Governo Lula tenta criar uma nova ordem republicana em meio a 10 anos de instabilidades
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- Gabriel Brito, da Redação
- 13/04/2023
Marcelo Castañeda / Arquivo Pessoal
O terceiro mandato de Lula completou 100 dias. Se de um lado há uma evidente reorganização de políticas públicas essenciais e respeito à institucionalidade, algo desprezado diuturnamente pela gestão Bolsonaro e a malta de escroques e incompetentes que ocupou os ministérios, de outro lado há o cerco dos detratores históricos, pra não falar da tentativa de golpe de Estado que marcou a primeira semana de governo. Em suma: o arranjo político estabilizador se tornou mais complexo do que nos mandatos anteriores e é à luz desta compreensão que o sociólogo Marcelo Castañeda, em entrevista ao Correio, analisa o contexto político atual.
“Para 100 dias oficiais, muita coisa está sendo encaminhada, algumas medidas ainda dependem do Congresso, mas existe um sentido de ação para superar as ruínas em que estávamos, sem qualquer perspectiva de melhoria, só o ultraliberalismo de Guedes, o cada um por si. Retomar políticas públicas nesse cenário não é fácil, sequer sabemos as possibilidades concretas ao longo do tempo”, explicou.
Dentro do campo crítico progressista, conciliação é uma palavra chave para entender os governos anteriores do PT. No entanto, como defende Castañeda, na entrevista, as margens se comprimiram, tanto pela ascensão de uma direita fascista como pelo cerco neoliberal, ao passo que as demandas sociais se dramatizaram com a destruição geral das políticas sociais e econômicas que deram sustentação ao período 2003-2010.
“É um movimento difícil do governo Lula: ter um posicionamento e não polarizar, isso talvez explique porque talvez a área mais criticada do governo seja a comunicação, ainda mais quando, nos tempos das redes, a comunicação é um eixo organizativo das estruturas, sejam de governo ou não. Neste sentido, não há simetria entre a radicalização bolsonarista e a nova ordem que está sendo gestada pelo novo governo Lula”.
Como lembra o também professor da UFRJ, no meio de tudo há um trauma nas esquerdas em relação às manifestações de 2013, cujas reivindicações relativas a bem estar social acabaram posteriormente – importante ressaltar – capturadas pelos setores reacionários. Ou seja, será necessária muita habilidade, tanto da equipe de governo como de seus apoiadores, para saber reivindicar e avançar com uma agenda que faça a barbárie recuar. O debate econômico, onde o fanatismo ideológico dos mercados segue a diminuir os horizontes democráticos, é um grande exemplo do momento.
“Esse novo arcabouço fiscal foi produzido de forma rápida no sentido de acalmar os agentes econômicos, que geralmente são apelidados de mercado. Neste início de governo reflete o alinhamento ao chamado neoliberalismo progressista, o terreno do possível em termos do imaginário político que a esquerda institucional consegue no mundo atual, não só no Brasil”.
Como ressaltado, o cenário é outro, inclusive na economia global, do qual nossa inserção subordinada é tão dependente. Por isso, apenas torcer por bons resultados que aumentem a margem de manobra do governo para aplicar a agenda social que venceu as eleições é um grande risco. Apesar da radicalização das direitas, retomar as lutas sociais, como já anuncia o MST e sua agenda de abril, parece um destino inevitável se queremos, de fato, respirar novos ares e superar os limites impostos nos anos Temer-Bolsonaro.
“O fiel da balança se dará por meio dos movimentos sociais e pela sociedade civil que conseguirem se articular num cenário em que todos se mobilizaram para eleger Lula. Logo, nesse momento inicial, vejo que o movimento pela revogação do ensino médio é o primeiro de muitos que poderão se organizar contra a nova ordem que se configura, sendo que as margens para a mudança podem ser tão estreitas quanto nesse caso. Veremos".
Confira a entrevista completa com Marcelo Castañeda a seguir.
Correio da Cidadania: Como avaliar esses primeiros 100 dias de governo Lula? O que este período reproduziu das ditas polarizações da sociedade brasileira?
