Correio da Cidadania

“Aprimora-se uma institucionalidade que submete a política econômica às exigências do grande capital”

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Campos Neto diz que revisão da renúncia fiscal é bem-vinda | Agência Brasil
Lula Marques / Agência Brasil

Lula iniciou a semana reiterando críticas à política monetária do Banco Central, que mantém a taxa de juros a 13,75%, patamar que inviabiliza a retomada de ciclos econômicos de maior intensidade. Isso depois de o ministério da Fazenda, a duras penas, chegar a uma política de substituição ao impraticável teto de gastos, o novo arcabouço fiscal. No entanto, como explica o economista Plinio Arruda Sampaio Junior ao Correio, o novo arranjo mantém uma inviabilidade crônica da administração pública e da ideia de “colocar o pobre no orçamento”.

“Dependendo da conjuntura nacional, pode ser impossível cumprir as metas de ajuste fiscal. Quando o arranjo fiscal se revelar impossível de ser cumprido, ou o governo paralisa completamente a ação ou vai ter de pedir um perdão para o Congresso. Foi o que aconteceu durante o governo Bolsonaro, que na verdade recebeu vários perdões por descumprimento da lei do teto de gasto. Porque era impossível cumpri-lo. Aí o congresso faz uma anistia, mas, como contrapartida, impõe uma espécie de parlamentarismo de fato”.

Plinio assinala que, a despeito do discurso oficial, o novo arcabouço fiscal manterá um modelo econômico incapaz de contornar as mazelas socioeconômicas gestadas no período 2016-2022. “É impossível resolver a crise política brasileira sem superar a contradição inconciliável entre uma política econômica que aprofunda o neoliberalismo e um arcabouço constitucional que obriga o Estado a fazer política públicas. Esta contradição vai se manifestar inúmeras vezes e agravará a crise nacional”, explicou o professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp.

Dessa forma, cabe compreender que os tão criticados juros são apenas uma faceta de todo um modelo econômico que interdita as transformações sociais e coloca o país numa estagnação permanente. Com a crise do comércio internacional, em cujos fatores o país não pode interferir, a situação pede uma ampliação da participação do Estado na orientação econômica.

“A mudança da política econômica, que por sua vez, depende de uma mudança política. Depende de uma mudança na correlação de forças da sociedade brasileira. Se o povão não se mobilizar, não estiver nas ruas e não exigir uma outra prioridade, ficaremos com a correlação de forças que se instalou a partir de 2016, dá as cartas e impõe o rumo do país. Dentro dessa correlação de forças, que mudou profundamente o Estado brasileiro, o raio de manobra do governo Lula é mínimo. O melhor que ele pode fazer é diminuir a dose do veneno neoliberal”.

Ou seja, cabe aos setores progressistas um esforço no sentido de mudar as próprias bases dos debates instituídos. E para isso é necessário “disputar o futuro”, ao invés de combater a ameaça fascista apenas com atualização de políticas passadas. Para Plinio, as esquerdas perdem seu papel histórico ao renunciar em falar do socialismo como alternativa de mundo. Enquanto isso, de forma farsesca, a ultradireita se apresenta como “antissistema” e o capitalismo vai impondo suas “saídas” da crise, baseadas na destruição dos trabalhadores e do meio ambiente.

Leia a entrevista completa.


Correio da Cidadania: Como você analisa o novo arcabouço fiscal e as prioridades estabelecidas por esse arranjo macroeconômico?

Plínio Arruda Sampaio Junior: O arcabouço de fiscal é um aprimoramento do teto de gasto de Michel Temer. Ele mantém o mesmo espírito do teto de gasto, que é uma política de Estado mínimo, de “redução gradual nem tão gradual” da presença do Estado na economia. Esse é o espírito do teto de gasto e está mantido. Por trás de tudo, a prioridade é mercantilizar os serviços públicos e garantir a sustentabilidade intertemporal da relação dívida-PIB. Essas são as duas prioridades implícitas. O arcabouço dá continuidade à penúria que asfixia as políticas públicas.

