Correio da Cidadania

Uma visão medíocre da história

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Imagem: Joel Santos

A ditadura envenenou o Brasil e sua recuperação só poderá vir com história, memória, verdade e justiça. Que só existirá se as Forças Armadas descerem do pedestal.

Já sentíamos, todos, que durante o governo de Jair Bolsonaro se tramava um golpe militar. Mas uma série de iniciativas da Polícia Federal, em fevereiro de 2024, descortinou a prática de atos concretos nesse sentido. Muitos militares estavam de acordo em participar de um golpe militar, muitos outros tiveram notícia de que isso se tramava e se calaram, porém, não se conseguiu coordenar a iniciativa, provavelmente sabendo que ela não seria bem aceita por ninguém, especialmente pelos Estados Unidos. Segundo o ministro da Defesa, eles podiam dar o golpe, mas não quiseram. Assim, ficamos agradecidos. Será?

Essa atitude, plácida e acomodada, pode ser classificada de rasa como uma planície: não vê o que ficou para trás e igualmente não percebe o que pode vir pela frente. Pois quem não quer hoje pode querer amanhã. O que se deduz destas notícias é que os militares se creem tutores da ordem constitucional, portadores do condão de discernir o que é bom para o país e quando é bom.

Pensar que, se os militares não se movem para atacar, a resposta é também não se mover, é aposta alimentada por uma visão medíocre da história. É a aceitação de que o país pode continuar a ser tutelado pelas Forças Armadas, que vela pela manutenção da ordem e do progresso, desde que seus parâmetros não sejam ultrapassados. Tudo o que de longe encosta nessa inamovibilidade é considerado perigo.

Ficamos sujeitos a recadinhos no Twitter sobre a boa conduta. A sociedade civil não deve arriscar ultrapassar essa linha vermelha, costurada na ignorância do processo histórico brasileiro depois da proclamação da República. Pois as Forças Armadas não incorporaram ainda as modificações ocorridas desde a década de 1920, inclusive o papel das revoltas militares derrotadas e a modernização do país. A mentalidade dos militares está ancorada na defesa da Ordem e Progresso inscrita na bandeira.

Com essa prepotência imposta, os crimes de lesa-humanidade cometidos pela ditadura civil-militar instalada em 31 de março de 1964 – torturas, mortes, desaparecimentos – são esquecidos, anistiados, zerados, a abertura se processa sobre uma tábula rasa. Democracia nova em folha, sem passado. Portanto, para que recriar agora uma Comissão de Mortos e Desaparecidos se, como disse uma vez um general da reserva, eles já estão mortos e desaparecidos?

Qual é o resultado natural desse procedimento? A normalização da tortura, das execuções sumárias, dos desaparecimentos praticados em nome do Estado da ordem e do progresso. E como não se pode violar ao mesmo tempo os direitos de mais de duzentos milhões de pessoas, é preciso encontrar um alvo privilegiado dessas práticas. Que será encontrado na velha tradição escravista cuja ideologia permanece vigente.
Pobres, negros e favelados nunca foram tratados com a igualdade que sua cidadania estabeleceu desde a abolição da escravatura, porém, depois da experiência ditatorial, essa desigualdade veio a se concretizar em uma perseguição diretamente voltada contra eles, materializada em execuções sumárias e encarceramento em massa, com violações contínuas aos presos e também a seus familiares.

Ao instalar-se, a violência do Estado brasileiro trouxe consigo algo ainda pior: a naturalização dessa violência pela população brasileira, o velho e sempre renovado: “bandido bom é bandido morto”.

Hoje, ao mesmo tempo em que os governos, em todas as suas instâncias e cores partidárias, entronizaram a ideia de que combater “o crime organizado” é matar, é invadir os territórios da pobreza e fazer algumas dezenas de mortos, uma verdadeira segurança pública, baseada em investigação e planejamento é deixada de lado, exasperando as populações.

Essa banalização da violência é o veneno que a ditadura nos legou. Pois não se trata apenas de tolerar a violência do Estado, trata-se também de trapacear com a sua punição exemplar, de modo a indicar quem pode violar direitos. E é nesse processo que a impunidade com os crimes do Estado se instala, amortecendo qualquer sentimento de indignação com o sofrimento das populações pobres e negras, seja nos casos de execuções sumárias, seja em tudo o que se refere às prisões, aos presos, às presas e aos seus familiares.

A ditadura envenenou a sociedade brasileira, a sua recuperação só poderá vir com história, memória, verdade e justiça. Que só poderá existir se as Forças Armadas descerem do pedestal em que são colocadas.

Angela Mendes de Almeida, 85 anos, é professora aposentada de História pela PUC-SP. Foi presa política na ditadura militar, quando era companheira de Luís Eduardo Merlino, jornalista assassinado pelo regime. Autora, entre outros livros, de Revolução e Guerra Civil na Espanha (Brasiliense).

Fonte: A Terra é Redonda.

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