Correio da Cidadania

Milícias e Estado: reflexões sobre nossa sociabilidade renovadamente violenta

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A violência que perpassa todas as esferas da vida social brasileira “nasce de um projeto colonizador que se perpetua, nunca foi alterado, se mantém, se aprofunda e foi calcado, desde o começo, na violência”, resume José Cláudio Alves na entrevista a seguir concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU e republicada pelo Correio da Cidadania. “Ou seja, vive-se uma realidade política na qual o Estado, que vem de Lula, passa por Bolsonaro e volta a Lula – pouco importa – mantém uma estrutura de funcionamento extremamente violenta, desigual e que não consegue incorporar as massas populares que nunca foram incorporadas à sociedade. Desde a ditadura esses grupos sociais continuam buscando sobreviver – sabe-se lá como – com políticas compensatórias, com todo tipo de bolsas, que não resolvem a estrutura de vida deles, enquanto a estrutura do crime organizado resolve”, observa.

Se na década de 1980 os movimentos sociais e a sociedade reivindicavam um Estado que atendesse aos anseios sociais, lamenta, “o ponto é que a situação não é mais tão simples, não é mais preto no branco. Existe uma grande contradição porque o Estado que financia a escola, o SUS, a segurança pública, é o Estado que negocia tudo isso com os grupos armados”.

O sociólogo critica a aproximação de políticos brasileiros com grupos milicianos, a fim de extrair benefícios políticos e eleitorais dessas relações. “Aproxima-se, faz-se um discurso e nada é resolvido – como Bolsonaro não resolveu e como acredito que Lula não resolverá porque essa estrutura permanece intocada. Ela é intocável porque dá projeção, voto e controle territorial para essas áreas como um todo e ninguém quer disputar com ela. Querem ter o apoio dela. Ou seja, estamos na mão desses grupos”, adverte.

Alves também comenta as semelhanças e diferenças entre a violência praticada no Brasil e em outros países da América Latina, como o Equador, onde há um ingresso do narcotráfico. “Inúmeros grupos, relacionados aos cartéis, que estão disputando dentro da Colômbia, entram no Equador porque o país não é só um território de passagem, ele é, a partir da sua economia, um ambiente muito bom e importante para a estrutura do narcotráfico”.

No caso brasileiro, acentua, a predominância das milícias fez com que o terror alcançasse outro patamar: “Existe um número crescente de desaparecidos. Esses casos explodiram no Rio de Janeiro e ninguém sabe o que é isso porque não existem dados nem corpos nem crimes; ninguém explica nada. Esse é o grande fenômeno. O terror alcançou outro patamar dentro destas regiões; é o que estamos assistindo agora”, informa.

No próximo dia 14 de setembro, José Cláudio Alves ministrará a videoconferência “Sociabilidade violenta e América Latina. Intersecções e organizações multidimensionais da violência”. O evento será transmitido na página eletrônica do IHU, no canal do IHU no YouTube e nas redes sociais.


José Alves (Foto: João Vitor Santos | IHU)

José Cláudio Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo – USP. É professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.

Confira a entrevista.

Podemos falar de uma sociabilidade violenta no Brasil e, de modo geral, na América Latina? Como compreender e descrever essa sociabilidade violenta?

José Cláudio Alves: Este conceito é problemático dentro do mundo das Ciências Sociais. Alguns autores trabalharam com ele, mas sua ideia tem certa complexidade; não é algo simples. Um desses autores, descrevendo a situação dos morros cariocas e sua relação com o tráfico, diz que a sociabilidade violenta existiria em função da inexistência de uma mediação entre as pulsões de uma pessoa, a partir do campo da psicanálise, e suas ações. É como se a mediação do ser humano se construísse em relação com as pulsões e, se a mediação não existisse, as dimensões violentas se manifestariam diretamente. Tenho uma crítica grande a essa compreensão porque ela é a construção da ideia de que existem seres humanos diferentes de nós, humanos. Ou seja, é como se essas pessoas não fossem normais e não fossem como nós. Isso seria uma espécie de licença para tratá-las de outra maneira.

Como se fossem mais aptas a serem violentas e outras, não?