O bloqueio ao gasto público permanece. A diferença em relação ao velho Teto de Gasto é que esse limite agora é mais flexível, varia conforme a conjuntura, mas o limite continua posto, mesmo que a economia cresça, digamos, 12% ao ano – o que não está posto, mas só por hipótese. Mesmo assim, o gasto nunca poderia exceder 2,5% do PIB em relação ao seu hipotético aumento.

Às restrições impostas pelo aumento das receitas tributárias, o Arcabouço Fiscal acrescenta um segundo limite, vinculando o gasto público ao cumprimento das metas de superávit primário. Assim, se o governo não cumpre a meta vem uma cláusula draconiana que o obriga a cortar gastos no ano seguinte, independentemente da conjuntura social e do que esteja acontecendo no país.

Esse é o resumo do arcabouço fiscal. Seu impacto sobre a vida nacional é fortíssimo. Se Lula tivesse implementado as regras do teto do arcabouço fiscal durante o seu governo, certamente não poderia ter feito o que fez. Porque teria de fazer um corte de gasto. O João Sicsú, um economista da UFRJ, fez o cálculo e mostrou que se essa regra tivesse sido aplicada no período de 2003-2010, o governo teria de cortar R$ 1,35 trilhão. E se a regrinha estivesse implementada de 2003 a 2022 o corte seria de 9 trilhões, quase um PIB brasileiro. Isso dá a dimensão da violência que está por trás do arcabouço fiscal.

Correio da Cidadania: Sobre esses gatilhos, parecem punições coletivas, com congelamento de investimentos sociais, congelamento de salários, proibição de concurso público, todo um leque que restringe as atuações e despesas estatais de incidência direta na população. Ao mesmo tempo, se o BC autônomo não cumpre suas metas nada acontece e as metas são até aprofundadas. Como não entender como uma derrota política do programa eleito pelas urnas?

Plínio Arruda Sampaio Junior: Sem dúvida nenhuma é uma derrota. O arcabouço fiscal aumenta o controle do capital sobre a política fiscal do Governo Federal. O impacto do novo regime fiscal não é só econômico e social. Ele também vai criar crise política. Isso porque, dependendo da conjuntura nacional, pode ser impossível cumprir as metas de ajuste fiscal. Quando o arranjo fiscal se revelar impossível de ser cumprido, ou o governo paralisa completamente a ação ou vai ter de pedir um perdão para o Congresso. Foi o que aconteceu durante o governo Bolsonaro, que na verdade recebeu vários perdões por descumprimento da lei do teto de gasto. Porque era impossível cumpri-lo. Aí o congresso faz uma anistia, mas, como contrapartida, impõe uma espécie de parlamentarismo de fato.

Portanto, o novo arcabouço fiscal, por um lado, reforça muito o controle do grande capital sobre a política fiscal; por outro, cria uma bomba política, porque reforça a capacidade do parlamento de tutelar o executivo toda vez que o executivo descumprir as normas do capital. No fundo, aprimora-se uma institucionalidade que submete a política econômica às exigências do grande capital. É isso que o arcabouço faz.

Essas cláusulas de punição são tão draconianas que na prática inviabilizam a administração pública. Elas certamente não serão cumpridas, e não serão cumpridas às custas da tutela do congresso sobre o executivo. É um tiro no pé total. O governo compra a boa vontade do mercado no curto prazo, mas o preço é seu imobilismo no médio e no longo prazos.

Correio da Cidadania: Como isso pode dialogar com o programa político vencedor das eleições gerais de 2022?

