2023: "Precisamos manter nossas conexões para enfrentar o protofascismo que segue vivo no Brasil"
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- Gabriel Brito, da Redação
- 18/01/2023
O Brasil entrou em 2023 com a esperança de retomar alguma normalidade, cujo reflexo deve ser uma retomada mínima de políticas de bem estar e mobilidade social. Lula, em seu terceiro mandato, consagrou de vez seu nome no rol dos principais políticos do país e sua posse simbolizou poderosamente os sonhos que foram massacrados pelo consórcio entre ultraliberais e protofascistas. No entanto, a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro é um recado de que as lutas pelo Estado de Direito e a democracia terá de ser permanente.
Nesta entrevista que abre o ano, a historiadora Virgínia Fontes alerta sobre os perigos a um governo que nasce cercado por setores que se locupletaram na gestão do Estado brasileiro e mostram pouquíssima disposição em abrir mão de suas extensas regalias. Diante disso, ela afirma que a manutenção da mobilização que venceu as eleições, em especial em seu aspecto comunicacional, é fundamental para evitar este cerco que se torna cada dia mais óbvio.
“É muito importante assegurar uma rede popular, de maneira a dar acesso a uma comunicação limpa de fake news, de excessos de defesas corporativas, sectárias, que permita no dia a dia a continuidade de uma formação política das classes trabalhadoras. Ela ocorreu nesses seis últimos anos de luta, não foi inexistente apesar da tragédia política, e permitiu estabelecer embriões de uma organização popular mais extensa, através de vínculos mais ou menos invisíveis, mas poderosíssimos. Tais vínculos não se limitam aos partidários e aos movimentos, diretamente, mas passam pelo contato entre eles, pela confiança que se constrói, pela elaboração de linguagens comuns e pela incorporação recíproca de pautas antes isoladas”.
A respeito do bolsonarismo, Virgínia Fontes descreve as condições que mantém vivo o bolsonarismo e, mais exatamente, o protofascismo brasileiro. Suas raízes vêm no mínimo desde a ditadura empresarial-militar e sua forma político-administrativa encontra diversas relações com o período de 1964-1985, o que explica a dificuldade das elites brasileiras em pular desta barca.
“Ele conseguiu contemplar a megaburguesia, com controle avassalador sobre as forças de trabalho e farto apoio, mas ao mesmo tempo abriu a porteira para que pequenos, médios e até mesmo grandes burguesias avançassem na predação da natureza, na expropriação das populações, permitiu que constituíssem um verdadeiro arsenal, com armamento de calibres variados, no temor de ataques dos expropriados. O governo assegurou às classes dominantes o direito a atacarem os setores populares. Esse é o argumento do Bolsonaro”.
Desta forma, Virgínia exorta as esquerdas a recuperarem uma visão crítica do capitalismo e da política enquanto luta de classes. Trata-se do caminho mais seguro para manter as massas esclarecidas a respeito das relações sociais e econômicas que de fato mandam no país e do tamanho das lutas a empreender. Trata-se, também, de criar uma correlação de forças que sustente o governo e o próprio estado de direito por fora das instituições, nas ruas.
“É importante que a gente saiba da dimensão do bolsonarismo, o que significa, quem está ali dentro, quem organiza e instrumentaliza e não apenas entregar tudo ao STF. Porque essa é uma questão popular e precisa continuar sendo uma questão popular, porque têm a ver com a formação dessas massas trabalhadoras e com a sua capacidade de auto-organização”.
Quanto ao imenso trabalho de recuperação de um país dividido e sabotado por uma escória golpista que tenta ressuscitar a ditadura militar, não há como evitar confrontações com os ditames neoliberais e sua apropriação quase ilimitada do orçamento público. Como explica na entrevista, este é, aliás, mais um motivo para se manter uma ativa rede de comunicação e engajamento político.