José Cláudio Alves: Exatamente. É como se aqueles que não têm mediações entre suas pulsões e seus atos concretos que geram violência fossem diferenciados e, por isso, teriam de ser tratados de forma diferenciada. Algo assim abre a possibilidade para eliminá-las porque elas não são iguais a você e a mim, que conseguimos mediar nossas pulsões.

Acredito que a sociedade como um todo, desde sua origem, nasce de um projeto colonizador que se perpetua, nunca foi alterado, se mantém, se aprofunda e foi calcado, desde o começo, na violência. Portanto, é uma sociabilidade violenta imposta em uma estrutura colonial de violação. Trucidaram-se povos originários, por exemplo. Estive três meses em Marajó, no Pará, em 2018, e eu era considerado preto para aquelas pessoas. A pigmentação da pele delas é muito mais clara do que a minha, mas aquela região é o berço da civilização indígena marajoara. Os marajoaras enfrentaram os portugueses e esses não pensaram duas vezes: simplesmente dizimaram aquela população.

Ao sofrimento desses indígenas se misturou a escravidão. Escravos, negros e indígenas foram tratados de forma cruel por muito tempo, até que se uniram e formaram um dos maiores movimentos insurrecionais no Brasil, a cabanagem. Os cabanos foram tão fortes que conseguiram entrar em Belém, capital paraense, dominaram e se tornaram governo por uma semana. Depois, o exército brasileiro mandou suas tropas, as quais varreram, em um raio de 300 quilômetros ao redor de Belém, tudo que parecesse com índio e com preto. Essa é a estrutura colonial. O poder colonial do Estado nunca teve complacência com grupos que o contestassem ou grupos étnicos, negros ou indígenas. Quando olhamos a estrutura histórica de países como México, Equador, Venezuela, Bolívia, vemos nitidamente a estrutura colonial mantida.

O Estado tem um eixo central no modo como estes grupos e esta dimensão histórica vão se correlacionar com a dimensão da violência, como cada grupo se reconfigura a partir de estruturas violentas. A história de que o Estado representa o bem, a legalidade, que é quem nos protege e tem o monopólio legal da violência, quem tem a soberania territorial, é a imagem de um Estado idealizado por uma concepção europeia ocidental que construiu uma literatura e uma ciência política que tratam da centralidade fundamental do Estado. Mas o Estado não é isso.

O Estado quebrou a soberania para negociar com grupos armados; quebrou o monopólio legal da violência para negociar com esses grupos. Os grupos que oferecem mais em termos de votos, grana, controle territorial, modelos econômicos bem-sucedidos que retornem para os ocupantes da estrutura do Estado, constituem, ao longo de cada país, uma governança criminal. Tal governança é isto: não são mais o Estado, a lei, a norma, a dimensão oficial formal que governam, mas, de outro lado, o ilegal, o crime e toda a dimensão que se diz combater. Isso se entremeou e vivemos hoje uma crise absurda na qual não temos mais como nos apegar a dimensões tão nitidamente separadas. Não é mais tudo no preto e no branco; hoje é cinza. Olhamos para um universo acinzentado. Não sabemos distinguir muito bem quem é quem neste cenário.

O Estado forja uma situação para que o corpo social responda com violência? A resposta violenta é mais coletiva do que individual?

José Cláudio Alves: Na verdade, o indivíduo e o coletivo estão imbricados nisso tudo. Não é possível simplesmente isentar a ação humana dos sujeitos na coletividade. Ela não pode ser anulada porque, do contrário, vai-se para uma dimensão estrutural que não depende da participação e da contribuição do indivíduo, mas a ação humana dele é determinante e socialmente construída. Agora, não podemos atribuir e criar uma sujeição criminal para determinados grupos sociais, como o negro favelado, o indígena, os grupos periféricos marginais, dentro de estruturas econômicas, para matá-los. A questão é que se configuram determinados locais como se esses sujeitos [que lá residem] fossem os violentos e o Estado aquele que nos protege. Isso é absurdo; não existe.

Quando falamos de sociabilidade violenta, normalmente é para apontar que o outro será liquidado. É uma espécie de construção do inimigo. A primeira coisa a ser construída na lógica da segurança pública é identificar quem me ameaça. Essa é a primeira pergunta a ser lançada e projetada quando falamos a palavra segurança. Ou seja, o que me provoca insegurança? É aí que se constitui o primeiro gancho de políticas sociais e políticas públicas de segurança. Quem é o inimigo, quem trará insegurança? A ele será atribuído o papel de sociabilidade violenta.