Plínio Arruda Sampaio Junior: O Lula fez um discurso ambíguo na campanha. Por um lado, prometeu para que manteria o modelo econômico; e, por outro, que colocaria o pobre no orçamento. É a quadratura do círculo, pois é impossível fazer as duas coisas. O arcabouço fiscal é a prova dos nove. Lula terá de decepcionar o capital ou o povão que queria entrar no orçamento. E o arcabouço fiscal, já indicamos, demonstrou qual foi a escolha dele. Escolheu-se capital, a Faria Lima. É um novo estelionato eleitoral. Mas não é só o Arcabouço Fiscal que revela a que veio o governo Lula-Alckmin.

O Novo Ensino Médio (NEM) é outro fortíssimo ataque às classes subalternas. Porque o NEM muda a filosofia que orienta a formação dos estudantes. Enterra-se definitivamente a ideia de formar um estudante que vire cidadão para privilegiar a formação de um indivíduo neoliberal. O arcabouço fiscal, a inércia em relação ao NEM, a omissão em relação aos ataques contra os povos originários e o meio ambiente, a incapacidade de enfrentar a questão militar, a docilidade diante da avidez do Centrão configuram claramente o governo Lula como o terceiro governo do golpe contra os trabalhadores que começou no estelionato eleitoral da Dilma e foi dobrando as apostas até chegar em Bolsonaro. Não é um governo para desfazer o que tinha sido feito por Temer e Bolsonaro; é um governo pra institucionalizar e legitimar o que foi feito por eles.

Correio da Cidadania: Houve um grande esforço político pra se conseguir um orçamento considerado mínimo para as políticas sociais de 2023. É possível prever um resultado fiscal compatível com a garantia de políticas essenciais de bem estar social ou temos tudo para ver o mesmo embate se repetir para 2024?

Plínio Arruda Sampaio Junior: Sem dúvidas veremos novos embates pelo orçamento. Porque o governo não enfrentou nenhum dos problemas por trás da fragilidade fiscal brasileira, que são:

1) o modelo econômico de baixo crescimento. O modelo é o mesmo, não mudou nada, a política econômica é rigorosamente a mesma;

2) o governo não aumentou a tributação nem diminuiu as isenções fiscais, que são gigantescas. O Brasil na verdade gasta muito menos em políticas públicas do que o necessário para atender as necessidades sociais. E a maneira de resolver isto seria aumentar a receita líquida disponível. Mas não há nada sobre isso, os balões de ensaio que saem sobre a reforma tributária mostram uma modernização técnica do sistema tributário, não uma elevação da carga tributária e, muito menos, medidas para combater a injustiça fiscal deste sistema;

3) o governo não tocou no principal item de despesa do Governo Federal, que são as despesas com pagamento de juros da dívida pública e as despesas financeiras decorrentes da política monetária e cambial que sustentam a farra da ciranda financeira que alimenta o rentismo. As despesas financeiras representam 3,3 vezes mais do que todo o gasto do governo central com saúde e educação. Ou seja, o governo não enfrentou nenhum dos problemas subjacentes à sua fragilidade fiscal. Ela permanece e vai se manifestar. O que se conseguiu com esse orçamento da PEC da transição foi dar um chutão pra atravessar o primeiro ano do mandato de Lula.

Mas os problemas financeiros do governo federal reaparecerão rapidamente porque a fragilidade fiscal é estrutural. Se a gente olhar pra trás vamos ver que tirando o governo Temer, que fez o teto de gasto e falou “olha, a implementação começa só depois que eu sair”, Bolsonaro teve problema para cumprir o teto de gasto todos os anos. O bloqueio fiscal inviabiliza o funcionamento da administração pública. Sem base financeira é impossível tocar o SUS, financiar a educação pública, fazer investimentos em infraestrutura etc.

Há um antagonismo inconciliável entre a política fiscal, que é uma parte da política econômica, com os preceitos da Constituição de 1988. Eles vão continuar se chocando, vão continuar inviabilizando o funcionamento do país. Ou seja, por trás de tudo tem uma crise política imensa. É impossível resolver a crise política brasileira sem superar a contradição inconciliável entre uma política econômica que aprofunda o neoliberalismo e um arcabouço constitucional que obriga o Estado a fazer política públicas. Esta contradição vai se manifestar inúmeras vezes e agravará a crise nacional.

