Correio da Cidadania

Políticas compensatórias não substituem a dignidade do emprego remunerado

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Fotos: Roberto Suguino/Agência Senado

Por cinquenta anos, da década de 1930 até início da de 1980, o PIB nacional cresceu em média 6,5% ao ano. Algumas características desse tempo podem ser citadas exemplificativamente: maior número de bancos autorizados a funcionar no território nacional; crédito mais barato; juros baixos; inexistência de índices oficiais de correção monetária; crescimento da indústria e comércio; educação pública primária e profissionalizante de qualidade; segurança pública em razoável funcionalidade; desemprego praticamente inexistente, tanto que ainda era possível punir a contravenção da vadiagem.

Já os primeiros anos da implantação no neoliberalismo econômico, de 1995 a 2010, o PIB do país cresceu cerca de 2% em média ao ano e, agora, na última década, zero mesmo.

Como a população do país, no período, cresceu em média 1% ao ano, logo se vê que o crescimento econômico nacional não apresentou a menor condição de suportar as necessidades básicas da população.

Embora notoriamente nocivo aos interesses do país, esse modelo econômico manteve-se em todos os governos a partir de 1995, independentemente das diferenças ideológicas propaladas por cada um deles e de seus partidos políticos.
Estranho, mas compreensível.

É que quem manda são os maiores bancos internacionais, alimentadores das oligarquias investidoras do mercado global, interessadas em manter os países subdesenvolvidos e emergentes onde sempre estiveram, na eterna posição de escravizados.

É evidente que alguns países emergentes escaparam dessa armadilha e hoje estão participando das deliberações relativas ao destino da geopolítica do planeta, como os gigantes asiáticos. Não quiseram se submeter ao FMI e à cartilha ditada pelo famoso Consenso de Washington, de 1989.

Não custa fazer um resumo dessa cartilha lastimavelmente aceita pelo Brasil. Mas é preciso chamar a atenção do observador para o fato de que tais recomendações, embora bem-intencionadas na aparência, escondem na verdade armadilhas nada civilizadas e muito menos éticas.

A primeira recomendação diz respeito à disciplina fiscal, com censura aos grandes déficits fiscais em relação ao PIB. A premissa é elogiável, mas a conclusão é censurável. É que essa cartilha manda excluir do controle fiscal o pagamento de juros bancários e serviço da dívida correspondente. Justamente por essa razão, incluiu-se a regra na Lei de Responsabilidade Fiscal brasileira. Com isso, 50% do orçamento público nacional é destinado aos banqueiros.

A segunda recomendação seria o reordenamento das prioridades dos gastos públicos. O discurso também aí é convincente. O Estado deveria gastar mais com o crescimento da economia e com os pobres, destinando prioritariamente seus recursos com o investimento em infraestrutura. Bonito discurso, não? Todavia, dita infraestrutura, em sua definição, seria constituída de usinas hidrelétricas, estradas, pontes e alterações de cursos fluviais, não em benefício da população, mas para favorecer a mineração e o mega-agronegócio. Água, luz elétrica, transporte coletivo e saneamento básico sempre ficam para depois.

A terceira seria a reforma tributária, para a redução da carga de impostos. No núcleo dessa filosofia, contudo, está a teoria do Estado-mínimo, visto que, com uma arrecadação cada vez menor, natural que o Estado também fique cada vez menor.

A quarta defende a livre definição das taxas de juros pelo mercado. Ocorre, entretanto, que quanto menor o Estado mais dependerá ele do socorro dos bancos que, assim, poderão lhe cobrar os juros que quiserem.

A quinta defende o mesmo para as taxas de câmbio. Sem margem para interferir nas taxas de juros e câmbio, o Estado se torna refém dos invariáveis “donos do mundo”, pois acaba por perder importante instrumento de política monetária.

A sexta propõe o livre comércio, com liberação das importações, e sem protecionismos. A sétima sugere a liberalização do investimento estrangeiro e a oitava a privatização de todas as empresas estatais. Estas três últimas estão visivelmente imbricadas, pois têm o objetivo de manter o domínio das nações mais ricas sobre as mais pobres. Ocorre que, na economia de escala e de competição, os pobres sempre perdem para os ricos.

Necessário observar, em relação à recomendação de privatizar as estatais, que algumas das atividades econômicas relevantes para a população só passaram a ser exploradas pelo Estado por ausência de empresários que se submetessem aos riscos naturais dos negócios, de modo que chega a ser então imoral defender a privatização sem critério após eliminados os riscos e só depois de tais atividades passarem a ser lucrativas.

Não se pode esquecer que empresas estatais foram construídas com a arrecadação de tributos incidentes sobre o sacrifício popular. Cuida-se de patrimônio público. Se são lucrativas, devem continuar distribuindo dividendos ao povo e não um pequeno grupo de oligarcas.

A desregulamentação da economia, que seria a nona recomendação, tinha a finalidade de colocar uma pá de cal sobre qualquer tentativa de intervenção estatal na atividade econômica.

Na realidade, contudo, é mais um instrumento de manutenção do status quo, até com um retrocesso civilizatório, pois os conflitos voltam a ser resolvidos pela força e não mais pela ética, num salve-se quem puder.