“Sem romper com essa PEC e sem falar no cancelamento da dívida pública, como por sinal o Paquistão reivindica e teria de ser uma reivindicação nacional e internacional, mesmo dentro do Estado burguês, seguimos dentro de uma jaula onde metade do orçamento do país vai para a classe capitalista de maneira direta e para uma pequena parcela de classes médias que pensa ganhar com isso. As lutas setoriais são compreensíveis, mas é preciso compreender que estamos dentro de uma jaula. E a jaula está sendo comprimida, não afrouxada. O nome da jaula é capitalismo, é a dinâmica da sociedade capitalista. E o que está sendo proposto é que a gente devore um ao outro pra pegar um pedacinho maior”, sintetizou.
A entrevista completa com Virgínia Fontes pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em sua análise retrospectiva, o que foram esses quatro anos de Bolsonaro, ou seis anos de hiato entre o último e o novo governo do PT, e seu significado histórico? Caberia comparação com os retrocessos acumulados em 20 anos de ditadura militar?
Virgínia Fontes: A devastação começou na destituição da Dilma. Apesar de termos sido oposição ao PT naquele período anterior, fomos obrigados agora a defendê-lo, mesmo que sigamos em certa oposição. O que tivemos neste período de seis anos foi uma catástrofe pior do que da ditadura empresarial-militar, concebida e organizada através de grupos como o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e de mais uma organização de extrema direita internacional, estudada pelo Vicente Gil da Silva lá na UFRJ. Portanto, um regime que contou com o topo do empresariado brasileiro, sempre foi associado com os Estados Unidos, na direção do Estado brasileiro no imediato pós-golpe.
Isso já foi bastante estudado também pela Elaine Bortone, que mostra a reforma administrativa após o golpe e a ocupação dos cargos no Estado brasileiro, a exemplo do pesquisado por Rene Armand Dreifuss na década de 80, em seu estudo seminal.
A ditadura empresarial-militar foi de muita violência e tortura organizadas diretamente pelo Estado. Portanto, a violência da ditadura, oficial e direta, não se reproduziu no governo Temer-Bolsonaro. A diferença principal da ditadura de 64 para o golpe político-parlamentar de 2016, além do caráter militar, é que a ditadura militar era uma silenciadora das manifestações populares; com Jair Bolsonaro, o que assistimos foi a uma excitação da mobilização popular, de formas protofascistas, diferentes da ditadura. Essa excitação de formas protofascistas estimula não apenas violência oficial clássica do Estado, e aquelas que já existiam e continuam existindo (somos campeões de violência estatal), mas também dissemina violência difusa, reafirma a importância da violência direta proprietária, reafirma formas de organização da repressão e silenciamento das massas populares a partir dos mais diferentes setores das classes dominantes e mesmo das classes médias.
Assim, há uma diferença importante entre a ditadura empresarial militar e o governo bolsonarista, embora o governo bolsonarista só tenha sido possível a partir do golpe de 2016. Esse período do golpe de 2016 para cá tem similitudes com outras políticas da ditadura empresarial-militar, que são a destruição sistemática das organizações das classes trabalhadoras e dos direitos das grandes massas populares. O trabalho foi iniciado pelo governo Temer, que enfrentou toda a oposição popular. E era muita oposição popular, ele tinha 2% de aprovação, mas imenso apoio midiático. Editorial da Globo chegou a dizer explicitamente que Michel Temer fizesse o que tinha de fazer, aproveitando que não seria reeleito, isto é, retirasse direitos, aprofundasse as formas de privatização e controlasse movimentos populares.
