Correio da Cidadania

Os feminismos e o direito das mulheres à não violência

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Foto: Gabriel Brito, Correio da Cidadania / março de 2017

Neste 8 de março de 2023, dia internacional das mulheres, ao invés de oferecer ou receber rosas, proponho celebrar os múltiplos feminismos mundiais e brasileiros que propuseram e exigiram os Direitos das Mulheres. Sem as novas leis propostas pelas feministas, não teríamos a declaração dos direitos. Hoje, no Brasil, estamos a nos defrontar com o trágico aumento dos feminicídios, apesar da criação de leis como a Lei Maria da Penha, de 2006, e a Lei do Feminicídio, de 2015. Já alcançamos muito. Não foi pouco. Basta lembrar que nas Ordenações Filipinas que regiam o Brasil colonial até 1822, se o marido desconfiasse (mesmo sem provar) de adultério, não era crime matar sua mulher, assim como matar o suposto adúltero se fosse de status inferior ao marido. Até 1889, mulheres e homens escravos não tinham direitos à vida ou à integridade física e de saúde. Até 1962, as mulheres brasileiras casadas tinham que obedecer aos maridos em tudo que fosse “justo e honesto”, mas quem decidia o que era justo e honesto eram os homens... Somente em 1988 a Constituição Brasileira reconheceu efetivamente a igualdade entre mulheres e homens. Até hoje são poucas as mulheres em cargos legislativos e executivos.

Muito alcançamos se pensarmos de onde viemos. A igualdade de direitos entre homens e mulheres foi pela primeira vez reconhecida internacionalmente em 1945, na Carta da Criação da Organização das Nações Unidas. Não fossem as propostas da inclusão de um texto sobre igualdade entre homens e mulheres pelas duas feministas latino-americanas, a brasileira Bertha Lutz e a dominicana Minerva Bernardino, possivelmente o texto não incluiria o reconhecimento dos direitos das mulheres. Teria sido reforçado o entendimento de que bastava declarar a igualdade entre todos os homens, pois isso incluiria automaticamente as mulheres... Já, antes, foram os movimentos feministas do século 19 e início do século 20 os que lutaram pelo direito à remuneração igual para trabalho igual independente do sexo, pelo direito ao voto e pelo direito ao acesso a profissões liberais como advogadas, juízas, promotoras, médicas, psicanalistas. Somente a partir da metade do século 20 é que os movimentos feministas passaram a reivindicar a luta pelos direitos reprodutivos e sexuais e a luta por uma vida das mulheres sem violência, quer no âmbito doméstico, quer no âmbito público do trabalho e da política. No Brasil, houve o crescimento e visibilidade dos feminismos negros nos anos 1990 e a grande aliança das movimentações antirracista e antissexista nos anos 2000, com alta visibilidade. Por outro lado, a proposta por quotas de mulheres e negros/negras na política pouco avançou.

Vou me centrar a partir de agora na questão do direito à não violência e ao atual trágico aumento de feminicídios no Brasil. Este tema da violência contra as mulheres é o tema dos direitos das mulheres que mais tem me chamado a atenção como militante feminista e como pesquisadora acadêmica, hoje, professora emérita da Universidade de Brasília. Também é hoje o tema mais debatido sobre direitos das mulheres na imprensa, na mídia e nas redes sociais. Se alcançamos muita coisa, precisamos de muito mais: do amplo apoio da sociedade e do Estado.

São muitas as perguntas que ouço sobre por que continuam os feminicídios apesar da existência das leis. Por que muitas mulheres não denunciam a violência... Por que muitas mulheres não contam para suas famílias... Por que muitas mulheres que denunciam acabam por retirar a queixa... Por que mulheres não se separam... E por que muitas mulheres que já viveram situação de violência buscam novos parceiros que também são violentos... Muitas perguntas vêm acopladas a respostas prévias. Não seria por causa da vulnerabilidade econômica delas em relação ao parceiro ou à família? Não seria por falta de instrução e educação escolar por parte de autores e vítimas?

Vejam que todas essas perguntas vêm de pessoas que querem ver afastada a violência contra as mulheres. Mas algo se faz notável nas perguntas que recebo. Por que a maioria das perguntas recai no comportamento das mulheres? Um outro número de indagações recai sobre a imprensa, sobre a lei ou sobre a justiça, ou sobre o Estado. Será que as mídias se equivocam na maneira de informar o feminicídio, a justiça na maneira de aplicar a lei, de fazer ou não fazer justiça?

