A renúncia ao presidencialismo
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- Nildo Ouriques
- 22/12/2022
A conciliação de classes requer condições históricas muito particulares para sua realização. Entre nós, “conciliação de classes” virou xingamento destituído de vitalidade e tem servido tão somente para pintar a raia em conversa de boteco ou seminários acadêmicos sem importância política. No essencial, acordos com a burguesia ou suas frações sempre produziram efeitos negativos aos trabalhadores e à luta pelo socialismo, mas admito que podem existir situações históricas tão adversas em que é preciso recuar para mais tarde retomar a ofensiva. No entanto, em semelhantes circunstâncias, a classe dominante nunca vacilou em imprimir na testa dos trabalhadores a marca da derrota; estas – as derrotas – também ensinam e é uma arte apreendê-las mas, lamentavelmente, nas últimas décadas, as forças populares ou mesmo movimentos com algum compromisso de esquerda, recusam com arrogância infantil as duras lições históricas.
O futuro governo petucano será conservador. As novas gerações de petistas e sua degeneração – o lulismo – estão sempre prontos para validar qualquer sinalização do presidente eleito e até mesmo utilizam os surrados bordões de Lula como se fossem sabedoria política. Em consequência, reproduzem o senso comum sobre temas cruciais da dominação burguesa que garante superlucros às classes dominantes e miséria, exploração e marginalidade a milhões de brasileiros.
No Brasil, a classe dominante esta soberana na cena. Nesse momento a burguesia não possui adversário de classe e, ademais, a lenta transformação da esquerda outrora radical numa esquerda liberal garantiu não somente seus interesses econômicos imediatos, mas algo também valioso: a degradação do regime político aos olhos de milhões de trabalhadores não é considerada obra dos burgueses mas, ao contrário, dos... “políticos”! A burguesia, portanto, se dá ao luxo de recusar a conciliação! Ademais, os recursos necessários para o tal Auxílio Brasil ou Bolsa Família é tanto peça de filantropia quanto de propaganda destinada a fortalecer a guerra de classes contra o povo sob o lema da austeridade fiscal.
A miséria do sistema numa república burguesa apodrecida em seus cimentos com a permanente corrupção do regime parlamentar permite à classe dominante – todas as suas frações – jogar nas costas dos “políticos” a responsabilidade pelas demonstrações diárias de deputados e senadores expostos até o pescoço na lama da corrupção e do toma lá da cá que alimenta a disputa pela moral pública sob controle burguês. A decisão do PT, PV, PC do B e PSB em apoiar Arthur Lira será considerada pelo lulismo como consequência natural da atual correção de forças e, quem sabe, até mesmo mais um ato da sabedoria pragmática do presidente eleito. Ao contrário, não pode haver dúvidas de que a decisão é resultado necessário da adesão da esquerda liberal à ordem burguesa decidida há muitos anos pela cúpula e sólida maioria no interior do PT.
Portanto, não é fruto da conciliação de classe porque expressa apenas sua rendição ao sistema inclusive nas suas manifestações mais deploráveis e também constitui a sabotagem do regime presidencial como conduta suicida. A lógica é simples: segundo os sábios petucanos, temperados na estranha arte de ver o lado bom em tudo e especialistas em medir a temperatura da “correlação de forças”, não existem condições para a esquerda liberal se opor à hegemonia burguesa nesse momento, razão pela qual apoiá-lo e buscar aliança com o “inimigo” aparece como a única saída possível. Ato contínuo, no próximo conflito – real ou aparente – o inimigo está mais forte e as concessões serão ainda maiores. Assim, para os cardeais do petucanismo, qualquer enfrentamento constitui uma aventura e o pragmatismo rasteiro aparece como realismo político não poucas vezes coroado... com citações de Lenin!!!
A “negociação” atual entre o governo eleito e o covil de ladrões – cuja expressão mais eloquente é o apoio do PT, PV, PC do B ao deputado Arthur Lira a presidente do congresso nacional – não é “erro” como supõem deputados do PSOL ou “conciliação de classe” como insinuam alguns descontes na base petista, mas consequência necessária da completa adesão do PT à ordem burguesa decidida há muitos anos! Entretanto, mesmo escavando nessa miséria, é possível e necessário indicar algo essencial. O regime político atual é presidencialista e, nas condições da América Latina, o parlamentarismo não goza de simpatia alguma diante das massas.
No Brasil, onde o espirito republicano europeu tem prestígio entre os letrados, o parlamentarismo foi derrotado pelo voto das massas duas vezes! Os trabalhadores detestam deputados e senadores e, quando não manifestam aberto ódio e repúdio aos mesmos, os nobres parlamentares têm assegurado uma boa dose de desconfiança. Eu creio que se trata de um signo de saúde mental e política do nosso povo que, a despeito do intenso controle ideológico e político, ainda consegue ver mesmo quando os óculos estão embaçados... A verdade é que a forma parlamentar de representação não goza de prestígio entre as massas.