É no rastro deste golpe que se pode entender a emergência de Bolsonaro, que não era o preferido das burguesias, mas foi criado e nutrido por elas e pelas forças militares. Ele tem personalidade própria, não adianta a gente imaginar que seja um mero fantoche ou boneco. Ele tem personalidade própria, ligação própria com setores milicianos, com as modalidades de tortura do período da ditadura e em tais condições emergiu como candidato eleitoralmente viável. Para que fosse eleitoralmente viável foi necessário prender Lula e tirá-lo das eleições. Estamos num golpe que vai se desdobrando numa sequência de golpes, inclusive jurídicos, como no caso da prisão do Lula. Foi preciso prender o Lula, foi preciso que os militares interferissem diretamente, com ameaças ao Supremo Tribunal Federal, ao Congresso, etc. para que se deslanchasse, ficasse aberta a porta para uma campanha eleitoral do tipo da que Bolsonaro fez, de característica protofascista, com a disseminação do horror. E passou a ser o candidato frente à impotência dessas mesmas burguesias e seus prepostos no sentido de emplacar uma terceira via. Não conseguiram e não vou fazer a análise aqui, mas a situação permitiu a adesão à candidatura do capitão através de uma falsificação brutal, difundida por toda a mídia proprietária, que era a suposição de duas campanhas extremistas, de um lado a do Haddad, de outro Bolsonaro, uma das falsificações mais terríveis que assistimos nos últimos tempos. E com intenso apoio midiático para requentar essa velha e gasta fórmula da suposição de “dois demônios”.
Ora, o governo Bolsonaro foi protofascista, segue sendo uma corrente protofascista, nós não sabemos ainda qual serão os desdobramentos futuros, embora estejamos assistindo a manifestações protofascistas com apoio tanto do gabinete do general Heleno como das Forças Armadas. Esse governo não destruiu o Estado. Ele designou uma parcela do Estado para destruir, ponto a ponto: devastar todas as políticas que colocassem, dessem acesso ou respondessem a reivindicações populares. Podemos até considerar que é uma destruição do Estado burguês, mas eu iria com cautela nessa análise, porque Bolsonaro instaurou um Estado a ser mantido sobretudo pela violência sobre as grandes massas. Ele reduziu o âmbito das políticas compensatórias para aumentar e reforçar uma política de Estado de competitividade até a morte, mas apenas entre os trabalhadores. Isso que o diferencia dos outros governos. Não pôde cumprir tudo por conta da pandemia, que evidentemente impôs que houvesse uma certa garantia de renda para a maioria das populações, mas fez simultaneamente, ao lado da política dos auxílios, um debate contra quem o recebia, criminalizando e desqualificando tais pessoas, algo sintomático de um governo protofascista – e também desviando recursos e mandando pra gente que não deveria.
Ora, se, a destruição é das políticas que tivessem algum cunho de controle sobre o capital, este foi o grande beneficiário delas, que experimentou período de prepotência quase absoluta, com um presidente que declarou que “este governo é dos empresários”. Não é à toa que grande parcela das burguesias brasileiras hesitou até o último instante em retirar seu apoio a Jair Bolsonaro. Mesmo quando retiraram o apoio ao Jair Bolsonaro, começaram tentando uma “terceira via”, que gorou. Parte significativa dessas burguesias durante a campanha não declarou nenhum apoio ao novo governo eleito, a Lula. É importante que isso fique claro, porquê desde cedo estão exigindo que o conjunto das políticas bolsonaristas não deve ser desmantelado, no máximo receber alguns ajustes. Em outros termos, esse é o Estado que querem.
O governo Bolsonaro ainda facilitou a burguesias de menor escala práticas predatórias sem controle da sua legalidade. Em suma: ele conseguiu contemplar a megaburguesia, com controle avassalador sobre as forças de trabalho e farto apoio, mas ao mesmo tempo abriu a porteira para que pequenos, médios e até mesmo grandes burguesias avançassem na predação da natureza, na expropriação das populações, permitiu que constituíssem um verdadeiro arsenal, com armamento de calibres variados, no temor de ataques dos expropriados. O governo assegurou às classes dominantes o direito a atacarem os setores populares. Esse é o argumento do Bolsonaro. Daí armamento de CACs, o estímulo à milicianização das polícias de todos os tipos, além da continuação de violências e assassinatos dos setores populares. O que nós assistimos sobre diversas formas, desde Genivaldo em Sergipe aos massacres do Rio de Janeiro, aos massacres em São Paulo, assassinatos do Rio Grande do Sul ou no Nordeste. O país inteiro experimentou a violência proprietária e a violência policial contra setores populares, garantias de expropriação desses setores populares e predação sobre a natureza, sobre terras públicas, sobre as águas, sobre as matas, sobre tudo que se possa imaginar de rentável para os proprietários. Tudo isso foi autorizado e pretendiam que se tornasse... Estado.
