A pós-República
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- Lincoln Secco
- 29/05/2023
Há alguns anos se discute o fim da mal chamada Nova República. O ensaio de neoliberalismo extremo que tivemos a partir de 2016 exprimiu algo que não tem mais nenhuma objetividade como regime político e social. Ele não pode negar e recolocar o sistema anterior como seu momento constitutivo. O binômio social-liberal que marcou a era trabalhista do capitalismo colapsou. Potencialmente, a sociedade não mais existe, é só o lado liberal que se põe como a aparente totalidade. Ele se nutre de um terreno social deformado por serviços privatizados, falsas organizações sociais e terceirizações. A “política” não incorpora a classe trabalhadora na esfera da cidadania, apenas indivíduos dotados de direitos que não restrinjam a taxa de lucro.
Na VI República vivenciou-se um regime de tensão entre uma ótica social e outra liberal. Social nas conquistas populares da Assembleia Constituinte, liberal na execução dos governantes. O golpe de 2016 levou ao poder dois governos ilegítimos. A vitória do PT em 2022 interrompeu momentaneamente a fascistização do Estado.
A fase atual difere da Nova República porque sua forma é a do progressismo em matéria de novos direitos, todavia desconectados de qualquer mudança na esfera produtiva. Houve avanços irrenunciáveis na cultura política e nas relações intersubjetivas, mas na maioria dos casos sem custo econômico para as classes dominantes.
O mudancismo da década de 1980, por outro lado, só tangenciava aqueles direitos individuais, o que era injustificável. Por outro lado, atingia o nível das relações de produção e, especificamente a forma salário. É verdade que o salário expressa e ao mesmo tempo obscurece a exploração da força de trabalho, mas é em torno dele que ocorre o principal conflito distributivo nas sociedades capitalistas. A defesa dos direitos trabalhistas e sindicais e do salário direto e indireto davam o tom daquele período histórico.
Com a Constituição de 1988 os direitos trabalhistas, previdenciários e sociais se tornaram um terreno comum de disputa. Mesmo governos neoliberais eram comedidos diante daquelas travas sociais. Contudo, a partir do século 21, a própria esquerda deixou de tratá-los como intocáveis. E nos dias de hoje, mesmo governos progressistas têm receio do “vandalismo mercantil” (1) que os impede até de cogitar uma mera alteração na meta de inflação no Copom. O novo arcabouço, ou seja, a estrutura em que a luta de classes deve se mover, é agora fiscal e não social. Os nomes não são casuais.
República
O historiador Murilo Leal Neto registrou a presença de um sujeito coletivo formado pela “classe operária + classes populares + setores da classe média” no período 1951-1964 num contexto de industrialização acelerada, urbanização e tendência ao pleno emprego na capital paulista (2).
Embora as mudanças sociais e materiais que ocorreram depois fossem decisivas, aquele campo popular ainda se fez presente nos anos 1980 quando assistimos às greves gerais e lutas sindicais, depois esvaziadas pela automação e pela orientação política das direções sindicais. Poderíamos agregar novos valores religiosos, o neoliberalismo, o setor informal, ataques à CLT etc. Mas o processo de desindustrialização foi decisivo para diferenciar a chamada Nova República das fases políticas anteriores, particularmente a República de 1946.
A Sexta República foi marcada por um Estado redistribuidor da mais-valia social para além das capacidades produtivas do país. Houve uma desconexão entre o baixo crescimento econômico, a capacidade de tributar os ricos e a promessa de ampliação da participação da classe trabalhadora no produto social. Em outras palavras, a forma jurídica das relações de produção exprimia uma correlação política de forças que não correspondia mais ao chão material da economia.
A expressão jurídica daquele conflito foi resumida por Hideyo Saito quando afirmou que a Constituição de 1988 “criou o arcabouço progressista de proteção social, mas um sistema tributário conservador, incapaz de sustentá-lo. A classe dominante e sua mídia, entretanto, pregam a ideia de que a Constituição tornou o país ingovernável devido ao ‘excesso’ de direitos sociais e sindicais: o desvio estaria nesses direitos e não na regressividade dos tributos, que poupa as classes mais abastadas” (3).
Obviamente poderia haver distribuição de renda passada, mas num sistema capitalista democrático a tensão de um conflito distributivo sem renda adicional levaria à ditadura de uma das classes sociais fundamentais: o proletariado ou a burguesia. Não é à toa que a democracia é na maioria dos países um regime instável. O rumo tomado foi o da conciliação de classes que o boom do agronegócio e a orientação reformista do governo permitiram.
O ensaio de revolução democrática de 1984-1989 (Diretas Já!, constituinte, greves gerais, Frente Brasil Popular) coincidiu com o final do longo ciclo de crescimento econômico brasileiro. Se a CLT marcou a decolagem da indústria pesada no Brasil, a Constituição de 1988 assinalou o fim da industrialização.
A Assembleia Nacional Constituinte ampliou gastos, contudo foi regressiva na arrecadação. Um exemplo, entre tantos, foi o da tabela do imposto de renda. No final da Ditadura o Decreto-lei 2.065/83 fixou a alíquota máxima de 60%. A Constituição de 1988 reduziu para 25%. Em 1999 estabeleceu-se 27,5% (4). Pouco antes houve a isenção de lucros e dividendos (1995).