Marcelo Castañeda: A minha avaliação geral em relação ao governo é boa. A opinião pública aferida em pesquisas também avalia positivamente. O primeiro sentimento que me vem à mente antes de fazer qualquer avaliação é um alívio nesse começo de governo Lula, ou Lula 3 como muito se fala na mídia corporativa. Isso se torna compreensível pelos momentos infernais que vivemos desde que o governo Dilma Rousseff foi golpeado, com Michel Temer a tomar o governo, intensificados nos quatro anos de Bolsonaro no poder. Acredito que muitos dos que lerem essa entrevista se identificam com esse alívio, mesmo considerando que a sociedade brasileira se apresenta muito dividida, como pode ser visto pelo resultado eleitoral. Agora, apesar do que aconteceu no dia 8 de janeiro, uma tentativa de golpe, episódio gravíssimo ainda apurado, podemos dizer que uma nova ordem, no sentido republicano, vem sendo configurada de forma até bem rápida. Se isso parece bom de início, pode apresentar seus problemas e oportunidades, como falarei mais adiante nesta entrevista, em especial ao considerarmos um panorama global para o campo da esquerda.
Assim, mais do que elencar todas as ações de reconstrução e recuperação de programas e políticas públicas necessárias, de ações dos ministros ou do reposicionamento do Brasil frente ao mundo, que um filósofo como Paulo Arantes destacou recentemente na Ilustríssima da Folha de São Paulo como “redução de danos” (de uma forma necessária e importante na visão dele – e na minha também), o que quero destacar como principal eixo de uma avaliação inicial é essa tentativa de configurar uma nova ordem, considerando que a noção de ordem talvez tenha se perdido, no Brasil, desde junho de 2013 no âmbito da governabilidade nacional. Foram tempos instáveis desde então.
Com isso, não me alinho aos que impõem uma relação de causalidade direta entre as manifestações de junho de 2013, que completam 10 anos em 2023, se mantendo como uma esfinge que emana as mais diversas controvérsias, e o golpe que depôs o governo Dilma Rousseff ou mesmo a ascensão de Jair Bolsonaro e da extrema direita ao governo em 2018. Evidentemente, por ser um acontecimento que marcou a cena política brasileira contemporânea, existe uma tendência simplificadora de atribuir uma relação de causa e consequência entre o que veio antes (junho de 2013) e o que veio depois, desprezando as mediações e as complexidades inerentes aos processos sociais, suas estruturas e atores, mas isso deve ser apenas um parêntese aqui.
Não posso deixar de destacar, neste início de governo, que é fundamental que políticas públicas sejam retomadas e os ministérios desempenhem seu papel frente à sociedade. Isso vem acontecendo. Importante reconhecer que é como se estivessem atuando em uma terra arrasada. Esse ponto deve aparecer em qualquer avaliação que se faça. É como se um processo destrutivo estivesse sendo superado a partir da vitória eleitoral. Logo, para 100 dias oficiais, muita coisa está sendo encaminhada, algumas medidas ainda dependem do Congresso, mas existe um sentido de ação para superar as ruínas em que estávamos, sem qualquer perspectiva de melhoria, só o ultraliberalismo de Guedes, o cada um por si. Retomar políticas públicas nesse cenário não é fácil, sequer sabemos as possibilidades concretas ao longo do tempo. É esse esforço inicial que estou valorizando, sem ter de destacar uma série de medidas aqui, até para não ser injusto.
A questão, volto ao ponto, é se conseguiremos configurar alguma ordem, em especial se o governo tiver em mente a governabilidade petista que se tinha até junho de 2013, e quais consequências surgirão pelo fato de que o governo Lula busca estabelecer essa ordem, mesmo em formato de frente ampla, ou principalmente por isso, encabeçada por um partido de esquerda. O que me parece é que o fundo do poço foi sendo cavado mais e mais após junho de 2013, em especial com Temer e Bolsonaro, e agora tenta-se uma forma de governabilidade nos moldes do que tínhamos antes de 2013, porém, alguns níveis mais abaixo do poço político que, no fundo, não tem fundo, pode ser cavado mais e mais.