Assistimos, pois, não exatamente a uma destruição do Estado, mas a uma recomposição de um Estado para uma certa configuração de conjunto das classes dominantes. Isso envolveu recomposição em direção a um protofascismo que tem diferenças com o fascismo de Estado original, mas também elementos em comum. Protofascismo não significa só autorização para a burguesia expropriar e avançar sobre terras públicas, águas públicas, florestas etc. Protofascismo significa também mobilização de massas em torno desses mesmos processos fantasiados de valores morais. Envolveu a adesão das igrejas (elas também beneficiárias de polpudos recursos públicos) e de uma série de setores populares desencantados com os governos precedentes, inclusive os petistas. Também essa é uma outra discussão bastante longa, pois tem dois ângulos – o primeiro, a estreita proximidade das burguesias e de lideranças religiosas com os Estados Unidos, evidenciando que sua atuação interna, brasileira, expressa uma plena adesão ao capital-imperialismo. A tal ponto que divisões nos EUA repercutem internamente, inclusive nas Forças Armadas.
Bolsonaro e o protofascismo não se diluíram e não acabaram. Ele foi derrotado nas urnas, porém, não de maneira massiva. Foi uma derrota eleitoral fundamental e que pode permitir uma vitória política, mas não assegura de maneira imediata. Foram dois milhões de votos de diferença, o que significa que a sociedade está dividida. E uma das táticas protofascistas é se colocar contra “tudo isso que tá aí” sem explicitar o que está falando, o que confunde o ambiente político.
Estamos diante de uma situação em que o protofascismo perdeu apoio por dois ou três caminhos diferentes. O primeiro caminho foi um desligamento de um setor das classes burguesas, especialmente as megaburguesias, que ganharam muito dinheiro em todo esse período, mas temiam essas sanções internacionais que poderiam vir a sofrer ou já estavam sofrendo, uma vez que o governo Bolsonaro descumpria os acordos que o próprio Estado brasileiro tinha assinado no cenário internacional. Essa disjunção burguesa tem a ver também com a derrota de Trump nos Estados Unidos e, portanto, com uma nova diretriz capitalista global, em desacordo com esse viés fascistizante. Esse foi o primeiro caminho, digamos, do distanciamento que não era nenhum enfrentamento.
A megaburguesia não enfrentou o Bolsonaro. Ela se afastou, mas alguns megaempresários mantiveram apoio direto, um deles é o exemplo da Raízen, da família Ometto, que manteve o apoio a Bolsonaro o tempo inteiro, e aliás, é sócia de empresa britânica. Ou ainda Salim Mattar, dono da Localiza (locação de veículos).
O segundo grupo que fez o enfrentamento foi o conjunto das esquerdas, dentro e fora do PT, diversificada, composta de antifascistas, de partidos, de movimentos populares etc. Apesar da violência do governo Bolsonaro, do temor de retaliações e de ataques diretos do governo Bolsonaro, que não foi sistemático, mas difuso. Apesar disso, e mesmo sob a pandemia, se recompuseram formas de conexão e organização, especialmente movimentos negros, de luta pela saúde, das mulheres, de favela, MTST, MST, partidos, que voltaram a se organizar e ir para uma luta, inclusive na rua. Iniciaram na prática uma espécie de frente de esquerda, tênue, mas muito importante. E chegamos a fazer importantes manifestações.
O terceiro polo de enfrentamento ao protofascismo veio da direção do PT e do grupo mais lulista, com uma proposta imediata de procurar agregar todas as forças antibolsonaristas, inclusive das direitas, e mesmo quem até a véspera tinha sido bolsonarista.