A estrutura miliciana, como é constituída e construída basicamente por membros da estrutura de segurança pública em parceria frequentemente com civis, também é obliterada, ocultada, apagada. Ou seja, cria-se uma espécie de simulacro dentro da dimensão miliciana. Argumenta-se que ela está sendo combatida, que membros foram presos e mortos, mas, no fundo, é apenas uma contenção para não aprofundar e não perceber as reais dimensões da estrutura que está colocada. Enquanto isso, pobres, negros, favelados – o pessoal do tráfico no varejo – são apresentados como portadores da sociabilidade violenta. O que também é uma grande fachada porque o tráfico no varejo tem, na base, a permissão, a condução e todo o controle de uma estrutura de segurança pública. A estrutura policial é determinante no funcionamento do tráfico varejista, mas ela é ocultada.

O que é a governança criminal e como se estabelece no Brasil e na América Latina?

José Cláudio Alves: A governança criminal é um conjunto de atores sociais que se estabelece em um determinado território e cria, entre si, acordos e negócios para fazer funcionar a estrutura produtiva de violência, de morte, de controle territorial e político da região onde estão instalados. Estamos diante de grupos que se articulam, de um Estado-nação que tem o monopólio legal da violência. Esse é um conceito de Max Weber, para o qual tal estrutura é determinante para o funcionamento do Estado, que tem soberania territorial. Essas duas dimensões são progressivamente alteradas e reconfiguradas para permitir que o Estado tenha, em seu interior, ações, acordos e funcionamento de outros grupos armados que dão, aos detentores do poder estatal, ganhos significativos. A governança criminal é a capacidade de ação do próprio Estado e de grupos armados, sejam estatais, sejam não estatais ou mistos.

Em minha percepção, é preciso demarcar nitidamente o que é o Estado e discutir como tudo é controlado por essa estrutura estatal. O Estado é capaz de ocultar a realidade, aquilo que de fato ocorre, que é sua presença em toda a estrutura [de violência], das execuções sumárias aos jagunços no interior do país, até a estrutura de grupos de extermínio em todas as regiões, contornando esses grupos com as dimensões ilegais do tráfico de drogas, do roubo de cargas. Ou seja, são todas as dimensões que dão ganhos reais para estes grupos, todas as dimensões que passam por sequestro de pessoas até a degradação ambiental.

O que é o Brasil se não a expropriação de bens ambientais de tudo que está relacionado à violência desde o seu surgimento? O que é o Brasil se não uma grande plantation e uma grande mina de extração? Existem estes modelos de expropriação, o Estado por trás deles, ocultando-se sempre e identificando os que são os inimigos nacionais, os grandes inimigos a serem combatidos. Eles viram alvo das grandes buscas e os bodes expiatórios dessa estrutura como um todo enquanto ela é preservada.

A mesma coisa é reproduzida na América Latina em geral. O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, construiu uma das maiores penitenciárias do mundo, sem dimensão comparativa. Fernando Villavicencio, assassinado recentemente no Equador, queria reproduzir em seu país o discurso do presidente de El Salvador, na linha do endurecimento, de criar prisões, e foi morto. Atribui-se sua morte aos grupos armados que se opõem a estas ideias.

Dimensões deste tipo estão sendo disputadas pela extrema-direita e direita que crescem neste caldo. Como as desigualdades estão crescendo na América Latina como um todo, a dimensão dos grupos armados cresce e explode. A estrutura do crime organizado permeia isso tudo. Se as pessoas não são incorporadas econômica, social e politicamente, elas não são transformadas em atores políticos, econômicos e sociais, de modo que suas ações digam algo a esse mundo e elas sejam reconhecidas como seres humanos, capazes de trabalhar, de ter dignidade, de ter família e as dimensões de suas necessidades atendidas, a fim de se projetar como seres humanos que crescem, encontram na estrutura dos grupos armados uma possibilidade real.

Segundo sua explicação, o Estado e o crime formam uma simbiose, precisam um do outro para existir. A operacionalização deste esquema é feita pelo Estado?