É bom destacar que a ordem anterior a junho de 2013 foi uma das causas das manifestações de pessoas que carregavam cartazes que saíram das redes sociais que começavam a se mostrar em um mundo cada vez mais hiperconectado. O aumento de tarifas de ônibus em várias partes do país deflagrou manifestações, que posteriormente foram incensadas pela mídia corporativa, constituindo manifestações de multidão que, entre outras coisas menos louváveis e contraditórias, traziam como elemento importante, e atualmente esquecido, uma tal crise da representação política, que não foi resolvida pela ordem de então e, a meu ver, continua de forma até mais intensa e está no cerne de muitos fenômenos, inclusive a ascensão da extrema direita e da figura de Bolsonaro como presidente.
Percebo, assim, que existem mais questões em aberto do que fechadas neste início de governo Lula 3. Mas se adoto a nomenclatura da mídia corporativa aqui, quero me diferenciar dela e de muitos analistas políticos que têm suas vozes propagadas no sentido de comparar os governos, em especial com o período em que Bolsonaro ficou no poder. Não há base de comparação de Lula com Bolsonaro. Acho, inclusive, que o governo Lula deve se estabelecer num novo patamar, um novo tempo, buscando união e reconstrução num patamar republicano, como o slogan do governo diz, o que é difícil por si só num país dividido e dilapidado. Bolsonaro também é um fenômeno midiático e é compreensível que ele receba atenção e seja comparado a Lula nos takes midiáticos, mas defendo que não há base de comparação possível, fora os indicadores que são contínuos, como os econômicos e sociodemográficos, e mesmo assim com limites claros. Não há como comparar quem confunde a vacinação e quem a estimula, por exemplo. Mas o que mais aparece quando assisto ou leio a mídia corporativa é essa comparação feita de forma chapada, o que considero um erro. No entanto, é preciso que essa mídia mantenha uma audiência que está cada vez mais decadente, assim como seus contratos publicitários. De resto, essa comparação convém, pois mantém acesos os conflitos entre as duas principais forças políticas do momento.
Quanto às polarizações, o que observo é que o governo Lula tem um posicionamento contrário de forma explícita em relação ao seu oponente principal nas últimas eleições presidenciais. Esse posicionamento foi reforçado em diversos momentos no início de governo, até pela tentativa de golpe na primeira semana de governo. Agora, não vejo que esse posicionamento do governo Lula possa ser visto como inaugural ou estimulador de uma nova polarização com a extrema direita e com Bolsonaro, até pelo movimento de reclusão que este fez após a sua derrota eleitoral. Aliás, se a polarização é uma forma política inevitável na contemporaneidade, vide o que tínhamos entre PT e PSDB entre 1994 e 2014, considero um erro dizer que há uma polarização com a extrema direita. Acredito que as eleições de 2022 não tiveram a ver com uma polarização, mas com uma união de todo campo democrático contra o que não era democrático, numa eleição que refletiu o que a Wendy Brown define como “liberdade antidemocrática”, expressa nos clamores de liberdade de expressão daquilo que vai contra a democracia.
É um movimento difícil do governo Lula: ter um posicionamento e não polarizar, isso talvez explique porque talvez a área mais criticada do governo seja a comunicação, ainda mais quando, nos tempos das redes, a comunicação é um eixo organizativo das estruturas, sejam de governo ou não. Neste sentido, não há simetria entre a radicalização bolsonarista e a nova ordem que está sendo gestada pelo novo governo Lula.
Correio da Cidadania: O que pensa da estratégia do governo em relação ao Congresso e mais especificamente ao bolsonarismo?
Marcelo Castañeda: Do que se pode apreender nesse início de governo, Lula procura montar uma base no Congresso que possa aprovar suas medidas, sendo que a métrica fundamental são os 2/3 capazes de aprovar uma PEC. Neste sentido, está caminhando para atingir esse patamar, tendo que compor a partir dos ministérios, dos cargos de segundo e terceiro escalão e das emendas parlamentares. Interessante para compor essa nova ordem que se configura é perceber como o comando das casas legislativas se manteve com os presidentes do Senado e da Câmara que finalizaram o governo Bolsonaro, e foram eleitos com apoio dele, sendo que, na Câmara, Arthur Lira obteve uma vitória avassaladora com apoio de Lula e do PT. No Senado, houve uma disputa mais clara com o bolsonarismo, mas com a vitória de Rodrigo Pacheco.