É somente no bojo dessas três forças que a gente pode entender a vitória eleitoral dessa coligação. A vitória de Lula não é só pela negociação com o Alckmin ou porque parcela das burguesias se afastou de Bolsonaro. A conexão dessas três forças ainda é frágil e dependerá de sustentação popular muito mais substantiva porque o grupo protofascista bolsonarista, militar, miliciano e inclusive empresarial ainda tem bastante adeptos e bastante força. A gente vai precisar lutar contra isso de maneira consistente.
Correio da Cidadania: Ao olharmos o trabalho de transição, percebemos como carregou muitas expectativas e propostas de quem ficou contra as cordas nesse último período. Temos um novo governo que traz muitas demandas, expectativas e necessidades reprimidas ao mesmo tempo que tem em volta de si todo um cerco, midiático, político, empresarial, todo um grupo da sociedade brasileira que, se não quer interditar, quer pautar o governo. A mobilização dos trabalhadores de aplicativo talvez seja o melhor exemplo inicial. Enfim, como essa luta contra o protofascismo, num contexto onde uma pauta de reivindicações pode transmitir uma imagem de insatisfação contra um governo, que na leitura geral das esquerdas tem de ser defendido, ao mesmo tempo em que precisa responder a demandas sociais profundas? Como equilibrar todos esses pratos e, simultaneamente, afastar a ameaça fascista e produzir alguma coisa razoável pra melhorar a vida do país num período próximo?
Virgínia Fontes: A meu juízo, a persistência do protofascismo, a milicianização das Forças Armadas, o predomínio das burguesias brasileiras estreitamente coligadas com as burguesias estrangeiras e sua infiltração avassaladora no Estado brasileiro tornam essa transição especialmente complexa e difícil.
São questões que precisaremos pensar coletivamente, a médio e longo prazo e de maneira muito coletiva. Eu vou começar pela questão da comunicação, articulada com a formação e a organização.
É muito importante assegurar uma rede popular, de maneira a dar acesso a uma comunicação limpa de fake news, de excessos de defesas corporativas, sectárias, que permita no dia a dia a continuidade de uma formação política das classes trabalhadoras. Ela ocorreu nesses seis últimos anos de luta, não foi inexistente apesar da tragédia política, e permitiu estabelecer embriões de uma organização popular mais extensa, através de vínculos mais ou menos invisíveis, mas poderosíssimos. Tais vínculos não se limitam aos partidários e aos movimentos, diretamente, mas passam pelo contato entre eles, pela confiança que se constrói, pela elaboração de linguagens comuns e pela incorporação recíproca de pautas antes isoladas.
Caso contrário, o governo estará fadado a ser capturado pelos vínculos também poderosíssimos e invisíveis que as burguesias nutrem entre as relações institucionais e suas práticas cotidianas concretas fora das instituições.
Em outros termos, um dos sinais que me pareceu mais dramático e assinalei num texto recém-publicado foi exatamente que no dia seguinte das eleições a rede de redes que se constituiu pelos setores populares, com os mais diversos e mais diferentes mídias e grupos, se desmantelou. Eu diria que foi uma rede democrático/socializante e vejo que houve uma perda total de sentido dessa rede pelo grupo que fez a transição de governo. Perdemos quase imediatamente a capacidade coletiva de enfrentar as fakenews, de socializar, de trazer as informações corretas sobre o que está acontecendo no Brasil, inclusive sobre as manifestações bolsonaristas. A pauta da comunicação voltou, infelizmente, para a grande mídia proprietária.