José Cláudio Alves: Na década de 1980, os movimentos sociais e a sociedade como um todo, quando se defrontou com a ditadura, acabaram se unificando. Todos nós queríamos o Estado; era o nosso grande objetivo. Queríamos um Estado que respondesse aos nossos anseios, que nos desse a capacidade de resposta, que estabelecesse políticas públicas, leis. Só que demos uma capacidade imensa ao Estado – e ainda estamos lutando por aquele objetivo. Mas o ponto é que a situação não é mais tão simples, não é mais preto no branco. Existe uma grande contradição porque o Estado que financia a escola, o Sistema Único de Saúde – SUS, a segurança pública, é o Estado que negocia tudo isso com os grupos armados.

Vou dar um exemplo. Lula fez campanha eleitoral na Baixada Fluminense e foi parar no município de Belford Roxo, que é controlado por um miliciano notório, prefeito da cidade [Wagner dos Santos Carneiro]. Em retribuição à campanha eleitoral que Waguinho fez para Lula, o presidente deu o Ministério do Turismo à esposa dele, Daniela Carneiro [ela exerceu o cargo de 01-01-2023 a 14-07-2023]. Ora, essa é uma estrutura de um grupo criminoso organizado que tem toda sua hierarquia dentro da estrutura do poder estatal local, dentro de uma prefeitura, que passa a ganhar espaço na estrutura do Estado como um todo. Esses grupos estão baseados em uma estrutura que controla política, econômica e eleitoralmente a cidade a partir de um pesado jogo de interesses.

Em 2021, Waguinho uniu-se a Cláudio Castro, governador do Rio de Janeiro, montou um destacamento da polícia militar no 39° Batalhão. Em uma área onde o Comando Vermelho já estava atuando há mais de dez anos, fez-se um massacre; mataram mais de 30 pessoas e outras estão desaparecidas. Ali é o embrião de uma milícia que é tão escancarada, que ela não precisa nem montar uma estrutura à parte. A própria estrutura de segurança pública vira uma estrutura miliciana que controla os territórios. Foi nesta região que Daniela, do Waguinho, teve a maior votação para deputada federal, e Márcio Canella, que era vinculado à mesma estrutura, teve a maior votação para deputado estadual. Ambos tiveram mais de 54% dos votos da cidade.

Alguém pode perguntar se não quero a presença do Estado na região, trazendo benefícios para a população. Eu quero, mas existe a certeza de que o Estado miliciano resolverá a situação da população? Estas dimensões serão superadas? Não serão superadas. Precisamos entender que o Estado que nos dá escola, posto de saúde, água e esgoto é o mesmo que nos mata. A situação ficou muito mais complexa; é um jogo eleitoral e político. Aí vem o Lula. Ele faz um discurso, a prefeitura da Baixada Fluminense o apoia e, depois de eleito, ele tem que ajudar [os políticos que o apoiaram]. Com isso, qual projeto estamos fortalecendo e apoiando?

Tem que se distinguir, dentro do próprio Estado, quem é quem para poder fazer algum debate. Eu estou dizendo, concretamente, como a democracia – isso que chamamos de democracia – não tem nada de democracia. É uma realidade totalitária. Se eu me contrapuser a esse modelo e contestar a estrutura miliciana, estou morto. Conheço fontes que informam que os militares não foram retirados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai; eles continuam lá e os índios estão sendo liquidados da mesma maneira que estavam sendo antes [no governo Bolsonaro]. Ou seja, vive-se uma realidade política na qual o Estado, que vem de Lula, passa por Bolsonaro e volta a Lula – pouco importa – mantém uma estrutura de funcionamento extremamente violenta, desigual e que não consegue incorporar as massas populares que nunca foram incorporadas à sociedade.

Desde a ditadura esses grupos sociais continuam buscando sobreviver – sabe-se lá como – com políticas compensatórias, com todo tipo de bolsas, que não resolvem a estrutura de vida deles, enquanto a estrutura do crime organizado resolve. Grupos armados resolvem situações com grupos armados. Quando se mantém uma estrutura armada de poder ao longo do tempo em uma localidade, todos os interesses começam a se movimentar a partir deles: disputas familiares, disputas por terras, emprego, venda de gás, água, terrenos, áreas de lazer. A milícia controla tudo e começa a ser uma gestão de funcionamento de todas as esferas da vida humana; ela é totalitária. Aí vem Bolsonaro, vem Lula e pouco importa porque esses mesmos grupos continuam mantendo essa estrutura.

