As operações Escudo e Verão da PM de São Paulo
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- LASInTec
- 07/05/2024
A burguesia decadente provocou a falência do Estado.
Os seus métodos requintaram-se, tornaram-se o apanágio
dos bandos formados pelas modernas ditaduras
dos fascistas ou dos gangsteres... Calar hoje é ser cúmplice.
Pratiquemos o crime inominável da coragem,
no meio da covardia e do cinismo da hora presente.
Maria Lacerda de Moura
Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital, 1935
Um massacre a conta gotas: em nove meses, somando operações Escudo e Verão de combate ao chamado “crime organizado”, deflagrada no porto da cidade de Santos (SP), são mais de 75 execuções. Média maior que os gols por jogo de qualquer artilheiro do Campeonato Paulista de Futebol (1). Não há abuso, estes são os usos e costumes da polícia em todo o mundo. Não há o que clamar à legalidade ou ao propalado controle civil da força letal do Estado. Estes são, em especial, os usos e costumes da PM Paulista, um verdadeiro exército em guerra contra uma parte da população, a parte preta, pobre e periférica. Esta é a função específica da R.O.T.A. (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) desde sua criação, em 1970. Se nos anos 1980 e 1990, o mote eleitoral de um eminente político da época, que foi governador do estado e prefeito da cidade de São Paulo, era “vou colocar a ROTA na rua!”, hoje, o atual governador se queixa do “assédio” que sofre de organizações civis de Direitos Humanos e Cortes Internacionais de Direitos Humanos que tentam impedir o trabalho de extermínio perpetrado pelo batalhão de elite da tropa de choque da Polícia Militar. E, ato contínuo à sua queixa, diz não estar nem aí (2).
Não há dissimulação, os elementos estão postos, qualquer cidadão paulista sabia o que Paulo Maluf (Partido Progressistas) queria dizer quando prometia a ROTA na rua. Na época, circulava nos meios populares o temor ao batalhão sintetizado na expressão: “mãe cria, a ROTA mata”. E todo cidadão sabe o que está falando Tarcísio de Freitas (Partido Republicanos) quando reage dizendo não estar nem aí para as mortes das Operações Escudo e Verão, porque é essa a missão de operações desse tipo. Embora possam ser motivadas por sentimentos de vingança da tropa pela morte de um colega de farda, elas não se resumem a isso, porque produzem e expressam uma política da polícia no Estado.
A função primeira da polícia, da ROTA e das Operações Escudo e Verão é matar de maneira sistemática e racional para produzir, de um lado, medo em uma parte das pessoas e, de outro lado, adesão de uma grande parte dos cidadãos paulistas. Não são atos de barbárie ou de excesso vingativo da tropa, tampouco apenas expressão de autoritarismo dos governos; elas respondem ao desejo de extermínio sentido pelos cidadãos-polícia e respondem ao cálculo político das democracias securitárias. As falas de Tarcísio de Freitas e o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina (desde 1992) confirmam isso. Esse é o nó mais difícil a ser desatado se quisermos realmente parar a matança e não apenas fazer dela um mote de disputa política em torno de uma pilha de cadáveres.
Embora não ostente a patente em suas campanhas eleitorais, Tarcísio de Freitas tem formação militar e experiência em compor equipes de extermínio dentro e fora do Brasil. Entre os anos 2005 e 2006, atuou como chefe da seção técnica da Companhia Brasileira de Engenharia de Força de Paz, pela MINUSTAH, missão da ONU liderada pelo Brasil no Haiti. Completa o time de matadores o atual Secretário de Segurança do estado de São Paulo, Guilherme Muraro Derrite, nascido em Sorocaba e capitão reformado com 16 anos de PM, tendo servido como oficial no 14º Batalhão da PM em Osasco, antes de entrar para ROTA. Ele, que tem acompanhado as incursões de caça no litoral paulista pessoalmente, chegando a transferir a sede da SSP-SP para Santos junto a cerca de 400 militares da Marinha e aparatos de guerra, como uma lancha blindada nomeada “Caveirão do mar” e um tanque de guerra usado durante a intervenção brasileira no Haiti (entre 2004 e 2017), com o objetivo de combater o chamado “crime organizado” (3).
Breve história da Rota e seu patrono
Antes de se tornar político – hoje é deputado federal reeleito com expressiva votação pelo Partido Liberal (PL) de São Paulo – o capitão da PM tinha fama de matador, que ostentava com orgulho. Derrite já havia cumprido uma legislatura pelo PP, quando foi eleito em 2018 para deputado federal. Além de obter sucesso pelo Youtube, é formado em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul, onde fez Pós-Graduação em Ciências Jurídicas, e é bacharel em Ciências Policiais e Segurança Pública pela Academia de Polícia do Barro Branco, instituição de ensino da PM paulista que forma os oficiais da tropa, o pessoal que irá seguir a estrutura de carreira militar que faz das PMs forças auxiliares do exército brasileiro.