É importante que a gente saiba da dimensão do bolsonarismo, o que significam, quem está ali dentro, quem organiza e instrumentaliza e não apenas entregar tudo ao STF. Porque essa é uma questão popular e precisa continuar sendo uma questão popular, porque têm a ver com a formação dessas massas trabalhadoras e com a sua capacidade de auto-organização. Não se está pedindo que o PT e o próprio governo organizem essas massas para ir às ruas, embora eu até gostaria. É absolutamente fundamental não perder essas redes. E o primeiro passo dado pelo grupo de dirigentes do PT foi enxugar, encolher, diminuir, restringir essas malhas e redes de comunicação, que foram absolutamente indispensáveis para a eleição, em especial entre o primeiro e o segundo turno, quando uma parcela da militância já estava indo pra rua.
Correio da Cidadania: É uma dinâmica que lembra muito 2014, quando também houve um movimento semelhante no esforço para eleger a Dilma e, depois disso, vimos o desaparecimento dessa articulação de redes.
Virgínia Fontes: Exatamente. Tem muito a ver, mas agora em condições ainda mais graves. Naquela vez era só mais uma eleição e agora estamos nos defrontando com uma força protofascista apoiada por militares e com elos internacionais. Portanto, não é admissível que uma força política que organiza a transição corte os elos com sua base, principalmente os elos de comunicação, formação e organização. Elas devem ser constituídas de maneira virtual e presencial. É um tiro no pé sem proporções e não é só um tiro no pé do grupo que está no governo, mas também das massas trabalhadoras. É terrível.
Posto isso, Lula mostrou que é um grande líder, com potência e capacidade de agrupar tais forças. Só não tem mostrado capacidade de garantir esses elos para além da sua própria pessoa, o que torna sua personalidade cada vez mais alvo de eventuais ataques de todos os tipos, o que não é bom nem para ele nem para o conjunto, mesmo com uma política muito moderada de transição. Todos, sem exceção, sabiam que a eleição era um ponto crítico, depois teríamos dois meses até a posse, que por sua vez seria um grande problema, não estava garantida. Finalmente, a implantação do governo Lula seria muito complicada. Tudo isso estava posto de maneira clara ao longo da campanha.
O que se fez com relação ao nexo direto com a variedade de forças democrático/socializantes desde 2016 foi silenciar esse canal. Mas o bloco neoliberal, que prefiro chamar do grupo das grandes burguesias, continua lá e na mínima ameaça a qualquer taxinha de lucro realiza chantagens e quiçá coisas piores. O Arthur Lira querer o Ministério da Saúde, como se aventou, é a evidência de que ele não fala sozinho. É importante que a gente lembre que o Banco Itaú inaugurou uma coisa similar ao Todos pela Educação, o Todos Pela Saúde, que são formas de controlar as políticas públicas e universais de educação e saúde. Assim como Armínio Fraga criou um aparelho privado de hegemonia, uma entidade sem fim lucrativo chamada Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, há um ano e meio mais ou menos, assim como há uma entidade empresarial chamada Coalizão pela Saúde, mantida por um grupo de empresários brasileiros e estrangeiros da área da saúde para definir qual deve ser o rumo da política pública da saúde pública. Não apenas na saúde privada, perceba-se. Lógico que estão defendendo interesses, não existe saúde privada, existe venda de tratamentos médicos privados. Saúde só pode ser pública. Porque a determinação da saúde é uma determinação social, são as condições de vida que geram saúde. Isso o privado não pode fazer, pois o que gera é desigualdade e adoecimento. O privado tem medicamento, produto médico etc.
Essa privatização acobertada pela falsa ideia de que estão preocupados com a saúde pública já estava sendo armada bem antes do golpe de 2016. Foi bem expressiva a posse do Mandetta no governo Bolsonaro. Mandetta era o cara que vinha dos planos de saúde, da medicina privada, mas era médico. No contexto da pandemia e do negacionismo foi substituído por um general que não tinha nada a ver com a saúde, não sabia o que era saúde, aliás não sabia nada de nada, nem mesmo de logística, que era sua suposta função. Um cara que não conseguiu encaminhar oxigênio pra Manaus enquanto a Venezuela em dois dias conseguiu mandar caminhões carregados de balões de oxigênio.
