Correio da Cidadania

Yanomamis: o papel do autoritarismo e dos militares

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O Brasil ainda busca compreender a magnitude da tragédia dos povos Yanomami sob o assombro das imagens de seus corpos descarnados, que trouxeram à memória as piores imagens já produzidas pela humanidade. No entanto, ao tomar ar e analisar friamente como se chegou a isso, constata-se que não há motivos para surpresa.

No mesmo sábado em que destituiu um comandante do exército, Lula declarou Emergência de Saúde na Terra Indígena Yanomami (TIY), a qual visitou, para depois fazer declarações enfáticas de condenação a Bolsonaro por sua política ideologicamente genocida, como se verá adiante. “Mais que uma crise humanitária, o que vi em Roraima foi um genocídio. Um crime premeditado contra os Yanomami, cometido por um governo insensível ao sofrimento do povo brasileiro”, declarou o presidente em seu twitter.

Por sua vez, o ministério da Saúde anunciou que enviará a Força Nacional do SUS para a TIY. Com 2,5 mil inscritos até dezembro, a FN-SUS viu o número de voluntários saltar em 700% e já conta com 19,4 mil inscritos. O ministério já enviou uma primeira equipe de 12 profissionais, entre médicos, enfermeiros e emergencistas. Além disso, cerca de 70 crianças yanomamis estão internadas em hospitais. Segundo relatório do ministério dos Povos Originários, 570 crianças morreram de causas evitáveis nos últimos quatro anos, quando o cerco garimpeiro se tornou massacrante.

“(Com o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles), as políticas ambientais sofreram um golpe ainda mais duro. Salles falava abertamente em juntar o ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. A ideia deles era mesmo destruir, entraram com muita sede ao pote. No primeiro ano, ainda patinaram um pouco, pois estavam entendendo o funcionamento da máquina pública. Eles colocaram ministros e dirigentes muito conservadores, anti-indígenas, mas algumas pessoas da área técnica permaneceram em lugares-chave, tanto na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) quanto no ministério do Meio Ambiente. Depois veio um decreto que revogou todos os colegiados de participação da sociedade civil, inclusive o Conselho Nacional de Política Indígena”, explicou uma servidora da Funai com experiência na pasta de Meio Ambiente, ao Outra Saúde.

Ela, cuja identidade mantemos em sigilo a fim de evitar perseguições, se refere ao Decreto 9.759, um verdadeiro revogaço de Bolsonaro, que extinguiu centenas de conselhos sociais com espaço para participação da sociedade civil. Elucidativo do caráter ditatorial e excludente do projeto político do capitão, o decreto foi revogado por Lula logo em 1º de janeiro. Mas os estragos causados não poderiam ficar na bruma da desinformação e da má fé do Estado brasileiro para sempre.

Má fé, pois não faltaram avisos da tragédia no território indígena, como contou em seu twitter Mario Bonsaglia, membro do Ministério Público Federal que atuava na região relacionada à TIY. “Saímos com a impressão de que uma ação mais efetiva do Exército não ocorria porque dependia de ordens de Brasília – e essas ordens não vinham.

Iniciativas foram tomadas subsequentemente no âmbito da 6ª Câmara do MPF para aglutinar o apoio de diversos órgãos do Executivo (Funai, PF, Casa Civil, ministério da Defesa etc) para dar pleno cumprimento a decisões judiciais obtidas pelo MPF, mas não tiveram o êxito desejado. Desde então, decorridos três anos, não obstante os inúmeros e persistentes esforços e a atuação da Procuradoria da República em Roraima, a situação piorou muito, como todos estamos vendo”.

Aqui, Bolsonaro não pode ser acusado de mentiroso. Sua fraseologia racista e anti-indígena é amplamente conhecida e foi mote de sua campanha de 2018. Se buscamos no tempo as raízes de seu pensamento, veremos que o então deputado, no longínquo 1993 e mesmo sob o espírito de mudanças da Eco-92, já apresentava projeto de desafetação dessas terras indígenas.

Suas ideias têm lastro nas Forças Armadas que o formaram. De lado a lado, circula o livro do coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto, intitulado A Farsa Yanomami, publicado em 1995 pelo próprio Exército. Basicamente, a obra defende a tese de que a terra indígena é um território vazio e sua proteção da exploração econômica é uma abstração criada por ONGs internacionais, que no fundo estariam a serviço de obscuros interesses estrangeiros sobre a Amazônia, com o fito de bloquear o desenvolvimento nacional.

A tese, essa sim uma farsa, ignora toda a produção antropológica e indigenista moderna e desconhece o próprio modo de vida deste e outros povos indígenas. Trata-se de uma etnia de contato recente com a civilização, cujo modo de vida, em determinados momentos, produziu deslocamentos pelo território amazônico, inclusive pela violência de outros agentes. Mas sua estada no atual território é estável no tempo.
“Se antes a ditadura militar falava em soberania, agora os militares abriram totalmente as pernas ao capital”, analisa a servidora, que não tem dúvidas em afirmar que o discurso nacionalista foi usado com fins diversos.