Um obscuro sociólogo de extração tucana (Sérgio Abranches) criou a expressão “presidencialismo de coalizão” como se fosse possível salvar o regime político com uma sacada sociológica. Os tucanos sob a batuta do uspiano FHC anunciaram a novidade e promoveram o ilustre desconhecido como produto ideológico necessário à manobra conciliatória que garantiu o assalto ao Estado via privatizações e as revisões constitucionais necessárias ao processo de acumulação em via rápida para o capitalismo dependente rentístico. Na oposição, o petismo balbuciava radicalismo até que em 2002 revelou seu conteúdo: mero apetite eleitoral. No governo, Lula e Dilma, completamente convertidos à economia política do capitalismo dependente rentístico, se lambuzaram com o presidencialismo de coalizão legitimado pelo “combate ao neoliberalismo” e sustentado pela filantropia implícita nas “políticas sociais” destinadas a atender os mais pobres entre os pobres.
No mesmo compasso, o regime político apodrecia aos olhos das massas e das classes médias sob impulso silencioso de uma oposição que o petucanismo jamais imaginaria. Entretanto, os alertas foram contundentes como pode ser visto nas jornadas de junho de 2013, quando o protesto popular das massas ao aumento de passagem em SP explodiu contra Haddad e Alckmin. Mais tarde, a destituição sem luta de Dilma e finalmente a derrota acachapante de 2018 exibiu a real situação política do país. O petismo, mesmo sob impacto de golpes não mudou e, agora, repete o roteiro sem os constrangimentos morais do passado, alegando a “correlação de forças” adversa. Nessa cômoda versão não se trata apenas de combater o “neoliberalismo”, pois temos pela frente um duro combate contra o “fascismo”, neofascismo ou simplesmente a ameaça de fascismo...
Nesse contexto, o apoio a Lira por parte do petucanismo comandando por Lula/Alckmin é pra lá de compreensível ainda que o militante lulista afirme de pés juntos mero resultado da correlação de forças adversa e jamais produto da conversão do petismo à ordem burguesa. A conciliação de classe é uma arte de difícil realização quando dirigida a objetivos claros da conquista do poder, mas é um desastre quando assume a forma de rendição política. A verdade é que os trabalhadores, a despeito do voto, não apoiam a operação e repudiam as manobras parlamentares da esquerda liberal com a direita no covil de ladrões.
Nas atuais circunstâncias a burguesia não precisa conciliar absolutamente nada, pois comanda a cena soberana dado o desarme ideológico e político da esquerda liberal diante do povo. Uma época fecha seu ciclo para sempre, ainda que na agonia das horas possa simular alguma vitalidade. O roteiro atual, portanto, nada garante ao governo petucano e menos ainda ao povo. A miserável PEC da Transição – 198 bilhões é farelo diante da dança dos trilhões – corresponde a manutenção da filantropia da esquerda liberal mantida por Temer e também pelo protofascista Bolsonaro, mas é absolutamente insuficiente para consolidar uma coesão social de milhões de brasileiros desamparados e sem representação política real.
Ademais, essa massa de trabalhadores submetidos à superexploração da força de trabalho não possui qualquer ilusão de que poderão sair da pobreza, exceto se o critério adotado pela insensibilidade dos tecnocratas e políticos vulgares for aquele indicado pelo Banco Mundial. Afinal, quando a esquerda liberal aceita míseros 2 dólares e 15 centavos como critério para tirar um trabalhador do mapa da fome, adota também a linha moral de nossos algozes como horizonte possível e nada mais lhe resta senão a digestão moral da pobreza.
A derrota de Bolsonaro ainda é festejada pela esquerda liberal como conquista “estratégica”, mas é possível perceber que mesmo os neófitos são capazes de sentir a insuficiência do resultado eleitoral diante da incapacidade manifesta em sequer roçar as questões centrais do Estado e da economia que afetam a vida de milhões. Lula segue sabotando o regime presidencialista considerado pelo espírito republicano dominante um artificio perigoso para a estabilidade burguesa quando assume a forma “populista” ou “caudilhista”. De fato, a necessária restauração da natureza presidencialista de nosso regime político não encontrará em Lula o personagem à altura dos dilemas inerentes a fase rentística do capitalismo dependente, mesmo quando a crise cíclica do capitalismo em escala mundial abriu inéditas possibilidades.
A necessidade de enfrentar a direita e seu potencial fascista tampouco será obra do presidente eleito, razão pela qual, mais do que estabilidade, o futuro governo será muito provavelmente marcado por sucessivos acordos e respectivas renúncias, todas destinadas à corrosão da escassa credibilidade do sistema político. Assim, o movimento considerado uma tacada de mestre nos bastidores e avaliado como mais um passo necessário para garantir “governabilidade” por assessores e “dirigentes” partidários, é o mesmo que alimenta silenciosamente o ódio do povão a todos e a tudo. Até agora, tudo indica que a crítica ao sistema permanecerá mesmo como monopólio da direita.
Nildo Ouriques é economista e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC.