Correio da Cidadania

Gilmar Mauro, do MST: "É o Brasil que carrega o agronegócio nas costas, não o contrário"

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Gilmar Mauro, coordenação nacional do MST. Créditos: Divulgação/MST

A pesquisa Genial/Quaest divulgada no último dia 6 de março mostrou queda na popularidade do presidente Lula (PT), que saiu de 54% de aprovação em dezembro para 51%. Entre as razões que o instituto elencou para explicar os dados está a percepção de que a economia piorou. E mesmo que a economia tenha de fato melhorado, é preciso entender essa percepção: 73% dos entrevistados afirmaram que os preços dos alimentos explodiram no último mês.

Uma semana depois, na última terça-feira (12), foram divulgados os dados do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). A média de aumento nos preços dos alimentos foi de 1,12%. O problema é que os maiores aumentos foram registrados em itens populares e de amplo consumo. A cebola aumentou 7,37%, a batata subiu 6,79% e os preços do leite e do arroz registraram altas de 3,5% e 3,7%. E os valores já estão acrescidos da alta registrada em fevereiro. Na ocasião, a batata tinha subido mais de 22%, a cenoura 36% e o feijão carioca 7,2%.

Levando em consideração que nos últimos meses de 2022 o Brasil tinha 33 milhões de pessoas passando fome e metade da população em insegurança alimentar, é de se esperar que qualquer variação no preço dos alimentos mais básicos seja muito sentida pelas maiorias. É sobre esse contexto que a Revista Fórum entrevistou Gilmar Mauro, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

De acordo com o dirigente, não são apenas fatores climáticos os responsáveis pela alta dos alimentos, mas a própria ausência de uma reforma agrária, que traz consigo a subprodução de itens básicos; e, por outro lado, a ausência de políticas que estimulem o abastecimento do mercado interno. A própria Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que previa a manutenção de estoques para regular o mercado, está em vias de reconstrução após o sucateamento promovido durante o governo Bolsonaro.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Não é simplesmente a crise climática, mas também ela

Temos ingredientes de tipo sazonais, que são naturais e ocorrem em todos os tempos históricos, que é falta ou excesso de chuva aqui e acolá, uma entressafra, e assim por diante. É o caso da batata, por exemplo, que é um dos produtos que mais subiu, ou mesmo do tomate. Mas há muito mais.

Do ponto de vista estrutural, nós podemos destacar a questão climática, mas não a ‘climática sazonal’. Me refiro à crise climática propriamente dita, a causada pela ação humana e que está vinculada ao tipo de agricultura desenvolvida hoje no Brasil. De forma geral, o agronegócio tem criado e agravado a situação em que estamos chegando a um ponto de não retorno, como dizem os cientistas. O aquecimento global que se fala tanto, também é uma questão fundamental, porque vai incidir em como se trata a utilização das terras no país para além de influenciar de forma extrema nas variações sazonais.

Monocultura, latifúndio e exportação

O Brasil planta com agricultura em torno de 80 milhões de hectares, mas 66 milhões desses hectares são destinados a duas culturas: soja e milho. São 45 milhões de hectares para a soja e 21 milhões de hectares para o milho. Ou seja, de 80 milhões de hectares, a área com arroz não passa de 1,5 milhão e a área com feijão de 2,5 milhões de hectares. Para não falarmos de um monte de outros produtos como mandioca, café, algodão e assim por diante.

Além disso tem a criação de gado que está chegando a 150 milhões de hectares de área utilizada no país. Isso é um problema concreto e tem se avolumado nas últimas décadas, em que há uma diminuição no plantio do arroz e o feijão, e um aumento no plantio de soja e milho, que são duas culturas de exportação em grande escala, ou seja, do grande agronegócio.

O segundo problema que vai agravar a situação dos alimentos no nosso país são os preços. O arroz, por exemplo, tem quase 70% da sua produção no Rio Grande do Sul, e 60% da comercialização no Brasil é de uma empresa, do Grupo Camil.

Bom, você tem um terceiro aspecto, que é a lei Kandir, institucionalizada em 1996 durante o governo Fernando Henrique Cardoso, que isenta de pagamentos de impostos aos exportadores de commodities. Então quem produz para a exportação não paga impostos, é isento. E quem produz no mercado interno paga os impostos, inclusive se estiver produzindo comida.

Retomando o Grupo Camil, eles exportam arroz sem pagar impostos, e depois importam para abastecer o mercado interno. Claro que a conta não são eles que vão pagar.

O Brasil carrega o agronegócio, não o contrário

Há uma frase por aí que diz que o agronegócio carrega o Brasil nas costas. Mas na realidade é o contrário: o Brasil é quem carrega o agronegócio nas costas. Subsidiando o crédito agrícola. O governo Lula recentemente botou mais de 470 bilhões em créditos agrícolas. Trata-se de um recurso que todos os bancos têm colocado à disposição, e em todos os depósitos compulsórios do povo brasileiro. E o que o governo faz? Uma coisa chamada equalização das taxas de juros.

Ou seja, o banco não perde. O banco vai ganhar a taxa Selic, a taxa de juros, que o governo subsidia. Quem paga esse subsídio é o Tesouro. O Tesouro é de quem? É do povo brasileiro. Portanto, quem subsidia o crédito agrícola é o povo brasileiro.