Perguntas todas legítimas, mas acrescento de minha parte uma dúvida e um espanto. Pergunto-me: por que pouco se indaga sobre a razão dos homens realizarem atos de violência? E por que pouco se pergunta sobre o que fazer para prevenir que não mais cometam violência?

Para poder responder a essas perguntas – que me fazem – e a pergunta – que me faço –, vou me utilizar de dados de pesquisa da Segurança do Distrito Federal sobre feminicídios, e analisar e refletir sobre eles neste texto. Apoio-me, ao mesmo tempo, nas reflexões que venho compondo a partir das pesquisas que tenho feito sobre delegacia especializada de atendimento às mulheres e sobre juizados especializados em violência doméstica contra mulheres no Distrito Federal, onde escutei tanto profissionais quanto mulheres que denunciavam. Não me referirei a essas pesquisas, mas é preciso dizer que é lá que minhas reflexões estão assentadas.

Passo a analisar os resultados recentes dos dados sobre feminicídios ocorridos desde a promulgação da Lei n.º 13.104, de 9 de março de 2015, de inclusão da qualificadora do “Feminicídio”, no Distrito Federal. Conforme consta no Relatório de Monitoramento dos Feminicídios no Distrito Federal realizado pela Câmara Técnica do Monitoramento de Homicídios e Feminicídios da Segurança Pública do Distrito Federal, “até o dia 31 de dezembro de 2022, 185 (cento e oitenta e cinco) casos foram registrados como feminicídio consumado, sendo que 5 (cinco) casos de homicídio receberam a qualificadora do feminicídio na fase processual”. Na ampla maioria, a qualificadora foi a de feminicídio dentro das relações familiares, domésticas e afetivo-sexuais. Um caso de feminicídio foi de menosprezo da mulher em relação entre desconhecidos. Quem são estes homens autores? Quem são estas mulheres vítimas? O relatório apresenta o perfil de 150 autores e de 153 vítimas.

Idade e cor/raça. Semelhança entre vítimas e autores

Há similaridade na distribuição por faixa etária entre autores e vítimas. A média de idade é exatamente a mesma: 37 anos. A única diferença notável é que entre as 153 vítimas consideradas, houve duas crianças, e nenhuma criança entre os correspondentes 150 autores. Enquanto crianças e adolescentes somente aparecem como vítimas (1%), jovens mulheres de 18 a 29 anos aparecem como vítimas em torno de 29% dos casos, e jovens homens de 18 a 29 anos aparecem como autores em 28% dos casos. Entre 30 a 39 anos, as mulheres vítimas representam 28% dos casos e os homens autores em 32% dos casos. Entre 40 a 49 anos, são 26% dos casos os que representam as mulheres vítimas. Entre os homens autores, esta faixa etária entre 40 e 49 anos representa 27%. A faixa etária de 50 anos ou mais representa 15% entre as mulheres vítimas e 13% entre os autores.

Os perfis de vítimas e autores também pouco se distanciam em relação à cor/raça. A cor/raça parda das vítimas representa 65% de todas as vítimas e a cor/raça parda dos autores representa 67% entre todos os autores. A cor/raça branca representa 24% das vítimas e a cor/raça branca representa 19% dos autores. A cor/raça preta representa 11% das vítimas e a cor/raça preta representa 15% dos autores.

A similaridade entre a distribuição por faixa etária e de raça/cor entre autores e vítimas reforça o que se tem dito sobre a incidência do feminicídio. Trata-se de crime que envolve pessoas dentro da mesma rede de relações domésticas e familiares permeadas por afetividade e proximidade, onde parceiros afetivos/sexuais ou familiares perpetram atos fatais de violência contra mulheres geralmente antecedidos por atos de violência crônica e cotidiana. A tendência social majoritária é da identidade de cor/raça entre familiares e cônjuges. Daí a cor/raça de autor e vítima coincidirem na maior parte dos casos perpetrados e registrados.