O quanto é possível compreender a estrutura que culminou na morte de Fernando Villavicencio, no Equador, a partir da mesma estrutura que existe no Brasil? Quais as semelhanças e diferenças?

José Cláudio Alves: No Equador, a situação tem a ver com o ocorrido após o governo de Rafael Correa. Há uma reação a Correa, uma reação que, muitas vezes, se mimetizou de correísmo. O governo de Guillermo Lasso, atual presidente, foi se transformando a partir de uma movimentação e modificação na Colômbia – que faz fronteira com o Equador –, que já convive há muito tempo com grupos armados, como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Farc, os paramilitares, e o pessoal dos cartéis. Na Colômbia, há um projeto de disputa com todo o envolvimento da estrutura política e militar estadunidense. Tudo lá é administrado pelo Departamento Americano de Entorpecentes [Drug Enforcement Administration – DEA], que, de certa forma, controla o jogo de interesses dos grupos armados. Eles interferem, matam, resolvem, segundo seus interesses, como é o caso do Pablo Escobar e vários outros.

Todo o tratado de negociação do término da estrutura de poder das Farc, e da incorporação dessa estrutura a uma dimensão de poder não mais de grupos armados naquela fronteira, abriu a disputa interna deste projeto como um todo na região. Isso faz com que inúmeros grupos, relacionados aos cartéis, que disputam dentro da Colômbia, entrem também no Equador porque o Equador não é só um território de passagem, ele é, a partir da sua economia, que foi melhorada e que passa a dar respostas em termos cambiais, um ambiente muito bom e importante para a estrutura do narcotráfico. Assim, o narcotráfico entrou no país.

Eis a grande diferença em relação ao Brasil: o país não vive o boom de uma disputa territorial e da entrada de grupos armados ligados ao narcotráfico porque a base brasileira já está estabelecida. No Brasil, o grupo que mais cresce não é mais o do tráfico, mas o dos milicianos, porque estabelece acordos com qualquer interesse. A milícia é tráfico de drogas, de armas, roubo de cargas, venda de qualquer coisa que podemos imaginar nos espaços urbanos, disputas territoriais. A milícia é um grupo mais complexo e é o que se expande no Brasil, enquanto no Equador tem, de fato, o vetor tráfico de drogas e cartel. Mas também não podemos olhar somente para o cartel e o tráfico de drogas nem olhar somente para a milícia e achar que é um grupo armado fora do Estado. Precisamos olhar o cartel e as milícias na vinculação com a estrutura do Estado.

Teria que ir ao Equador para analisar como a estrutura do atual governo favoreceu a entrada do narcotráfico e do cartel na estrutura política, como eles se aproximaram do jogo político e como serão decisivos nas eleições. A mesma coisa é preciso analisar no Brasil: como as milícias, o tráfico, grupos armados e a própria estrutura de segurança pública interferem diretamente nas votações, no controle territorial, econômico e político das regiões. Aí é possível perceber as diferenças, mas elas têm a mesma base estrutural de Estados colonizadores que foram colonizados e calcados na estrutura violenta, que usam a estrutura violenta de extermínio, de assassinatos, de mortes, ora visivelmente – como nos casos do Guarujá, Jacarezinho, Vila Cruzeiro, Itaguaí – quando interessa, ora não. Quando não interessa, fazem a matança permanentemente, constantemente, controlando os territórios.

Existe um número crescente de desaparecidos, dos quais não há dados, nem registro tampouco tipificação criminal. A polícia não registra esses casos no Registro de Ocorrência como desaparecimentos forçados, mas simplesmente como desaparecidos. Casos assim explodiram no Rio de Janeiro e ninguém sabe o que são, porque não existem dados, nem corpos nem crimes. Ninguém explica nada. Esse é o grande fenômeno. O terror alcançou outro patamar dentro destas regiões; é o que vemos agora. No Equador ainda não existe uma prática tão estruturada de desaparecimentos forçados. No México existe e é muito forte.

