Correio da Cidadania

Regulação de Plataformas - a urgência e o Regime de Urgência

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Projeto de Lei nº 2630/2020 - Data Privacy Brasil Research
A urgência de regularmos as plataformas digitais é incontestável, como nos revelam os últimos acontecimentos que têm desestabilizado nossa democracia, ocorridos desde 2014, envolvendo o processo de reeleição da presidenta Dilma Rousseff, seu impeachment, a prisão do presidente Lula, as campanhas políticas marcadas pela desinformação e discursos de ódio de 2018 e 2022, culminando com o atentado de 8 de janeiro deste ano e agora os ataques às escolas e crianças e adolescentes, todos eles com a participação importante das plataformas.

Entretanto, para afastarmos o risco de darmos um tiro no pé, é necessário que o texto da lei que está em debate e trata de Liberdade, Transparência e Responsabilidade nos garanta o grau de segurança jurídica adequado a complexidade do espectro de temas que serão impactados pelo texto a ser aprovado e eficientes o suficiente para fazer frente ao inédito poder econômico das Bigtechs.

É fundamental que o texto nos garanta, o máximo possível, que haja enquadramentos suficientes de agentes econômicos a estarem submetidos às obrigações que a lei trará e de suas condutas e práticas comerciais, bem como que garanta os mecanismos de regulação e fiscalização eficientes, o que hoje sequer consta da proposta.

O texto do Substitutivo ao PL 2630, apresentado pelo Deputado Orlando Silva – relator da proposta na Câmara Federal há menos de uma semana, com a introdução recente de temas sensíveis e não suficientemente debatidos de forma democrática, não nos garante a segurança necessária e, portanto, não é razoável e nem responsável submetê-lo ao regime de urgência, como se aprovou em sessão de votação tumultuada no último dia 25 de abril.

Sensacionalismo e oportunismo político e econômico

A matéria do PL 2630 é central e de enorme relevância e justamente por isso se tornou bandeira levantada de forma oportunista para a defesa de grandes interesses políticos e econômicos, dos grandes radiodifusores, especialmente a rede Globo, que há anos vêm sentindo o baque de dois fatores que precisamos destacar e distinguir nesse debate.

O primeiro diz respeito à perda do protagonismo sobre as narrativas. A Internet, por meio das aplicações ofertadas vastamente no mercado pela Meta e Google/Youtube principalmente, viabilizou que movimentos sociais e as mídias independentes apresentassem sua visão dos fatos e demonstrassem eventos com desinformação promovidos pelos radiodifusores, associados a políticos poderosos e, até pouco tempo, hegemônicos.

São exemplos de desinformação conhecidos de todos a vergonha da notícia veiculada pela Globo sobre as poderosas manifestações de 25 de janeiro de 1984 pelas Diretas Já como se fosse aglomeração pública em comemoração pelo aniversário de São Paulo.

Posteriormente, nas eleições a presidência disputada por Fernando Collor e Lula, quando a Globo manipulou fatos e hipotéticos documentos para enfraquecer o candidato do Partido dos Trabalhadores e, mais recentemente, a exaltação reiterada ao longo de anos da Lavajato e seus algozes Sergio Moro e Deltan Dalagnol.

Vamos lembrar que o discurso predominante em favor dos usurpadores só caiu por terra pela atuação do hacker de Araraquara e a atuação do site de notícias The Intercept, reforçado pelo trabalho dos canais alternativos de notícias, sendo que a Globo demorou muito para dar publicidade aos fatos gravíssimos que as revelações desvendaram.

E segundo e o mais importante fator: os radiodifusores passaram a perder volumes enormes de receitas de publicidade, que foram aos poucos sendo direcionadas para as empresas da Meta e Google. Destaco que hoje o Youtube disputa o primeiro lugar em audiência de vídeos com a Globo.