Mas aqui tem uma distorção. Para a agricultura, a dita agricultura familiar, foram destinados 70 bilhões. Mas sabe quem pegou esses recursos? Um milhão de famílias. São os ditos ‘economicamente mais viáveis no campo’. E nós temos quase 4 milhões de pequenos agricultores, quase 4 milhões de famílias, que não acessam os créditos e não conseguem produzir.

E, do ponto de vista ideológico, são esses que não acessam os créditos os que votaram no Lula. Não aquele um milhão de beneficiários cuja grande maioria está ganha pelo agronegócio. Então nós temos uma dificuldade imensa com a pequena agricultura pobre no nosso país, que não tem acesso a crédito.

Colapso do agronegócio à vista

A lei Kandir isenta, como eu disse, os exportadores. Os pobres aqui não exportam. Quem exporta são os grandes do agronegócio. E há uma outra questão muito interessante.

Têm vários grandes players do agronegócio entrando na Justiça por perda de safra, entre outras razões. E nesse sentido nós corremos o risco, aqui no Brasil, de ter uma bolha especulativa financeira no agro. Ao estilo do que aconteceu nos Estados Unidos com a bolha especulativa do setor imobiliário. O que está ocorrendo no Brasil é que parte do agronegócio está entrando na justiça de primeira instância e ganhando grandes volumes de recursos.

Até o ministro de Agricultura esses dias estava assustado e pedindo para o Conselho Nacional de Justiça dar uma olhada nisso. Ou seja, eles ganham dinheiro sustentados pelo povo brasileiro e utilizam grande parte das terras do Brasil. Nós temos área suficiente para produzir um monte de comida nesse nosso país. Entretanto, seja por problemas estruturais ou políticos (mas que se transformaram estruturais ao longo do tempo) nós estamos nessa situação.

Eu vou dizer uma coisa aqui, muito tranquilamente: esse tipo de agricultura vai colapsar em dez anos. O agronegócio não se sustenta. Não tem sustentabilidade do ponto de vista econômico, do ponto de vista ambiental, e do ponto de vista social.

Respostas às altas dos preços dos alimentos

Tem que rever a lei Kandir. Não há outra alternativa, você tem que criar um ambiente propício que estimule a produção para o mercado interno.

A outra questão que é um problema histórico, não é parte do governo Lula, mas que ele herda e não resolveu ainda, tem a ver com os estoques reguladores da própria Conab, que no último período foi deslocada. Existiam estoques reguladores, ou seja, na entressafra ou por problemas climáticos, você tinha estoque para colocar no mercado.

Nós propusemos para o governo, logo no início, que fossem feitos os sacolões populares. A ideia é de criar uma perspectiva de subsídio para a população pobre desse país, especialmente os do CadÚnico. Mas essa proposta não foi adiante. Sabe quem está encaminhando ela aqui em São Paulo? O prefeito Ricardo Nunes. Parece que copiou a gente, viu? Abriu um armazém popular com 30% de desconto para quem está no CadÚnico.

Em nível nacional, uma alternativa seria criar subsídio, principalmente para a população pobre desse país. Você dá o desconto ao consumidor e subsidia o produtor. É preciso acabar com esses bilhões e bilhões em equalização de taxas de juros para o agronegócio. Por que não subsidiar o povo pobre para ter acesso a uma cesta básica mais diversificada com melhores condições?

Grande parte de crianças e adolescentes desse país não consomem frutas, legumes e verduras, e pouca proteína. Além do problema da falta de comida, você tem um problema de desnutrição.

Propusemos ao governo federal o investimento de R$ 15 mil por família pobre camponesa para que possam pagar pela boa alimentação. Não estamos pedindo de graça, o subsídio é para ele pagar em produção de alimentos. E isso não foi feito.

Emergencialmente tem que ter subsídio, principalmente para os pobres, e verificar o tema da importação. Mas, do ponto de vista mais do médio prazo, tem que investir na agricultura familiar, nos assentamentos, na pequena agricultura, com subsídio, para produzir comida. Assim dá para resolver, de fato, não só o problema da fome, mas também da desnutrição no nosso país.

Futuro de cara ao colapso do agronegócio

É preciso uma revolução na agricultura brasileira e do mundo. Ela é insustentável. O principal adubo, a composição química utilizada, é o NPK: nitrogênio, potássio e fósforo. Grande parte disso é importado, e o óxido nitroso liberado pelo nitrogênio é 300 vezes mais causador do efeito estufa do que a fumaça dos carros.

Poderíamos utilizar todo o lixo orgânico para se transformar em adubos, por exemplo, em gás, e assim por diante. Você imagina o consumo das grandes cidades. Essa revolução na agricultura precisa contar com bioinsumos, com agroecologia, com agrofloresta, com reflorestamento. Isso é um capítulo fundamental para nós termos sustentabilidade no futuro, para garantir a existência do ser humano no planeta.

Junto com isso, também é necessário pensar o processo de distribuição de terras. A reforma agrária está paralisada. E hoje, os principais produtos consumidos no planeta são soja, milho, trigo e arroz. A dieta alimentar planetária é fruto do controle dos grandes conglomerados econômicos internacionais, ou seja, é preciso desenvolver uma cultura alimentar muito mais ampla. Ela foi restrita, muito restrita, porque esses grupos controlam economicamente o que se chama de alimentação, que é essa comida que hoje vai à mesa praticamente do mundo todo. Sem reforma agrária que torne os alimentos saudáveis mais acessíveis, é difícil criarmos essa nova cultura alimentar.

Raphael Sanz é jornalista, editor do Correio da Cidadania e repórter da Revista Fórum, onde esta matéria foi originalmente publicada.

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