Má fé também de Damares Alves, ministra dos Direitos Humanos que recebeu alertas sobre a necessidade de água e comida na TIY, mas, não aprovou o envio dos insumos porque “os indígenas não haviam sido consultados”.

Dessa forma, Bolsonaro e sua política de espoliação e morte são filhos legítimos da ditadura militar e seus pretensos continuadores. E os militares de hoje são inequívocos mentores intelectuais de toda este crime de lesa-humanidade.

“Não tem como não tirar essa conclusão. Em 2019, o MP entrou com processo contra o governo porque as lideranças indígenas, especificamente as yanomami, já alertavam sobre os problemas. Vale destacar que os Yanomami são um grupo, dentro da classificação indigenista usada pela Funai, de recente contato. Alguns indígenas nem falam português. Existem povos isolados, sem contato permanente com a sociedade nacional, assim como há os de recente contato, que por isso são mais vulneráveis, a exemplo também dos povos do Vale do Javari, onde houve a tragédia com o Bruno Pereira e o Dom Philips”, explicou nossa entrevistada.

Tanto na Funai aparelhada por militares e tomada por interesses anti-indígenas como no Meio Ambiente de Ricardo Salles, a servidora pública viveu o desmonte e sua crueldade em dose dupla. Confira sua entrevista ao Outra Saúde.

Como foi sua experiência na Funai ao longo desses anos e como ela pode nos ajudar a compreender os fatores que produziram a tragédia dos yanomami?

Quando entrei na Fundação, foi decretada a Política Nacional de Gestão Ambiental e de Terras Indígenas (PNGATI), uma política transversal, que trata de vários temas, como a gestão territorial das terras indígenas, saúde, educação, regularização fundiária…

A PNGATI era uma política com muita participação indígena, de todas as regiões do Brasil, paritária, com representantes indígenas de todas as regiões do Brasil e servidores, tanto da Funai como do ministério do Meio Ambiente, onde acompanhávamos questões que afetam povos indígenas, como empreendimentos que impactam as terras indígenas, a exemplo do que ocorre agora na Terra Indígena Yanomami.

E o que aconteceu nos últimos anos, em especial nos quatro anos sob a presidência de Bolsonaro?

Claro que com Bolsonaro a mudança foi muito radical, mas começou a desandar a partir da gestão de Michel Temer. Nosso trabalho era mais conectado com a PNGATI e políticas públicas ambientais, a grande demanda do movimento indígena. Antes, tivemos grandes avanços em questões de governança, é a principal diferença.

Foram criados ou reestruturados vários colegiados de políticas públicas, no caso mais específico com as políticas ambientais e com participação indígena. Como falei, na PNGATI tinha esse comitê gestor e a nossa ideia era trabalhar dentro do serviço público, viabilizando a participação qualificada dos representantes indígenas nesses espaços de discussão.

Além do comitê gestor da PNGATI, uma conquista importante do movimento indígena, havia a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), criada em 2006, e transformada num conselho deliberativo em 2015, depois de bastante reivindicação.

Quando Temer assumiu, o conselho foi esvaziado, o ministério da Justiça atuou para reduzir a possibilidade de participação e essa governança começou a atuar de uma forma muito mais lenta. Ainda assim, a gestão Temer teve uma diferença importante em relação à de Bolsonaro no meio ambiente. O MMA ficou na mão de Sarney Filho, que apesar de tudo tinha mais sensibilidade para questões ambientais.

Nessa época fui cedida pela Funai ao MMA para trabalhar com a questão do patrimônio genético, ou seja, a biodiversidade, conhecimentos tradicionais dos povos associados a esses recursos genéticos, comunidades tradicionais e familiares, que alguns chamam de bioeconomia.

Com Ricardo Salles, as políticas ambientais sofreram um golpe ainda mais duro. Salles falava abertamente em juntar o MMA com o ministério da Agricultura, falava em tom de ameaça, que íamos nos arrepender de algumas coisas. Era uma política de destruição. A ideia deles era mesmo destruir a máquina, entraram com muita sede ao pote. No primeiro ano, ainda patinaram um pouco, pois estavam entendendo o funcionamento da máquina pública. Eles colocaram ministros e dirigentes muito conservadores, anti-indígenas, mas algumas pessoas da área técnica permaneceram em lugares-chave, tanto na FUNAI quanto no ministério do Meio Ambiente.

Depois veio o decreto 9.759, de 11 de abril de 2019, que revogou todos os colegiados de participação da sociedade civil, inclusive o CNPI. Alguns desses instrumentos foram criados por decreto e precisavam de regulação em lei para não serem extintos. Assim, já em 2019 eles conseguem minar a participação indígena em políticas públicas. E vem o apagão de dados. Neste contexto, começa uma perseguição a membros da Funai, do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), e a partir da pandemia, como ficou famoso na fala de Ricardo Salles naquela reunião ministerial (22/4/2020), era hora de “passar a boiada”. Aí a necropolítica se intensificou.