É importante ter presente também que as Big techs têm um poder de coletar e tratar dados em dimensões que as empresas de televisão mesmo com canais na Internet não têm e, consequentemente, conseguem atrair mais anunciantes, por força do uso dos dados para perfilamento e oferta mais eficiente de produtos e serviços.

O sequestro da pauta da regulação das plataformas

Ou seja, os radiodifusores têm motivos suficientes para avançar sobre as pautas legislativas, se utilizando oportunisticamente do apelo que a defesa de direitos fundamentais, a defesa de crianças e adolescentes e da dignidade da pessoa humana, tão desrespeitados tanto pelas Big Techs quanto pelas empresas de televisão, que sempre foram hegemônicas no país, como nos mostram diversos trabalhos, ações judiciais em parceria com o Ministério Público e publicações do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, entre eles o Monopólios Digitais: concentração e diversidade na Internet.

E foi o que fizeram de forma bastante eficiente os lobistas da Globo. O texto original do PL 2630, apresentado no Senado pelo Senador Alessandro Vieira (PSD), tratava de aplicações de Internet e depois de enviado à Câmara, de repente, surge no texto sob a relatoria do Deputado Orlando Silva o tema da remuneração por conteúdos jornalísticos, desvirtuando o foco da proposta legislativa, friccionando as partes envolvidas no debate e reduzindo a possibilidade de consenso. Até hoje o Deputado não nos informou de forma clara como e porque esse tema foi engendrado no projeto de lei.

A inverdade de que o texto do PL teria sido amplamente debatido

Para garantir o regime de urgência, o Deputado afirma que o texto foi amplamente debatido. Esta é uma meia verdade.

Isto porque, de fato, o texto original foi submetido a diversas audiências públicas até o final de 2021, tanto no Senado quanto na Câmara, valendo ressalvar, entretanto, que os debates se deram no período de pandemia, quando as conversas aconteciam de forma limitada pela Internet.

O que não tem sido dito em favor da transparência, é que há pontos novos e centrais que não foram debatidos e que podem ter efeitos determinantes para a liberdade de expressão, como é o caso dos dispositivos que tratam de riscos sistêmicos, ações preventivas de moderação de conteúdos pelas plataformas e dever de cuidado, introduzidas no texto há menos de um mês, por iniciativa do atual governo Lula.

Quero deixar claro, e tem vários posts aqui no Blog que confirmam isso, que sou amplamente favorável à regulação sobre esses temas; porém, aprovar o texto como está, sem as imprescindíveis reflexões, é temerário, tendo em vista seus potenciais efeitos para a liberdade de expressão e estabilidade de nossa democracia.

E quando falo liberdade de expressão, não estou me restringindo aos aspectos individuais desse direito, estou falando dos efeitos difusos e com potencial de dano abrangente para as instituições democráticas do país.

Nesse sentido, convido a todos para lerem com muita atenção os arts. 6º a 14 do texto e reflitam se tais dispositivos, da forma como estão redigidos, abrem ou não margem de maior empoderamento para as plataformas de analisarem e adotarem ações preventivas de remoção de conteúdos, sobre uma base legal em grande medida subjetiva, sem a devida segurança jurídica que o tema demanda.

Esses riscos se agravam ainda mais quando não temos no horizonte a perspectiva de qual será o órgão a promover a regulação e fiscalização de temas tão sensíveis, correndo o enorme risco de ficarmos nas mãos da Agência Nacional de Telecomunicações, com histórico desde seu nascedouro, de ser capturada pelos interesses econômicos privados das empresas reguladas, como tem apontado em diversos acórdãos o Tribunal de Contas da União e como informa Nota do Grupo de Trabalho de Acesso e Universalização da Coalizão Direitos na Rede.