Escolaridade e Ocupação. Diferença entre vítimas e autores

Os perfis das vítimas e autores se diferenciam especialmente quanto à ocupação/profissão e quanto à escolaridade. A escolaridade é mais alta entre as vítimas (1% pós-graduação; 20% superior, 35% médio; 33% fundamental, 3% sem instrução) do que entre os autores (13% superior, 38% médio; 40% fundamental, 1% ensino técnico e 3% sem instrução). Note-se, no entanto, que o ensino fundamental alcançou a todos e todas, com exceção de 3% sem instrução. Quanto à ocupação/profissão, há mais homens com maior independência econômica que entre as vítimas. Contudo, há mais vítimas com independência econômica do que se supõe.

Entre as vítimas, 27% são trabalhadoras do lar, atividade que representa o lugar tão vulnerável de dependência financeira da mulher em relação ao marido. Também vulneráveis financeiramente em relação aos companheiros são as desempregadas que representam 6% entre as vítimas, e as estudantes, que representam 9%. No seu todo, as mais dependentes financeiramente somam 42%. Os dados demonstram, contudo, que, em princípio, são muitas as vítimas de violência fatal que não são dependentes economicamente do marido ou menos dependentes, como as assalariadas (31%), autônomas/profissionais liberais (18%), funcionárias públicas (3%) e aposentadas/pensionistas (3%). Juntas representam parte importante entre as vítimas: chegam a 55% delas.

Quanto à ocupação/profissão dos autores, os assalariados representam 39%, os autônomos/profissionais liberais 30%, os funcionários públicos 7% e os aposentados/pensionistas 3%. No total, aqueles que em princípio têm independência financeira em relação à parceira chegam a 79%. Nota-se que os desempregados chegam a um maior número entre os autores (17%) do que as desempregadas em relação ao total de vítimas (6%). E o percentual de 1% de estudantes pode se acrescentar aos desempregados. Para se pensar o total de autores com maior precariedade financeira (18%), acrescentamos o percentual de 1% de autores estudantes.

A vergonha e o medo das mulheres e o poder dos homens

Uma primeira reflexão que se pode fazer, a partir dos dados apresentados, é que o senso comum sobre a percepção da vítima como sempre dependente economicamente – e a dependência econômica como a grande razão de muitas mulheres não denunciarem – deve ser repensada. Mais da metade das mulheres vitimadas não está em situação exclusiva de dependência econômica.

Uma segunda reflexão que se pode fazer é sobre o equívoco da atribuição suposta de baixo ou inexistente nível de educação escolar entre autores e vítimas, também suposto como uma das razões ou características da ocorrência de crime. Com exceção de 3% de pessoas sem instrução entre autores e vítimas, os demais alcançaram pelo menos o ensino fundamental. Os dados apresentados tornam mais do que legítima a reivindicação para que o sistema escolar venha a ser capaz de oferecer um ensino que enfrente a naturalização da violência contra a mulher e que promova a igualdade entre homens e mulheres. Autores e vítimas com a idade de mais de 18 anos passaram pelo sistema escolar sem que este, pelo menos para eles, tivesse tido efeito para a inscrição da igualdade entre homens e mulheres.

É também necessário repensar como, em geral, o sistema de justiça e a imprensa devem rever a divulgação do “ideal de vítima”, baseado no senso comum da inferioridade educacional de autores e vítimas e da vulnerabilidade econômica das vítimas mulheres como “a única razão” pela qual as mulheres não denunciam. É igualmente também necessário repensar uma das suposições dominantes no senso comum: de que seriam os desempregados aqueles mais capazes de violência extrema, pela situação de inferioridade em relação aos valores de longa duração da sociedade que exigem dos homens serem os provedores.

Pensemos, a partir dos dados apresentados, as motivações dos autores para a violência que poderiam e podem ser atribuídas ao fato de estarem desempregados ou empregados. Para os 17% de autores desempregados é possível pensar que o desemprego poderia e pode ser um “gatilho” para o exercício da violência metaforizando o desejo de não se sentir inferiorizado diante da mulher e da sociedade. De outro lado, a função econômica mais estável de funcionário público ou de assalariado não impede o exercício da violência extrema contra a mulher, como mostram os 39% de assalariados e os 7% de funcionários públicos entre os autores.

Entre os funcionários públicos, há 4 policiais militares, um policial civil, um militar e 5 outras carreiras de servidores públicos. Estes dados mostram que estar empregado e ser estável não retira motivações de agressões entre os autores. A posição de poder publicamente reconhecido como a de policial também pode funcionar como “gatilho”. Respondem com mais violência para reafirmarem o lugar de seu duplo poder: como autoridade pública e como poder masculino sobre a mulher.