Nisso, fui indicada para acompanhar um processo do Ministério Público sobre os Yanomami, que questionava governo, Funai e ministérios sobre as invasões de garimpeiros. O governo não queria enviar ninguém, mas acabei indicada para participar da reunião, o que até surpreendeu membros do MP que me conheciam. A ideia era fazer uma força tarefa de desintrusão e tirar os garimpeiros da TIY, mas Bolsonaro nunca quis isso, ele falava abertamente da mineração, contra demarcação de terra indígena…

O MP afirmava que a força tarefa devia não só fazer a desintrusão, mas também construir postos de vigilância, de fiscalização etc. Nas reuniões de que participei, os dirigentes se ocupavam, basicamente, de oferecer justificativas para sua falta de ação, uma vez que tomar as providências solicitadas pelo MP não eram do interesse.

Neste processo, há a militarização da máquina pública e de órgãos como esses em que você trabalhou. Ao mesmo tempo, curiosamente, o cerco aos territórios indígenas ou áreas de preservação aumenta.

De fato, houve uma militarização, alguns cargos foram distribuídos entre militares, por exemplo o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), vinculado ao ministério do Meio Ambiente, foi totalmente passado às mãos da polícia militar. É curioso mesmo porque se antes a ditadura militar falava em soberania, agora os militares abriram totalmente as pernas ao capital.

No caso da Funai, isso foi aumentando, mas a militarização já vinha de antes, vinha da época do governo Temer. Havia um general que se dizia indígena, tinha mais sensibilidade. Quanto à proteção, nada, agiram contra o interesse nacional e em favor de interesses específicos.

A Funai é ligada ao ministério da Justiça, que por sua vez também abarca a PF, e seu presidente era delegado da Polícia Federal. Devia combater atividades ilegais, mas usou todo o seu prestígio para fazer o contrário. Claramente há um envolvimento da Funai sob essa gestão no sentido de fazer vista grossa a atividades ilegais, esforços para desregulamentar presença de estrangeiros, arrendamento de terra indígena, liberação de transgênicos, promoção de manejo florestal madeireiro dentro de terras indígenas… Enfim, ajudou a passar a boiada.

Tudo isso explica a leniência em proteger a TIY, garantir segurança, proteção ambiental, acesso à saúde, alimentos. Isso associado aos inúmeros alertas de MP e até STF de desintrusão da terra, parece tornar impossível não concluir que houve participação do governo nisso que agora choca a sociedade.

Não tem como não tirar essa conclusão. Em 2019, o MP entrou com processo contra o governo porque as lideranças indígenas, especificamente as yanomami, já alertavam sobre os problemas. Vale destacar que os yanomami são um grupo, dentro da classificação indigenista usada pela Funai, de recente contato. Alguns indígenas nem falam português. Existem povos isolados, sem contato permanente com a sociedade nacional, assim como há os de recente contato, que por isso são mais vulneráveis, a exemplo também dos povos do Vale do Javari, onde houve a tragédia com o Bruno Pereira e o Dom Philips.

Esses povos são mais vulneráveis. Entre outras coisas porque a TIY é muito longe, as dificuldades de acesso a coisas como serviço de saúde são mais complicadas. E aqui observo que os militares têm um privilégio, pois têm melhores condições de acessar tais áreas. Foram muitas denúncias e o governo alegava que não podia fazer nada, usava a pandemia como escudo.

Soma-se a isso o apagão de dados, desmonte de órgãos como a Sesai (Secretaria de Saúde Indígena), diminuição de estruturas e equipes de tais instituições, em especial em áreas mais longínquas… Ao mesmo tempo, os membros do governo tinham acesso privilegiado e começaram a manipular as informações. Seguravam informações, enquanto a Funai perdia estrutura, e aqui novamente temos o exemplo do Vale do Javari. Os militares tinham acesso a tais regiões, mas as equipes técnicas de órgãos relacionados a tais questões, não.

Isto é, o que houve com os yanomami não está isolado do contexto nacional e o governo Bolsonaro criou as condições para tais tragédias, nesta e outras terras indígenas?

Não está isolado. O que está acontecendo é um drama que ganhou projeção mundial, mas basta lembrar o que houve no Vale do Javari. O crime organizado, principalmente em áreas de fronteira, se apossou de terras indígenas e tem realizado várias atividades ilegais. Garimpo, tráfico, disputa entre facções em áreas de fronteira, tudo isso tem contribuído muito para situações calamitosas e tragédias como essa dos Yanomami.

Outros povos menos vulneráveis também estão com suas condições de saúde, acesso a alimentos, problemas ambientais e segurança ameaçadas. Isso é de uma maneira generalizada e, considerando o apagão de dados, ainda deveremos nos surpreender com novas informações que ainda não conhecemos.

Para finalizar, gostaria de destacar a importância de retomada dos colegiados e instrumentos de participação indígena. Em especial nas terras indígenas, isso é muito importante. Boa parte do que o governo anterior conseguiu produzir de estragos tem a ver com isso. Muitos dados e informações sobre a situação das terras indígenas são fornecidos pelos próprios povos que habitam tais áreas, por isso a importância de sua participação no governo.

Gabriel Brito é editor do Correio da Cidadania e repórter do Outra Saúde, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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