Por fim, a décima recomendação da indigitada cartilha propagava a necessidade de proteção de direitos autorais. Mas a verdadeira intenção nunca foi a preservação do artista, do compositor, do inventor, do pesquisador científico, do autor da obra literária. É que, como se sabe, sem a rara transferência tecnológica, a partir do livre comércio, os países emergentes não conseguem acesso ao conhecimento destinado à produção de bens e serviços de maior valor no mercado mundial. E é assim que as coisas devem ficar. Aí está o oculto objetivo.

Evidente que o poder econômico, livre de qualquer controle do Estado (cada vez mais mínimo), produz um regime selvagem nas relações humanas. E é certo que não sobreviveria sem severas críticas da sociedade civil, mesmo seriamente comprometida com a destruição do ensino público, da segurança pública, saúde e saneamento básico.

Organismos sociais fragmentados, mas bem-organizados, como os sindicatos e movimentos populares de sem-teto e sem-terra é que produziram os mais fortes e eficazes protestos contra esse modelo econômico fadado ao insucesso, se considerada a longa recessão que vem causando.

Todavia, por puro interesse material, teimosia ou vaidade, os defensores dessa desastrosa fórmula de política econômica não reconheceram o erro, numa indicação de que não se cuidou de equívoco involuntário, mas proposital.

Preferiram mutilar os sindicatos com a aniquilação de movimentos grevistas, e o fizeram da pior maneira possível. Suprimiram direitos trabalhistas estabelecidos em convenções internacionais e criaram a humilhante fila do desemprego.

Deu no que deu e a fome generalizada chegou. Milhões de velhos e jovens desempregados. Milhões de crianças sem alimentação suficiente e grande número delas nas ruas, ao desabrigo.

Nada que essa libertinagem econômica dos bilionários não pudesse resolver, sobretudo quando o Estado já está muito mínimo. Os devotados economistas da citada teoria, então, invocaram a primeira recomendação daquela reunião de Washington para daí defenderem o reordenamento das prioridades dos gastos públicos. A nova ordem passou a ser a implementação das indispensáveis políticas compensatórias, através do assistencialismo da bolsa-família e outros cala-bocas da espécie.

Acontece que nenhum benefício assistencial substitui a ocupação profissional dignamente remunerada.

Segundo Aristóteles, aliás, quase todos os seres humanos contentam-se em sobreviver repetindo o que os outros sempre fizeram ou fazem, desde que não comprometida a sua dignidade.

O que deseja qualquer ser humano é ser considerado por outro ou por todos os outros da espécie como um indivíduo igual. Sem esse sentimento de igualdade, ninguém consegue alcançar sua própria dignidade.

Precisa o ser humano reconhecer-se existente em sua individualidade e útil em sua comunidade. Não é por outra razão que procura proteger incessantemente sua reputação, como fonte de energia vital. E para a aferição de sua função social, utilidade e importância frente à coletividade, observa permanentemente a forma com que costuma ser por ela tratado.

Espera a inteligência média que, para a manutenção da dignidade humana, a sociedade deve atribuir a cada um e a todos os seus integrantes o mesmo grau de oportunidades, ônus e benefícios.

Trocando em miúdos, nenhum ser humano quer se sentir invisível. E a indiferença da sociedade sempre acarretou e continuará a acarretar a inevitável revolta dos desprezados.

Não é sem motivo que, com o crescimento do desemprego na região metropolitana de São Paulo, que chegou a 20% em 1997 e 1998, tornou-se visível a expansão do tráfico de armas e drogas e o fortalecimento das organizações criminosas, com a chamada violência de rua descambando para a barbárie. E as coisas tendem a piorar se a sociedade não proclamar como prioridade de suas prioridades a instituição de políticas públicas e sociais criadoras do denominado pleno emprego, sobretudo para os mais jovens, em fase de formação de consciência política e naturalmente na justa busca de perspectivas de vida.

A propósito, a Europa inteira vem constatando que seus jovens desempregados, desprezados e invisíveis, em grande número, estão partindo na atualidade para seitas radicais propagadoras do terrorismo. E esse dano irreparável poderia ser evitado.

O certo é que não podem os governantes continuar com o discurso de que o emprego do cidadão é uma concessão generosa do mercado, pois é do Estado, sob pena de não justificar sua existência, o dever de garantir ao seu constituinte a cidadania, a dignidade e os valores sociais do trabalho (CF, art.1º, II, III e IV). E o indivíduo não terá cidadania e dignidade senão através da prestação de trabalho útil à sociedade devidamente remunerado.

Não custa acrescentar que é do Estado democrático de direito a obrigação de garantir ao cidadão a vida, a liberdade e a igualdade (CF, art.5º). E o cidadão não terá como sobreviver sem uma ocupação remunerada. Não terá liberdade sem o mínimo de independência econômico-financeira. E não terá a igualdade a que se referiu anteriormente, pois ela jamais existirá para um ser humano vítima do desprezo social.

Já passou da hora, portanto, de o governo brasileiro abandonar a vigente política econômica e, sem mais demora, cumprir o seu dever constitucional de recolocar o Estado no tamanho das necessidades populares, assegurando a tão procurada oportunidade de trabalho a todos os cidadãos.

Airton Florntino de Barros é advogado e professor de direito empresarial. Fundador e ex-presidente do Movimento pelo Ministério Público Democrático.

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