Correio da Cidadania: Outro foco de debates acalorados, que também coloca em choque o programa econômico eleito pelas urnas com o programa do grande capital, é a taxa de juros. Como você observa essa questão, até aqui inalterada pelo presidente do Banco Central, a despeito de todas as críticas, inclusive de parte do empresariado?

Plínio Arruda Sampaio Junior: Assim como o capital assumiu o controle da política fiscal, com a autonomia absoluta do Banco Central, ele também assumiu o controle da política monetária. O governo federal ficou sem instrumentos de política econômica. Virou uma espécie de rei da Inglaterra.

A taxa de juros é um preço estratégico da economia. Se fica na estratosfera, ela asfixia a economia pela paralisia dos investimentos e pela depressão do crédito para o consumo. Os juros, evidentemente, deveriam diminuir. No entanto, é uma ingenuidade imaginar que bastaria para resolver a tendência estrutural à estagnação, que se instalou na economia brasileira depois de 2014.

O crescimento do PIB não depende só da taxa de juros. Depende basicamente da existência de frentes de expansão do capitalismo. O Brasil é uma economia cada vez mais especializada na divisão internacional do trabalho. A sua expansão depende do dinamismo da economia mundial. Mas a economia mundial está em crise e o comércio mundial numa crise maior ainda. Se a taxa de juros diminuir, um pouco a situação, mas o país continuará estagnado.

Evidentemente, a queda na taxa de juros diminui a pressão sobre devedores, permite uma maior expansão do crédito etc. Mas a redução da taxa de juros não é uma panaceia. Para melhorar a vida do povo, é toda a política econômica que precisa mudar.

Correio da Cidadania: E quais seriam essas mudanças?

Plínio Arruda Sampaio Junior: O país precisa de uma alternativa ao neoliberalismo. Se não tiver uma alternativa ao neoliberalismo, é uma ingenuidade imaginar que uma mudança isolada, tópica, possa ter o condão de alterar substancialmente o rumo da economia. A mudança passa por colocar em questão toda a arquitetura do Plano Real. O ponto de partida é mudar o critério de prioridade que preside a organização econômica do país. Se a prioridade for criar negócios para o capital a qualquer custo e garantir a ciranda financeira, o único jeito é aprofundar cada vez mais o neoliberalismo. Mas se a política é colocar o pobre no orçamento, criar emprego e resolver os problemas nacionais, é urgente uma política econômica coerente com a mudança de prioridade.

É impossível mudar uma parte. A política econômica não é uma somatória de medidas. Ela é um todo. A mudança começa pela reversão da autonomia do Banco Central, pelo resgate da política fiscal das mãos do rentismo, pela estatização das empresas dos setores estratégicos da economia, pela reversão do processo de liberalização comercial e financeira, e uma outra agenda, outros critérios de prioridade para o país.

A mudança da política econômica, que por sua vez, depende de uma mudança política. Depende de uma mudança na correlação de forças da sociedade brasileira. Se o povão não se mobilizar, não estiver nas ruas e não exigir uma outra prioridade, ficaremos com a correlação de forças que se instalou a partir de 2016, dá as cartas e impõe o rumo do país. Dentro dessa correlação de forças, que mudou profundamente o Estado brasileiro, o raio de manobra do governo Lula é mínimo. O melhor que ele pode fazer é diminuir a dose do veneno neoliberal. Mas continua sendo veneno.

Correio da Cidadania: Receita que anos atrás você cunhou de “reversão neocolonial”. É essa economia, que criou 30 milhões de famintos e 100 milhões de miseráveis que precisa ser revertida, inevitavelmente?

