Bolsonaro: durante quatro anos manteve a base mobilizada, enquanto na direção o governo simplesmente não dirigiu. Abandonou, não houve governo. Tivemos o desgoverno no governo. Isso porque vemos claramente que as bases mobilizadas garantem o apoio político até para o desgoverno.
O PT fez nos anos anteriores o processo inverso. Ele atou lideranças sindicais, lideranças de movimentos sociais, e trabalhou na consolidação do imaginário político como conciliação. Isso enfraqueceu radicalmente a autonomia da própria classe para sua organização política e manutenção da política enquanto fala daquele que não é nomeável, aquele que não está visibilizado no processo de poder. Assim, eu acho que posso responder a sua pergunta.
Entre outras coisas, teremos de fazer primeiro a reflexão de que ainda estamos orientados por uma sociedade cujo conflito de classe é o que a mobiliza. E se do nosso há quem ache que não há mais classes, do lado de lá os capitalistas sabem que eles são uma classe e sabem também muito bem atuar enquanto classe. Inclusive eles desaparecem quando querem e sabem que são transnacionais. E que são altamente solidários entre si. Basta por exemplo a gente pensar o que foi o presidente sósia da Venezuela, o Guaidó, e como as classes capitalistas do mundo inteiro o apoiaram numa internacional capitalista sem parâmetros.
Correio da Cidadania: Pro Itamaraty, hoje, ele é o presidente da Venezuela...
Douglas Rodrigues Barros: Por isso temos de parar com a besteira de hierarquizar o que vem em primeiro lugar, se a raça ou a classe, ou a sexualidade. É uma questão que embora tenha a sua importância, dada a invisibilidade dos processos raciais e de sexualidade, é preciso levar em consideração também que a despeito da discussão nós ainda nos mantemos como antes, como classe subalterna numa sociedade cujo conflito de classe é o que a mobiliza.
Precisamos ainda pensar no que é o trabalho hoje para dialogar para além dos nossos grupos de pertencimento. Pensar o que é o mundo do trabalho. Como que as pessoas sobrevivem hoje? O que está acontecendo nessa loucura de que ninguém mais para de trabalhar? A impressão que eu tenho é que está todo mundo trabalhando o tempo todo. A gente precisa entender essa dinâmica para começar a conversar com quem pega o trem, com a dona de casa que não é apenas dona de casa porque fica na cozinha fazendo quentinha pra vender. Eu acho que a ambição da esquerda deve ser olhar pra essa classe que não está mais nas formas modulares do trabalho do século 20, mas continua na superexploração em trabalhos extenuantes. Nosso olhar deve também se dirigir para como se dá a reprodução da força material da vida das pessoas.
Entender tais dinâmica e processo é fundamental para que a gente recomponha o horizonte de classe e possamos ser antagonistas da classe capitalista novamente. Acredito que a esquerda tem de cumprir esse papel e é claro que significa saber ao mesmo tempo pensar a especificidade dos grupos de pertencimento e abraçar a diferença. Ou seja, pensar por exemplo a especificidade do movimento negro sabendo que eu devo me implicar também de maneira radical com as lutas do movimento indígena. Ao mesmo tempo como nós estamos reproduzindo nossa força de trabalho, como nós estamos sobrevivendo a esse capitalismo de caos.
Correio da Cidadania: Como projetar no plano histórico o ano que se encerra, o que ele deixa para a sociedade, tanto objetiva como subjetivamente? E aproveitando o que falamos mais cedo, já podemos falar em capitalismo terminal ou algo nesse sentido?
Douglas Rodrigues Barros: É preciso lembrar que ganhamos a eleição com uma pequena margem de diferença. Isso significa que o imaginário da extrema-direita ainda compõe de certa forma o sentido da ação de milhares de brasileiros. Um dos grandes desafios é sairmos vitoriosos do pleito eleitoral, mas ainda há um forte imaginário de extrema-direita que precisamos pensar, se contrapor e achar alternativas. Nesse sentido temos de pensar, entre outras coisas, o que significa o neopentecostalismo, e entender sobretudo a sua dinâmica que foge do neopentecostalismo por si, e é na verdade a dinâmica daquilo que organiza o neoliberalismo. Uma das pistas, na minha opinião, vai por esse caminho.
Do ponto de vista da sociabilidade do capital, tem se abandonado desde os anos 70 uma noção de progresso capitalista. O próprio capitalismo hoje, por exemplo, já desacredita suas próprias histórias. Houve durante muitos anos no capitalismo, desde a Revolução Francesa, a ideia de que o direito era universal e era do homem em geral. Só que todo mundo sabe, inclusive quem fala de direito e os próprios juízes, que o Direito é o direito do homem branco e proprietário, do patriarca.
Vejo o capitalismo como o espírito hegeliano, composto de várias figuras que vão mostrando seus limites enquanto tal. Hoje todo mundo já sabe que as promessas que o capitalismo trazia na sua formação não são passíveis de serem cumpridas. O capitalismo baseado no ideário liberal do século 19 que iria trazer a ideia de que o desenvolvimento do capital desestruturaria relações de tradição, que seriam superadas as relações de raça e de diferença de gênero e sexualidade. Após quase 200 anos nós sabemos que essa promessa não se cumpriu. E nós vivemos sabendo que as promessas não se cumprirão.
Ao mesmo tempo uma das graves preocupações que devemos ter é com o meio ambiente. O planeta não aguenta uma nova jornada aventureira e desenvolvimentista do capital. Nós vivemos uma grande pandemia e essa grande pandemia não se gera da natureza, mas na chamada ‘segunda natureza capitalista’. Trata-se de uma pandemia socialmente orientada. Assim, devemos pensar nesse registro de falência de todas as promessas do capitalismo somadas à destruição do planeta que, em metáfora, é como a serpente que come o próprio rabo, se destruindo. Portanto, se é mais fácil pensar – e aí tem a provocação à esquerda – no fim do mundo do que no fim do capitalismo, como diria Mark Fisher, isso significa também que o capitalismo demonstrou um processo de resiliência mais forte do que previa Marx, por exemplo.
A manutenção dessa forma e de sua noção de progresso e modernização vai significar a extinção da espécie. Assim, precisamos pensar urgentemente uma nova forma de sociabilidade e, de fato, eu gostei muito da provocação da Wark, embora eu tenha também, evidentemente, como estudante de filosofia que sou, algum tipo de crítica a algumas formulações que ela tece. Mas a provocação é muito válida no sentido de que diz que embora nós mantenhamos a reprodução do valor, já não há mais espaço para aquela ideologia progressista no capitalismo e, portanto, estamos vivendo – conforme a própria Mackenzie Wark deu conta disso junto com o Achille Mbembe – uma nova época, com uma nova espécie de neoescravismo agora também colonizando não apenas povos e terras, mas o nosso imaginário por meio de algoritmos e big datas.
A nossa tarefa é imensa como se percebe, porque assistimos a uma reformulação do capitalismo, uma revolução no interior do próprio capital que implica o deslocamento do seu eixo de centro. O centro do capitalismo se desloca e esse deslocamento, no entanto, implica também em rivalizações e fechamentos geopolíticos que podem levar toda a humanidade a uma catástrofe.
E como vamos responder? Acho que o primeiro passo é entender esse processo de maneira radical e entender o processo não se faz mais por uma mente genial. Nunca foi, mas hoje menos ainda. Entender o mundo atual é um processo coletivo, de esforço teórico e prático que organize uma práxis nova para nós, que somos de esquerda. Embora tudo aponte para uma catástrofe ainda estamos aqui e não podemos nos sentir confortáveis diante do abismo.
Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.