A disputa pelo orçamento público na VI República teve duas balizas opostas: 1) estabelecimento de percentual mínimo de gastos com saúde e educação, manutenção da seguridade social etc.; 2) a dívida pública que sequestra parte expressiva da arrecadação para remunerar os rentistas.
Era um arcabouço marcado pelo conflito: de um lado, protegia-se um piso mínimo de recursos sociais e a destinação de alguns tributos para garantir direitos sociais. De outro, defendia-se o superávit primário (resultado positivo de receitas menos despesas do governo, excetuando os gastos com juros). Politicamente, o contencioso se traduziu no presidencialismo de cerco. O congresso assediou o executivo quando este teve veleidades “populistas”.
Diante do consenso popular favorável à gratuidade da educação e da saúde pública, o congresso sempre teve dificuldade para desvincular receitas e o caminho adotado pela direita foi o de estabelecer um corte linear no gasto público. Os marcos desse processo foram: 1997, com a retirada do direito dos estados de emissão de títulos públicos (dívida mobiliária) (5); 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal; 2016, com o teto constitucional para despesas primárias (ou seja, desconsiderando o pagamento de juros); 2023, com o novo arcabouço fiscal.
O ciclo petista
Entre 1981 e 2022, a população cresceu 1,4% ao ano e o PIB cresceu 2,2% ao ano. Assim, a renda per capita aumentou só 0,8% ao ano (6). Após a constituinte, o PIB cresceu apenas 1,8% por ano entre 1989 e 2003. No segundo mandato de Lula, o PIB brasileiro cresceu 4,6% ao ano. Naquele curto período o PT valorizou o salário mínimo e o gasto social, mas o crescimento não se assentou numa base industrial ou de serviços tecnológicos avançados e reproduziu a dependência estrutural do país. Sujeitou-se assim à regressão que rapidamente se seguiu.
Embora a VI República possa ser dividida entre os períodos do PSDB e PT, sua unidade residiu naquela desconexão produtiva citada acima. É como se a história política e a econômica caminhassem separadas quando recortamos analiticamente cada fase e ao mesmo tempo articuladas quando consideramos o período como um todo. A extensão de direitos sem base material sólida só pode se dar de forma precária.
A chamada Nova República repousava na promessa de atendimento das demandas sociais sem contrapartida na produção material. A parca distribuição de renda havia se autonomizado diante de sua estreita base econômica no momento petista. Foi a dialética da segunda fase daquele período histórico.
Não significa que os direitos conquistados fossem financiados pelo confisco da renda passada dos ricos. Ao contrário. A desigualdade de renda diminuiu na VI República, mas isso se deu de forma tímida e a concentração de riqueza patrimonial se manteve. Há um extenso debate metodológico sobre a mensuração da desigualdade brasileira. O fato é que a universalização de direitos se traduziu de duas formas: precarização e ampliação do acesso.
Não é um binômio estanque. Acesso a saúde, educação, habitação, cisternas, eletricidade não é algo precário para quem não tinha nada disso. O termo precarização é ambíguo ao ser importado para o Brasil. A força de trabalho em sua maioria sempre foi informal. Entrar numa escola pública que rebaixou a qualidade não é percebido como desqualificação por quem não podia ir à escola.
O Estado é que escolheu a desqualificação porque preferiu remunerar organizações “sociais”. O problema é que quando o acesso se generaliza, o passo seguinte dos governos deveria ser a melhoria do serviço e para isso seria preciso mudar o modelo econômico neocolonial, criar uma economia industrializada e um sistema de impostos progressivos. Isso não cabia no leito estreito em que adormeciam os conflitos da VI República. O descompasso entre “economia” e “política” precisava ser resolvido.
A Lava Jato e o golpe de 2016 procuraram uma forma jurídico-política neoliberal. Já o fascismo rompeu com qualquer forma e pôs a nu o que hoje temos. A derrota apenas eleitoral do fascismo abriu o interregno de um país em compasso de espera. Há que se definir se teremos uma república social ou o aprofundamento do mais puro liberalismo porque a junção das duas coisas não deu certo.
Notas:
1) A expressão é de Gilberto Maringoni. Agradeço a leitura dele e de Giancarlo Summa.
2) Neto, Murilo Leal Pereira. “A fábrica, o sindicato, o bairro e a política: a “reinvenção” da classe trabalhadora de São Paulo (1951-1964)”. Revista Mundos do Trabalho, vol.1, n. 1, janeiro-junho de 2009.
3) Saito, H. “”Ricos devem pagar mais imposto”, Mouro no. 15, janeiro de 2021, p. 308.
4) Nóbrega, Cristovão B. História do Imposto de Renda no Brasil, um Enfoque da Pessoa Física (1922-2013). Brasília: Receita Federal, 2014.
5) Trindade, J. R. “Dependência fiscal”, https://aterraeredonda.com.br/dependencia-fiscal/. Sobre a privatização dos bancos estaduais vide: Paes, Julieda P. P. Bancos estaduais, ‘criação’ de moeda e ciclo político. São Paulo: FGV, 1996.
6) Alves, José E. D. “O crescimento do PIB brasileiro por períodos presidenciais entre 1956 e 2022”, EcoDebate, 28-09-2022.
Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).
Fonte: A Terra é Redonda.
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