É uma situação duríssima, de maneira que é importante não desarmar a consciência popular do que está acontecendo, socializar o máximo possível para a maioria da população quais são as forças que estão em luta nesse processo de transição, mesmo que a gente não esteja estimulando uma saída precipitada para enfrentamento aos bolsonazistas. Porque a gente sabe que eles têm o endosso das forças militares e não queremos submeter nossos militantes a formas de violência e truculência que eles estão exercitando.
Porém, precisamos nutrir nossos lados, para que compreendam o que está em jogo e qual atuação das classes dominantes e protofascistas. Porque a atuação dessas classes não se limita aos quarteis e nem acabará quando se debelar a atual onda de ataques às instituições. É isso que precisa ser dito. Mostrar a verdade das relações sociais ao conjunto das classes trabalhadoras.
Correio da Cidadania: São muitos campos de batalha, como a saúde que você mencionou, a Educação, também alvo de desmonte, em especial universidades, há o debate econômico com todo o cerco do Capital e sua mídia etc. Você enxergaria atalhos por onde começar a reconstruir uma política pública que fosse que apaziguadora?
Virgínia Fontes: Eu me recuso a pensar em termos de governabilidade, estrutura do governo, o que seria melhor pra montagem de governo. Isso porque as carências são tantas, as necessidades são tão gigantescas que é compreensível que nesse momento cada setor venha pedir pra si, se pensamos tais setores de forma abstrata, alimentação, saúde, pandemia, educação, ciência, devastação ambiental, devastação da economia, das cidades, transporte etc. Cada um desses setores está atravessado por outros e também por interesses de classes, com um determinado direcionamento. Tentando deixar claro: nesse momento todos os setores populares estão reivindicando. Mas reivindicando dentro de um tabuleiro que está fixado de maneira ditatorial a partir da PEC do teto, a PEC do fim do mundo. São reivindicações de escala mínima, mas estão dentro de uma jaula lutando por espaços.
Sem romper com essa PEC e sem falar no cancelamento da dívida pública, como por sinal o Paquistão reivindica e teria de ser uma reivindicação nacional e internacional, mesmo dentro do Estado burguês, seguimos dentro de uma jaula onde metade do orçamento do país vai para a classe capitalista de maneira direta e para uma pequena parcela de classes médias que pensa ganhar com isso. As lutas setoriais são compreensíveis, mas é preciso compreender que estamos dentro de uma jaula. E a jaula está sendo comprimida, não afrouxada. O nome da jaula é capitalismo, é a dinâmica da sociedade capitalista. E o que está sendo proposto é que a gente devore um ao outro pra pegar um pedacinho maior.
Lógico que o governo Lula e o próprio Lula vão procurar ganhar dois centímetros aqui, dois centímetros acolá nessa jaula pra diminuir um pouco o sofrimento do conjunto da população. Porém, as jaulas continuam contidas pela lógica da reprodução do capital. E não é porque ele é neoliberal, deixa de ser neoliberal, é protofascista ou deixa de ser protofascista. É porque é o Capital.
Por isso insisto ao ponto que estrutura esta entrevista: a relação entre comunicação e formação política, das consciências e organização virtual e presencial. Isso deu certo, como em 2014 e 2022. E nos ajudou para sobrevivermos aos três anos de pandemia, apesar das redes bolsonaristas e dos algoritmos. Não podemos jogar fora nossa experiência, por mais que esteja sendo espezinhada.
Precisamos reafirmar a importância da conexão entre nós mesmos, que não pode se reduzir ao tamanho desta jaula que nos é imposta. Democracia é o inverso de uma jaula, é mostrar que tem vida fora dela. Democracia não é um elemento meramente burguês. Ela se converte em elemento burguês quando é igualada à estrutura do Estado representativo e o tipo de legislação feita de cima pra baixo, como determinação do controle das massas populares, e não expressão das massas populares. Devemos lutar para que aqueles que tudo produzem, a riqueza, a vida, possam reverter esse processo.