Ainda na PM, onde ingressou em 2007, sua fama de matador frustrou a primeira tentativa de entrar para a ROTA, devido à contenção momentânea que a divisão sofria. Sua entrada no batalhão de maior prestígio entre as tropas só foi possível quando o Coronel Paulo Adriano Lopes Lucinda Telhada, hoje deputado federal suplente em exercício pelo PP de São Paulo, assumiu o comando da ROTA e convidou Derrite a integrar o batalhão de choque. Telhada entrou para a política ao ser eleito pelo PSDB, primeiro como vereador da capital paulista em 2012, e depois como deputado estadual nas eleições de 2014. O coronel, cujo filho também é policial e político profissional (Rafael Telhada, o “capitão Telhada”, deputado estadual pelo PP eleito em 2022 (4)) é uma figura de transição no perfil dos tradicionais políticos policiais que atuam no legislativo paulista.
Desde a redemocratização, pode-se falar de um verdadeiro partido da PM, que tem na ROTA sua principal escola de formação. O Coronel Telhada é o elo entre Roberval Conte Lopes Lima, mais conhecido como Conte Lopes, deputado estadual pelo PL, radialista e ex-Capitão da ROTA, e Derrite, um policial político da “nova geração” que fez fama pelo Youtube (5). Há diferenças e novidades, mas há uma continuidade de mais de três décadas de policiais matadores no legislativo paulistano (municipal) e paulista, no âmbito estadual e federal.
A História e a memória não são fatores determinantes para o presente, mas são referenciais importantes para a compreensão do que vivemos hoje. Paulo Maluf, já em regime democrático, prometia a ROTA na rua para angariar votos. Antes, quando foi governador biônico de 1979 a 1982 (empossado pelo regime civil-militar instalado pelo golpe de 1964), se notabilizou por presentear com um Volkswagen Fusca a policiais que executassem “criminosos”. Derrite é da ROTA, Telhada é da ROTA, Conte Lopes é da ROTA. Tarcísio de Freitas é militar, sua figura e trajetória é a mais alta expressão do burocrata armado, a ponto de ele nem precisar ostentar sua origem militar. Ele expressa um tipo de atuação política dos profissionais da segurança que não se restringe à temática da Segurança Pública ou está voltada apenas à defesa dos interesses corporativos de policiais e outros agentes de segurança.
Quando uma figura como ele galga postos executivos, como o de governador do estado, sem vincular sua campanha à patente militar e se pauta em discurso de competência técnica em gestão e logística (6), ele, assim como Derrite, indica uma nova fase da atuação política de burocratas armados e profissionais da violência que imprimem na representação não o interesse específico na segurança, que desde Maluf e Conte Lopes é uma máquina de fazer votos, mas a gestão securitária da democracia pelos meios da representação democrática.
O policial e o militar vêm se tornando políticos profissionais não apenas para defender interesses específicos da corporação ou para lidar com temas de segurança pública, mas para promover a gestão policial-militar como a melhor forma de conduzir todos os assuntos da máquina estatal. Já passamos do tempo de ver políticos policiais e militares atuando nas legislaturas (e em cargos executivos) como resquícios ou traços de continuidade do regime civil-militar de 1964-1985.
Eles aprenderam a jogar o jogo das representações democráticas e se apresentam como os democratas juramentados do momento, pautados na legitimidade conferida pelas urnas e pelo clamor popular que as medidas de lei e ordem possuem em meio à maioria dos cidadãos. O policial político é a expressão institucional do desejo do cidadão-polícia em uma democracia securitária.
Embora seja descrita como uma tropa de elite, a ROTA é mais precisamente o Primeiro Batalhão de Choque da PM de São Paulo, criada para o patrulhamento ostensivo de áreas que são estatisticamente localizadas como de maior incidência de ocorrências criminais. O nome do batalhão homenageia Rafael Tobias de Aguiar, latifundiário e político paulista, nascido no final do século 18, na mesma Sorocaba onde nasceu Derrite. Tobias de Aguiar era filho de militar e ostentava a patente de Brigadeiro. Foi uma importante liderança do movimento liberal paulista no século 19, destacando-se na Revolução Liberal Paulista de 1842, sendo preso e “exilado” na Província da Bahia pelo então Imperador dom Pedro II, no mesmo ano em que se casou com a amante de Pedro I, Domitila de Castro Canto e Melo, a conhecida marquesa de Santos.
Tobias de Aguiar teve 4 filhos com Domitila, mas após 4 anos se separou porque ela teve um filho com outro homem. Antes da prisão e da desilusão amorosa, foi nomeado presidente da província de São Paulo, em 1831, quando criou a Guarda Municipal Permanente. A formação dessa guarda é miticamente narrada como ato de fundação da PM paulista, o que não se verifica na história, pois a PM como conhecemos hoje deriva das missões francesas de formação de guardas do começo do século 20 (7). Ele voltaria a comandar o estado de São Paulo em 1840.
Segundo a própria PM, a criação da ROTA foi motivada pela “necessidade” de um batalhão especializado para combater grupos guerrilheiros e terroristas que lutavam contra o regime militar, em 1970.