No meu entender, vergonha e medo são as principais razões pelas quais as mulheres não denunciam ou resistem muito a denunciar ao sistema policial e a recorrer à justiça, assim como muitas vezes sequer solicitam apoio e proteção a amigos e familiares.
A vergonha e o medo das mulheres advêm do sistema de longa duração do valor da honra familiar e da honra masculina que constituíram uma forte hierarquia de poder de gênero atribuído ao masculino e, em especial, ao patriarca masculino de toda uma rede familiar.

A violência que hoje é crime de homens contra mulheres foi a base legítima e legal fundamentada não somente em crenças e narrativas da memória oral, ou nas práticas sociais, mas inscrita em códigos legais. Daí podemos derivar que as emoções desencadeadas pelos homens ao exercerem o bater/castigar as mulheres, aliadas ao temor da desonra e à expressão da raiva agressiva contra as mulheres – por não conseguirem controlá-las ou delas ter eterna posse –, acontecem junto com o temor e medo das mulheres e com o seu sentimento de culpa ou vergonha. Foram construídos reciprocamente pela legitimação do poder de gênero instaurado anterior e legalmente: o controle dos homens sobre as mulheres, e a recíproca e simultânea culpabilização das mulheres. Cabia e cabe às mulheres, segundo o senso comum, manter a “harmonia familiar”. Seria dela a “culpa” e a “vergonha” de estar em relações violentas, de o casal estar em conflito, ou de estar e manter uma família “desestruturada” e “violenta”.

A repetição de ameaças, atos e tentativas de agressão podem levar a mulher a se ver sem saída. “Fugir” ou permanecer imóvel parece a melhor possibilidade, pois confiar em alguém que possa de fato querer e conseguir enfrentar o agressor parece difícil e perigoso. A violência contra as mulheres, que antecede ou não o feminicídio, está sempre a apontar para um perigo iminente.

No meu entender, são a vergonha e o medo que dificultam as mulheres ameaçadas de denunciarem ou sequer contarem para seus familiares. Familiares do companheiro, por sua vez, passam a fazer parte das pessoas de quem se tem medo, pois veem o que acontece, mas tendem a defender os agressores e culpabilizar as companheiras de seus familiares.

Não é fácil o caminho em direção aos novos valores da autonomia das mulheres em construírem suas autoimagens positivas. Este é o caminho que vem sendo traçado por muitas mulheres. A denúncia da violência é um destes novos caminhos. Mas se a vergonha pode vir a esmaecer e perder seu efeito, a mulher começará a pedir apoio nas suas redes familiares, de amizade e de vizinhança; o medo, no entanto, é real, e pode continuar ensurdecedor e paralisador.

Assim, se a sociedade e o sistema de justiça esperam que as mulheres trilhem o caminho da denúncia para chegarem a uma vida sem violência, é necessário que maior segurança seja oferecida às mulheres que denunciam. Que as medidas protetivas sejam dadas, que os parceiros sejam afastados do lar quando há perigo, que os botões de pânico sejam distribuídos e as tornozeleiras sejam colocadas sempre que necessário. Que as medidas protetivas não estejam somente no papel.

Que as mulheres sejam estimuladas e encaminhadas para grupos psicossociais, e que fundamentalmente os homens autores sejam encaminhados obrigatoriamente a grupos reflexivos psicossociais educativos. Se lá forem obrigados a estarem presentes, uma trégua na violência será possível. Sem este encaminhamento dos autores de violência a grupos reflexivos pelos juizados de violência doméstica contra as mulheres, estaremos retirando da Lei Maria da Penha seu caráter preventivo: o de se antecipar aos feminicídios.

É urgente que a Lei Maria da Penha, como lei que pode prevenir o feminicídio, seja bem aplicada, com íntima inter-relação entre o judiciário e os executivos responsáveis pelo acolhimento e proteção das mulheres e pelo encaminhamento dos homens a grupos reflexivos psicossociais. E que haja solidariedade, entendimento e apoio pelas redes familiares, de amizade, de vizinhança, de conhecidos a anônimos. E que o sistema escolar passe a ser capaz de inserir e defender o princípio e valor da igualdade entre homens e mulheres, e capaz de ensinar como enfrentar a cultura da violência machista.

Por Lia Zanotta Machado, em parceria com a BVPS
Fonte: Outras Palavras.

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