Plínio Arruda Sampaio Junior: Estamos assistindo a um colapso do Estado Nacional. O Novo Ensino Médio, por exemplo, representa o absoluto abandono de uma ideia de coletividade nacional. Uma coisa é educar o jovem pra ele ser um cidadão. Outra coisa é educar o jovem pra ele ter capacidade de pisar no pescoço da mãe na hora de concorrer no mercado de trabalho. Estamos falando para os jovens “virem-se, é cada um por si".

Sem enfrentar as forças responsáveis pela desorganização do Estado nacional, nada poderá impedir o avanço da barbárie. A política da burguesia é administrar a barbárie, combinando cassetete e política assistencial. A política assistencial requer recursos. Para que a máquina federal possa funcionar minimamente, a União precisaria de uma injeção adicional de recursos de pelo menos 1 ou 1,5% do PIB. Sem isso, é difícil impedir que as pessoas morram de fome na rua, que o sistema de saúde não entre em colapso, que a educação pública se desagregue. Pelo andar dos trabalhos no Congresso Nacional, parece que a burguesia brasileira não está disposta a fazer tal concessão. Sem uma solução real, o expediente encontrado pelo governo Lula é o de recorrer a gambiarras, de fôlego curto.

Correio da Cidadania: Diante do que você expõe, estancar a sangria mais dramática do nosso cotidiano custaria uma ninharia. Mas isso tem um lado que parece paradoxal, pois trata-se de manter a legitimidade de um sistema cujos beneficiários são minoria, e uma minoria que está ganhando muito e mesmo assim não tolera concessões mínimas, que no final das contas lhe garantiriam uma estabilidade política mais promissora. Dessa forma, como observa a prevalência do programa econômico dos mercados no âmbito das democracias liberais? Não estaria esta lógica implacável dos mercados a dinamitar os próprios pactos sociais destas democracias liberais, dentro e fora do Brasil?

Plínio Arruda Sampaio Junior: Enfrentar a fome custaria uma ninharia para a burguesia, mas, como vimos nas Jornadas de Junho de 2013, ela não está disposta a abrir mão de nenhum centavo. Estamos vivendo o capitalismo de crise estrutural do capital, que combina de maneira indissociável acumulação de capital e avanço da barbárie. O avanço da barbárie se dá pela deterioração progressiva das condições de vida dos trabalhadores e pela crise ambiental. Porque a resposta do capital à tendência decrescente da taxa de lucro é uma ofensiva permanente sobre o trabalho e o meio ambiente. Esse é o novo padrão de acumulação. E a este novo padrão de acumulação deve-se corresponder um novo padrão de dominação. A barbárie cria conflito, cria uma época de revoltas permanentes, em todos os cantos do mundo, e a burguesia precisa sufocar os revoltados.

A crise estrutural do capital corrói a democracia liberal no mundo inteiro, a começar pelos Estados Unidos, o epicentro de uma crise política de grande dimensão. Não consigo imaginar nenhuma saída minimamente civilizada por dentro deste regime político burguês. O capitalismo de nosso tempo exige um padrão de dominação autoritário para administrar a barbárie. Para além das picuinhas da política, é isso que explica Trump, Bolsonaro, Erdogan etc.

Não adianta atacar o fascismo por dentro do sistema, porque o sistema é que faz o fascismo. Combater o fascismo exige a mobilização das forças políticas que são contra sistema. E essa é a crise da esquerda no mundo inteiro, porque a esquerda não disputa o futuro. Ela se contrapõe ao fascismo oferecendo o passado, que está morrendo. Assim, o máximo que se alcança é o atraso da morte do velho. Mas enquanto a esquerda não disputar o futuro, o que no Brasil é combater o modelo econômico de reversão neocolonial, ficaremos condenados à instabilidade permanente.

A alternativa é a revolução brasileira, cuja essência consiste em enfrentar os problemas históricos da população: a segregação social, a dependência externa, a depredação do meio ambiente, o genocídio das nações originárias etc. Mas os problemas estruturais não aparecem na agenda política. O vazio criado pela ausência de uma esquerda contra a ordem é ocupado pela direita contra a ordem – que capitaliza a ousadia de propor ¬– mesmo que como farsa – uma alternativa ao que se repete indefinidamente.