Voltando à captura da pauta da regulação pela Globo

Mas eu não vou me estender sobre os diversos pontos que merecem mais debates, inclusive a absurda inclusão da imunidade parlamentar para as redes, pois o que me moveu para escrever este artigo foi a indignação que tem me causado o oportunismo da Globo, em explorar nossas vulnerabilidades nas plataformas das empresas que prestam serviço na Internet, para apressar a aprovação de um texto que não está maduro, em favor de seus interesses econômicos pouquíssimo legítimos.

A matéria divulgada no domingo, 30 de abril, no programa Fantástico, sobre as barbaridades que acontecem no aplicativo Discord, envolvendo também outras plataformas, foi repugnante. Não por trazer a público uma realidade que não pode ser ignorada, mas por fazê-lo de forma sensacionalista e usando de inverdade inadmissível.

Na matéria do Fantástico, ao invés de haver destaque para o fato de que as autoridades competentes têm tido atuação insuficiente quanto à atuação de grupos extremistas e neonazistas na Internet, que incentivam ódio, suicídio e automutilação, o repórter afirma que “hoje, pelo Marco Civil da Internet, as empresas não são responsáveis pelo que é divulgado nelas” e que só seriam obrigadas a remover conteúdos com base em ordem judicial. Essa é uma inverdade grave de ser afirmada num programa com o alcance de milhões de brasileiros e que está apoiada numa tese que sequer é a predominante no Poder Judiciário.

Esses fatos acontecem há muito tempo, como indicam os dados da Safernet e, com a exceção de ações pontuais do Ministério Público e polícia, o problema não vem recebendo a atuação dos órgãos públicos como deveria e poderia.

Nesse sentido, a atuação do Tribunal Superior Eleitoral nas eleições de 2022 e, recentemente, a instalação pelo Ministério da Justiça da Operação Escola Segura e edição da Portaria 351/2023, impondo uma série de medidas administrativas a serem adotadas pelas plataformas, que foram fundamentais para inibir as ameaças, como apontei em artigo publicado no Mobile Time – Estruturas em Crise e a Portaria 351/2023 do Ministério da Justiça.

Tudo isso é crime e essas plataformas, pelas leis hoje em vigor, já deveriam estar respondendo pelas suas práticas algorítmicas de moderação de conteúdos que, ao invés de garantir um ambiente seguro, permitem a prática de crimes em seus sistemas há anos em busca de engajamento para amplificar a coleta de dados pessoais e seus lucros.

A Globo, portanto, desinforma e fez um desserviço ao dizer que não haveria lei hoje no Brasil para impedir essas ilegalidades, às vésperas da votação do mérito do PL 2630, com o objetivo de defender seus interesses econômicos privados de forma reprovável, tentando impedir o aprofundamento dos debates democráticos em torno de matéria tão importante.

É claro que precisamos de uma lei específica para enfrentar esse caos que vem nos conduzindo à barbárie, não só pela escalada das forças reacionárias, mas também em função de como as plataformas gerenciam os conteúdos hospedados em seus sistemas.
Mas precisamos de uma lei que de fato possa fazer frente a essa realidade, num processo equilibrado, responsável e sem a exploração abusiva das vulnerabilidades de nossa sociedade.

Até lá, vamos cobrar das autoridades a aplicação das leis que temos, ao contrário do que disse a Globo no programa de ontem no Fantástico.

P.S.: Pontos que merecem mais debates e comprometem o cumprimento das finalidades do PL 2630/2020.

• Dever de cuidado - arts. 6º a 14
• Remuneração por conteúdos jornalísticos - art. 33
• Imunidade Parlamentar - § 6º, do art. 33
• Atribuições do Comitê Gestor da Internet no Brasil - art. 51

No artigo PL 2630 das Fake News e dois bodes na Câmara, explico os pontos negativos de incluirmos remuneração de conteúdos jornalísticos e imunidade parlamentar nesta lei.

Flávia Lefèvre Guimarães é advogada especializada em direito do consumidor, integrante da Coalizão Direitos na Rede e foi representante das entidades de defesa do consumidor e do Comitê Gestor da Internet no Brasil.

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