Na investigação do assassinato de Villavicencio, a polícia trabalha com a possibilidade de intervenção de grupos colombianos e mexicanos. Qual é a situação destes grupos?

José Cláudio Alves: O México talvez seja o lugar onde estes grupos estão mais consolidados. A fronteira com os EUA dá aos grupos mexicanos um poder absurdo, que de fato é o poder dos grupos que por dentro do Estado mexicano se beneficiam do tráfico. Eles querem controlar todo o acesso que vem da América Central para chegar aos EUA. Estar na porta do maior mercado consumidor de drogas do mundo, com o maior potencial de expansão, dá aos grupos mexicanos uma capacidade de resposta e percepção do teatro de operação das drogas, tanto pelo Pacífico quanto pelo Golfo, que são quase indistintos. Esses dois grandes caminhos estão sendo controlados.

A Colômbia e o México estão neste cenário desde sempre, com grupos armados, sem contar os grupos menores, como os que existem na Guatemala e em El Salvador, com a formação das “maras”, as gangues. Esses grupos estão se constituindo, talvez em menor escala do que os cartéis, mas também vivem dos ilegalismos, do tráfico de drogas, participam de grupos armados do tráfico de armas.

Voltando ao tema inicial da entrevista, você pode me perguntar se isso é a sociabilidade violenta. Direi que não. Isso é uma estrutura colonial de poder. Sempre foi. Falar que é violento é chover no molhado. Esses grupos se constituíram assim. A questão é descobrir como essa violência vai favorecer determinados grupos. Quem ganha com isso? Quem se perpetua? Quem terá mais controle, mais poder, mais dinheiro nesses territórios onde a violência é potencializada? Será Rafael Correa? Não foi. Será Guillermo Lasso? Não. Será Fernando Villavicencio? Não, ele foi morto. Esses cenários todos são disputados, são fluidos e podem ir para diferentes direções.

Se a morte de Villavicencio tivesse ocorrido no início da corrida eleitoral, um sucessor dele na campanha poderia ter se projetado e ser eleito? Bolsonaro ter levado uma facada no início da campanha eleitoral de 2018 potencializou sua candidatura em cima do debate sobre segurança e violência? Sim. Pode ser. Assim, cada grupo se aproxima desse cenário e extrai dele o melhor possível. Mas extrair política e votos dessas dimensões da violência disseminada de grupos armados não resolve o problema. Aproxima-se, faz-se um discurso e nada é resolvido – como Bolsonaro não resolveu e como acredito que Lula não resolverá porque essa estrutura permanece intocada. Ela é intocável porque dá projeção, voto e controle territorial para essas áreas como um todo e ninguém quer disputar com ela. Querem ter o apoio dela. Ou seja, estamos na mão desses grupos.

O que fazer enquanto sociedade? Aplaudir o Lulinha paz e amor? Já se aproximou o miliciano de Belford Roxo. Qual é o outro miliciano que irá se aproximar? Ou melhor, muitos não colocam essas figuras à frente. Colocam outras figuras, dão visibilidade para outros grupos e outros nomes, mas, na verdade, quem opera e controla nos territórios são estes caras. Ano que vem haverá eleições. Ganhará quem fizer o acordo com o pastor, com a igreja evangélica, com o miliciano.

Pelo que o senhor descreve, não é uma questão de extrema-direita, mas de situação.

José Cláudio Alves: Exatamente. Qualquer grupo que se aproxima, aceita e se reconhece nesta estrutura, pode crescer. A extrema-direita é mais original, mais escancarada e não fica contida; tem uma plataforma discursiva de matar, liquidar, trucidar, e vai nas estruturas mais simples da sociedade, onde existem grupos que sofrem mais a dimensão da violência, e diz que bandido bom é bandido morto. Ela estimula a dimensão do extermínio como possibilidade. O grupo da esquerda, não. É mais comedido. Os grupos de esquerda não vão falar assim, mas aparecerão abraçados com os caras, no palanque, darão cargos. Aí acontece o caso do Guarujá. Já chegou a 19 mortos na operação do Guarujá.