Correio da Cidadania: E assim caímos em outro paradoxo aparente, pois com o golpe de 2016 e a recente tentativa de golpe de Estado fica fortalecida uma ideia dentro das esquerdas de que a correlação de forças é desfavorável e devemos nos contentar com pequenos avanços, a ponto até de cantar vitória em pautas que nada têm a ver com as bandeiras de suas bases, como a própria questão do arcabouço fiscal; de outro lado, há o trauma com 2013, fenômeno social repleto de interpretações fantasmagóricas, algumas diretamente mentirosas, por parte das esquerdas. Ou seja, ficaria impossível lutar tanto por dentro como por fora da institucionalidade, uma vez que em ambos os casos estaríamos fadados a ser derrotados pelos conservadores.

Plínio Arruda Sampaio Junior: Vamos por partes. Mas este discurso é dominante no PT e agora no PSOL também. A ideia é de que não há nada a fazer. Está tudo dominado. No fundo, a burguesia conseguiu, por um lado, cooptar a esquerda da ordem e assim esterilizar qualquer força reformista. Ela domesticou a esquerda "dentro da ordem" e neutralizou completamente a esquerda “contra a ordem". É o que explica o giro do PSOL para o centro e o absoluto isolamento do PCB e do PSTU.

A pretexto de evitar o fascismo, a esquerda da ordem foi engolida pelo sistema político brasileiro. Ela cumpre um papel importante na dominação burguesa: legitima a ordem, cria ilusão de solução dos problemas por dentro das estruturas do sistema, desmobiliza os trabalhadores e evita a emergência de forças contra a ordem. A esquerda contra a ordem - PSTU, PCB, autonomistas, enfim, o que sobrou - está completamente fracionada, dividida e sem projeto.

Os trabalhadores estão na estaca zero. O desafio é sair da estaca zero. Os trabalhadores vivem as contradições da reversão neocolonial – a barbárie capitalista –, mas não têm instrumentos pra transformar sua insatisfação em ação política. Seus instrumentos foram completamente destruídos. Uma parcela da esquerda foi cooptada e a outra esterilizada. Não é a primeira vez que os trabalhadores ficam nessa situação. Mas as derrotas da classe trabalhadora nunca são definitivas. Em algum momento, as classes subalternas forjam novos instrumentos de luta.

Correio da Cidadania: Portanto, já passou da hora de se recuperar uma crítica anticapitalista?

Plínio Arruda Sampaio Junior: A primeira tarefa é superar a blindagem mental que bloqueia qualquer possibilidade de se colocar o socialismo na agenda política. Sem a bandeira do socialismo, a esquerda não tem o que dizer aos trabalhadores. Sem disputar o futuro, ficamos presos no passado. A burguesia conseguiu acuar a esquerda de tamanha forma que, a pretexto de combater o mal maior, ela renunciou à disputa do futuro. É a armadilha que condena os trabalhadores à miséria do possível.

O problema não é exclusividade da esquerda brasileira. Vejamos o Chile. Qual foi o saldo da rebelião popular que paralisou o país por mais de um ano? O máximo que se conseguiu foi eleger o Boric,¬ uma espécie de raiz cúbica do Lula. Como o "estallido social" não se condensou em um projeto político alternativo ao neoliberalismo, a revolta não deu em nada. Não espanta que a direita ultraviolenta esteja ganhando terreno. Portanto, o principal desafio da esquerda contra a ordem é superar a blindagem ideológica que decretou o fim da História. Sem isso, continuaremos na estaca zero.

O mais importante é resgatar um projeto de futuro. Sem colocar a revolução socialista como única alternativa capaz de barrar o avanço da barbárie, ficaremos o tempo todo contra a parede, no Brasil e no mundo.

Gabriel Brito é jornalista, repórter do Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.

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