Em termos estratégicos, é compreensível o movimento do governo em relação ao Congresso, que pode ser lido de forma pragmática. Na Câmara não queria correr o risco de repetir a estratégia fracassada de 2015, que levou à vitória de Eduardo Cunha e a seguir ao processo de impeachment. Logo, preferiu compor com Lira do que promover uma candidatura própria. No Senado, se posicionou contra o bolsonarismo, o que soa óbvio. Tudo para configurar essa nova ordem, como afirmei na resposta anterior.
Quanto ao bolsonarismo, para além da batalha nas redes, em que o controle não passa pelo governo – mas pelos modos de organização nesta sociedade “enredada” pelas corporações de tecnologia, ainda que o governo tenha uma influência neste processo (que não está sendo suficientemente exercida) – vejo que este atua principalmente a partir do ministro da Justiça, Flávio Dino, no sentido de criminalizar o bolsonarismo, num movimento justificado a partir dos atos do dia 8 de janeiro, que podem ser lidos como uma tentativa de golpe. Por conta da ação firme do ministro da Justiça e da articulação que Lula conseguiu entre os representantes das instituições e dos governadores no dia seguinte, tal golpe foi estancado.
A partir daí, se buscou também uma responsabilização de Bolsonaro, como líder intelectual dos atos, o que ainda está em desdobramento, entre várias acusações possíveis em que esse possa ser envolvido. E parece que Bolsonaro caminha mais para a inelegibilidade do que para a prisão. O que isso fará com sua base de apoiadores pode caminhar por novas investidas contundentes como a do dia 8 de janeiro ou, de outra forma, para uma diluição no tecido social, o que pode provocar sintomas mórbidos de médio a longo prazo a serem sentidos no cotidiano. No plano institucional, caso a inelegibilidade se confirme, tentará emplacar um sucessor, passando o bastão. Creio que, infelizmente, sentiremos os efeitos do bolsonarismo por muito tempo ainda sem saber precisar, neste momento, as formas que tais efeitos assumirão.
Correio da Cidadania: A volta de Bolsonaro ao Brasil representa uma ameaça? Como enxerga a atual posição do capitão e dos militares no atual contexto?
Marcelo Castañeda: Acredito que Bolsonaro e ameaça são uma espécie de pleonasmo. Sempre serão. Mas, neste momento, de configuração de uma nova ordem no sentido que explanei antes, vejo que Bolsonaro se fragilizou muito e suas chances de se posicionar como líder da oposição passam sobretudo pelo ambiente econômico. Se a economia deslanchar, Bolsonaro irá se encolher. Em caso contrário, ele pode crescer, como, aliás, é o movimento da extrema direita no mundo: cresce onde as condições de vida pioram, ainda mais na ausência de soluções à esquerda na institucionalidade, na medida em que estão conformados com o que podemos chamar de “neoliberalismo progressista”.
Logo, a posição do capitão é essa. Quanto aos militares, Lula parece que não vai enfrentar esse problema, que está na constituição da república em si. Sequer temos notícia sobre os mais de 6 mil cargos que os militares ocupavam no governo no período Bolsonaro. Eles saíram? Isso ficou totalmente encoberto pela radicalização bolsonarista do dia 8 de janeiro, como se fosse um problema menor.
Ao designar José Múcio como ministro da Defesa, o sinal de Lula foi de compor com os militares em prol da configuração de uma nova ordem, em que os militares não sairiam perdendo. Voltamos ao jogo de que todos podem ganhar, ao menos essa é a intenção que fica evidente. Os militares continuam com suas benesses, com menos poder do que sob Bolsonaro, um governo que patrocinaram e organizaram.