Paulo Vannuchi foi secretário especial dos Direitos Humanos no primeiro governo Lula. Quando ocorreu a chacina do Pan, no Alemão, em 2007, onde morreram 19 pessoas, numa operação policial com 1.500 homens sob a responsabilidade do governador Sérgio Cabral, que era próximo e aliado de Lula à época, Paulo Vannuchi mandou uma comissão especial de legistas ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos para fazer um laudo cadavérico dos 19 corpos. Descobriram que 73% das perfurações desses corpos ocorreram na cabeça e nas costas, o que sugere um fortíssimo indício de execução sumária.

Agora, Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos, representante das minorias assassinadas, vilipendiadas, maltratadas, por que cargas d’água não enviou uma comissão ao Guarujá para fazer o levantamento pericial de todas as mortes, para ver de fato o que está acontecendo? Não. Não se faz isso porque Tarcísio de Freitas é uma figura importante da extrema-direita e não se quer confronto. O que se quer é base no Congresso para ter base eleitoral. Como não há um desejo de confronto; silencia-se. Matam 19, fica por isso mesmo e ninguém vai fazer nada. A conjuntura vai sendo manipulada.

Se um grupo desses se perpetua na estrutura de poder do Estado, ele domina esse cenário e os acordos. Se estão matando o pessoal do Primeiro Comando da Capital – PCC, o PCC vai reagir e matar o pessoal da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar)? Não, o PCC mata a pessoa que criou a situação geradora da morte do policial porque o PCC quer manter os acordos com a estrutura de segurança pública para continuar funcionando no Porto de Santos, que é o maior porto de exportação de drogas para a Europa e para a Ásia. O PCC deixará que continuem matando quantos quiserem, desde que não alterem o negócio.

Hoje, a população vive na mão dessas estruturas. É o que acontece no Rio de Janeiro. Lula foi ao Complexo do Alemão e fez campanha. A direita diz que Lula é ligado ao tráfico de drogas. Mas aí acontece mais uma operação do governo Cláudio Castro nesta comunidade, mata não sei quantas pessoas, e vai se fazer alguma coisa contra? Não. Não se faz porque nada pode se contrapor aos interesses em fazer acordos para manter a estabilidade de governança. Precisa haver governança, governabilidade e, por isso, incorpora-se a esses setores.

Não dá para dizer que a esquerda e a direita são iguais. Elas são diferentes, têm práticas e discursos diferenciados, mas o que elas alteram em si, de fato, nas estruturas de poder nesses locais? Estão alterando algo de fato ou são maquiagens e dimensões limitadas para nos fazer acreditar em uma segurança, proteção ou direito que nunca tivemos e nunca iremos ter? Marielle Franco não morreu assim, acreditando que era uma vereadora favelada, negra, LGBTQIA+, que tinha uma representatividade, que estava acreditando e fazendo seu trabalho? Foi morta. Eu fui ao velório e continuo no Psol, mas o Psol não foi capaz de fazer nada; um desespero. E aí perguntamos: ninguém no Psol percebeu que ela corria riscos? Não, ninguém percebeu. Achamos que estamos em uma maravilha, na democracia, na maior democracia da América Latina, e se é assassinado.

Não vejo que estejamos em um cenário tão promissor. A esquerda sempre foi isso – acompanho o PT e ajudei na sua fundação – e compactuou e namorou com essas figuras. Não vou nem falar da Rede Globo, que sempre fez isso desde a primeira hora. O PT não, mas ele se aproximou e acabou investindo-se desta dimensão. O jogo político, o jogo comunicacional da mídia, da influência em torno dessa população, o controle territorial, econômico e político, tudo isso hoje nos conduz a um cenário muito mais complexo e difícil de lidar. Aí vemos as pessoas sofrendo. Eu não acredito nesse modelo. Vou elogiá-lo? Vão dizer que não fui chamado para o governo Lula. Nunca vou participar de uma estrutura dessas. Mataram a Mãe Bernadete. Há uma moção de repúdio ao assassinato. É bonito a mulher mãe de santo, quilombola... mas e aí, vai mudar a disputa territorial naquela região? Quem são os que estão do outro lado? Não estão todos envolvidos? Vai ter confronto com esses grupos ou continuaremos só fazendo moção de repúdio?

Patricia Fachin e João Vitor Santos são jornalistas do Portal IHU, onde esta entrevista foi originalmente publicada.

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