Essa desconfiança com relação a massas populares, esse temor das massas populares, a distância com relação às nossas próprias práticas é o que mais me preocupa. Claro, eu também tenho palpite sobre o José Múcio e a sua leniência com os militares ou lobbies como de Arthur Lira sobre o Ministério da Saúde. Mas a minha questão fundamental é o silenciamento de setores populares nesse processo e de nós mesmos, o conjunto das esquerdas que lutou nesses anos e já temos dificuldade em reconectar todas as redes. Não podemos mais operar em nichos separados, senão seremos devorados e tornados forças secundárias. Temos um papel fundamental de resistência desde o golpe de 2016 e nas eleições de 2022. Precisamos sempre preparar o enfrentamento.
Esta é a maior das minhas inquietações, porque a fase de transição é só uma fase. Virão outras. Não basta ficar olhando cada momento como se cristalizasse a solução. Não cristaliza. Ele cristaliza um momento da luta, aponta o momento da luta e é no conjunto da luta que devemos estar presentes o tempo inteiro.
Correio da Cidadania: Esse conjunto tem uma série de necessidades imediatas que exigem esforço organizado, mas você falou que a jaula tem nome: capitalismo. Isso não reforça uma certa necessidade em se retomar uma crítica profunda do capitalismo, da política como luta de classe, da formulação de um outro horizonte histórico, em meio a uma crise global do capitalismo que há mais de 10 anos não apresenta soluções em lugar nenhum do mundo?
Virgínia Fontes: Estamos vendo o que aconteceu no Peru com a deposição do Pedro Castillo, o Chile de Gabriel Boric. Vemos o fascismo crescer no cenário internacional, os EUA em disputa com a China e nessa disputa as forças fascistas parecem estar ascendendo e estabelecendo novas formas de narrativa e de censura. Nós temos um compromisso com a verdade das relações sociais, não uma verdade abstrata, como se fosse uma revelação divina, conforme feito por Bolsonaro quando mente. Nós temos um trabalho de mostrar essas relações sociais no seu chão concreto, que é a vida das pessoas. E a vida das pessoas é a luta de classes, é o enfrentamento à opressão, à exploração, expropriação o dia inteiro, todos os dias.
Portanto, nosso compromisso é traduzir o que está acontecendo nessa transição de forma clara pra que a população possa entender que está havendo uma disputa cerrada pelo fundo público e seu controle. Uma parte da atual direção do Estado pretende deslocar parte do fundo público aos setores populares, mas até aqui sem alterar as condições nas quais tal deslocamento ocorre. E o que é pior: deixando de fora a comunicação, a formação, a consciência e a organização desses setores populares. Entregando a pauta da formação política para as mídias proprietárias. Nós precisamos enfatizar essa questão. É a nossa tarefa. Não podemos dizer quando haverá uma revolução, mas podemos apontar o que estamos fazendo e contra quem devemos lutar.
Por fim, eu militei pela eleição do Lula desde o primeiro turno, mesmo realizando as críticas que sempre fiz. E acho que sua eleição é um suspiro dentro de um contexto de estrangulamento. Mas precisamos de algo mais que um suspiro de alívio. Não estou aqui atacando o governo Lula que mal começou, mas critico o que me parece a pior parte deste processo: o desengajamento da equipe do Lula, do PT, do conjunto de forças democráticas, progressistas, socialistas, de uma conexão que foi de fato estabelecida. Não é uma invenção. Este desengajamento arrisca a levar governo para um caminho do qual ele próprio não terá como se desviar por ter rompido os elos com sua base. Portanto, essa é a grande questão, não é uma questão só do momento da transição, mas que vai atravessar o governo inteiro.
Trata-se, portanto, de uma contribuição para que essa possamos ter um caminho mais palatável às massas populares e por um enfrentamento mais substantivo ao protofascismo que segue vivo no Brasil.
Gabriel Brito é jornalista, repórter do Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.
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