Correio da Cidadania: Como vê os embates econômicos? De um lado, conseguiu-se superar a barreira do teto de gastos sociais, mecanismo de engessamento do Estado como indutor de política pública mesmo em cenário favorável. Agora, o chamado novo arcabouço fiscal permite pisos mínimos de investimentos públicos, no entanto, se compararmos com as taxas de investimento dos primeiros mandatos de Lula vemos que tal margem chega no máximo à metade do período anterior, em torno de 5% de crescimento anual. Temos aqui uma boa ilustração de como o governo terá margens menores de manobra em relação aos primeiros mandatos de Lula, nesta e todas as demais áreas de atuação?
Marcelo Castañeda: Acho que a pergunta já explica que a austeridade continua se manifestando sob outra roupagem, até porque Bolsonaro bagunçou até o teto de gastos. O movimento do governo Lula explicita que é preciso gestar uma nova ordem. Lembro que, durante a campanha, Lula só falava em revogar o teto de gastos. O compromisso com uma nova âncora fiscal surgiu enquanto se tentava aprovar a PEC da Transição. Esse novo arcabouço fiscal foi produzido de forma rápida no sentido de acalmar os agentes econômicos, que geralmente são apelidados de mercado. Neste início de governo reflete o alinhamento ao chamado neoliberalismo progressista, o terreno do possível em termos do imaginário político que a esquerda institucional consegue no mundo atual, não só no Brasil.
Quanto às margens, sim, elas diminuem, e isso significa que a disputa por recursos tende a se acirrar, sendo que o ministro da Fazenda vai ter mais uma tesoura nas mãos, a não ser que a arrecadação aumente muito. Por isso, Haddad foca no aumento de arrecadação em alguns movimentos que façam esse novo arcabouço fiscal vingar e gerar ao menos as margens prometidas, ainda que essas sejam menores que em Lula 2 e Lula 1, que tinha uma outra realidade nacional e global, como é importante ressaltar.
Entre 2003 e 2010 o ambiente era muito favorável e a regra mais solta. Agora, com pandemia, quebra na cadeia de suprimentos, guerra da Ucrânia, radicalização bolsonarista, autonomia do Banco Central e as taxas de juros nas alturas sem uma perspectiva de queda significativa no curto prazo, o único bom presságio é que as commodities podem se valorizar novamente, o que para um país como o Brasil pode ser bom.
Correio da Cidadania: Mais especificamente sobre a economia, que importância você atribuiria a este campo na viabilização do governo?
Marcelo Castañeda: A economia, essa ciência nada exata, precifica os acontecimentos do mundo político e social, como se fosse autônoma, mas não é. A letra fria dos números e projeções é que nos trouxe para o abismo civilizatório atual. Algumas, como Wendy Brown, apontam que vivemos nas ruínas do neoliberalismo, o último grande consenso econômico. Nessas ruínas, assistimos à ascensão da extrema direita e da fascistização a nível global.
Infelizmente, a economia deixou de ser um meio para se tornar um fim, na maior parte das vezes em si mesmo. Neste cenário, pelas escolhas iniciais deste governo, inclusive pela elaboração a jato deste arcabouço fiscal, pode-se inferir que a economia, e as pressões dos agentes econômicos que constituem o que se chama de mercado (escondendo que são meia dúzia de banqueiros, bancos de investimento e corretoras de valores), dará as cartas mais uma vez, reforçando o slogan “É a economia, estúpido”.
A escolha de Haddad, que pode ser tido como sucessor de Lula, para o cargo de ministro da Fazenda diz muito sobre isso no terreno da política: se a economia for para a frente, o governo irá bem e anulará as possibilidades da extrema direita no Brasil com Bolsonaro. Esse é o cálculo de Lula. Se isso vai acontecer, não se sabe. Creio que não dependerá apenas de Haddad, de Lula ou de governo, pois não há controle sobre todas as variáveis. Sinceramente, neste momento, em termos institucionais, não vejo muita saída para este governo nesta seara.
Correio da Cidadania: A chamada conciliação, interpretação colocada pela esquerda para analisar seus governos anteriores, tem um teto neste governo? Em algum momento não deverá o governo partir para enfrentamentos mais contundentes?
Marcelo Castañeda: Desde o início, o governo atual já mostra que essa margem para contundência é muito baixa. Vejam o caso da reforma do Novo Ensino Médio, uma medida aprovada 20 dias depois do golpe contra Dilma Rousseff e que está suspensa pelo governo Lula enquanto respondo essa entrevista. Os movimentos que conseguiram se articular pedem a revogação. Lula e o ministro da Educação já disseram que não vai haver revogação, mas uma solução participacionista, que é mais um cala-boca de quem se movimenta hoje, como qualquer flanco participacionista que já tem uma solução pronta (no caso: “vamos remodelar, mas revogar não”, o que já restringe a participação aos interesses do governo e das fundações empresariais). Esse caso é emblemático da nova ordem que se configura: “vamos mudar, mas seguindo uma base já existente, em parte construída após o golpe que tanto denunciamos”. Ou o novo arcabouço fiscal não é uma alternativa ao teto de gastos, outra medida pós-golpe?
O fiel da balança se dará por meio dos movimentos sociais e pela sociedade civil que conseguirem se articular num cenário em que todos se mobilizaram para eleger Lula. Logo, nesse momento inicial, vejo que o movimento pela revogação do ensino médio é o primeiro de muitos que poderão se organizar contra a nova ordem que se configura, sendo que as margens para a mudança podem ser tão estreitas quanto nesse caso. Veremos.
Correio da Cidadania: De um lado, os últimos anos foram marcados por uma presença mais radical de direita nas ruas, ao passo que as esquerdas apareceram com pautas mais legalistas e de manutenção da ordem vigente. Como entende essa problemática por uma perspectiva histórica? Deverá a esquerda e a sociedade civil retomarem um protagonismo maior a fim de promover avanços socioeconômicos mais concretos e barrar a ultradireita?
Marcelo Castañeda: O momento é de muita indefinição em relação às mobilizações, pois, de acordo com a pergunta, vejo que estamos em um momento de transição para uma nova ordem. De um lado, não há muita clareza dos caminhos que a extrema direita irá tomar, em especial se Bolsonaro for anulado enquanto líder. Acenei com três cenários acima: um(a) novo(a) líder assume sua função; repetição das articulações contendentes como a de 8 de janeiro; diluição no tecido social. Desde 8 de janeiro, o que pode estar acontecendo no campo da extrema direita é uma reorganização que pode levar, inclusive, a uma fragmentação maior que impeça contundência nas ruas.
De outro lado, a esquerda e a sociedade civil podem começar a se articular para fazer valer seus interesses frente às margens mais curtas em termos de recursos que estão em jogo. Na reforma do ensino médio, que trata fundamentalmente do interesse das fundações empresariais em relação aos programas e verbas do ministério da Educação, logo, política e economia no mesmo balaio. Vejo essas possibilidades organizativas mais como busca de melhorias no terreno das possibilidades do que propriamente barrar a ultradireita, ainda que essa organização da esquerda e da sociedade civil possam funcionar nesse sentido.
Agora, institucionalmente, a esquerda se constitui como força da ordem no atual governo, continuará no legalismo e na manutenção dessa ordem que está sendo gestada. Vai garantir a operação do governo Lula, se posicionando inclusive contra segmentos que ousem se organizar contra qualquer medida, por mais contestada que seja. Isso pode ser visto no caso da reforma do ensino médio, que é o mais evidente e, suspeito, o primeiro de muitos que virão, pois essas tensões não podem ser varridas para debaixo do tapete dessa nova ordem que se configura.
No entanto, para terminar, seria interessante pensar em termos do que vai além das possibilidades dadas pelas margens, mas aí entramos no terreno de recuperação das utopias, o que, a meu ver, só é possível hoje em articulações globais. Mas precisamos retomar nossas energias utópicas, coisa que o neoliberalismo progressista enterra, pois nos limita a margens cada vez mais curtas. Até porque não vai ser sempre possível fazer com que todos ganhem.
Gabriel Brito é jornalista, repórter do Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.
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