Com mais de 50 anos de existência, a PM atribui à ROTA as funções de “combate ao crime organizado”, “resposta imediata a situações críticas”, “preservação da ordem pública”, “contenção de conflitos”, “patrulhamento ostensivo”, “prevenção e educação”, “resposta a desastres”, “atuação humanitária”, “atendimento a ocorrências especiais”, “apoio em operações de grande escala”, “combate ao terrorismo”, dentre outros atributos. A companhia também se gaba de ter um “treinamento de alta qualidade” e de utilizar tecnologia de ponta para executar suas operações, seja em termos de tecnologias de informação e comunicação, seja em termos de veículos, equipamentos de proteção e armamento de alto calibre e poder letal (8). Em resumo, se desde a formação das forças públicas, na Primeira República, até os dias de hoje, as PMs podem ser descritas como pequenos exércitos estaduais, a PM de São Paulo é o maior desses exércitos, o qual, durante a ditadura civil-militar, criou uma tropa de combate especializado para eliminação de qual fosse o inimigo interno da vez: a ROTA. E aqui podemos voltar às Operações Escudo e Verão.
Ditadura militar
Na chamada Nova República, após a Constituição de 1988, os massacres e chacinas promovidos pela PM paulista são regulares. Não teríamos espaço suficiente para listá-los aqui, mas tomando como referência o Massacre da Casa de Detenção do Carandiru, em 1992, é possível destacar uma série dessas incursões matadoras. Pelos nomes o leitor(a) pode lembrar: Castelinho, Maio de 2006, Pinheirinho, Chacina de Osasco e Barueri, Paraisópolis etc. e etc. A questão aqui, tomando como mote os efeitos das Operações Escudo e Verão, é verificar em que ponto se encontra a política da polícia e como são insuficientes os debates, análises e propostas que tomam o volume de execuções em curso como excessos da corporação ou mera vingança da tropa, os quais demandam algum tipo de controle civil e atos de responsabilização orientados pela defesa dos direitos humanos e referenciados em organizações e cortes internacionais.
Há uma quantidade considerável de informações sobre as operações (ao final desse texto deixaremos uma lista de matérias da imprensa sobre isso), mas a forma de atuação e as reações de políticos (governador, secretário de segurança e membros do legislativo) estão inscritas na própria instituição, são sua identidade e substância, e por isso não há outra forma de parar o massacre que não seja colocar a urgência da abolição da polícia. Menos que isso nos fará voltar em breve para fazer as críticas a uma nova operação, que produzirá mais uma pilha de cadáveres e mais um tanto das mesmas críticas e acionamento de dispositivos judiciários nacionais e internacionais, até que outro massacre se produza, e assim sucessivamente. Um ciclo que se tornou padrão entre polícia, governo, judiciário e o que se chama de opinião pública. Quem acompanha de perto a questão sabe que tem sido assim nos mais de trinta anos de democracia e Nova República. A partir do Massacre do Carandiru, encontrou-se os meios de humanizar e expandir os controles penais e policiais referenciando-se nos direitos humanos, formando assim, o que Adalton Marques nomeou como o “tríptico segurança pública – democracia – direitos humanos (9)”. E isso está inscrito na instituição e se renova e amplia a cada nova operação espetacular.
Comecemos pelo patrono da ROTA. Voltando a Tobias de Aguiar, tratava-se de uma figura típica do liberalismo paulista: latifundiário, militar e católico, amigo do padre Diogo Antônio Feijó, com anseios descentralizadores no que diz respeito aos interesses da oligarquia local, mas com relações literalmente maritais, ainda que tumultuosas e eivadas de traições com o centro do poder Imperial, seja com Pedro I ou II. Projetado como figura histórica mítica, é louvado pela liderança e bravura na defesa dos interesses das oligarquias locais, chegando a organizar tropas voluntárias para combater os conservadores pró-Portugal. Escravocrata, latifundiário e militar do interior paulista, quando a cidade de São Paulo ainda não havia se tornado o centro econômico do país, é descrito como mártir liberal da independência e da livre iniciativa, um capitão de exército que juntou tropas para lutar contra a coroa portuguesa. Tobias de Aguiar é a atualização, no século 19, do bandeirante paulista. A escolha de sua figura como patrono da ROTA não é aleatória e casa muito bem com a missão dessa uma tropa especial da PM criada no início da década e responsável pela mais brutal da repressão perpetrada pela ditadura civil-militar.
A ROTA é criada meses depois da formação da Operação Bandeirante, a Oban, instituída pelo exército brasileiro em 1969, no quartel da Rua Tutóia, nas proximidades do Parque do Ibirapuera, com vista ao Monumento dos Bandeirantes, conhecido como estátua do empurra-empurra, em São Paulo. A Oban pode ser vista como o instrumento específico do regime civil-militar para a realização das técnicas e táticas de contrainsurgência. Estas táticas foram desenvolvidas por militares franceses, como Roger Trinquier e David Galula, nas incursões do Estado francês em guerras coloniais contra os movimentos de libertação na Indochina (1946-1954) e na Argélia (1954-1962).
Seguindo as recomendações dos manuais franceses do que será conhecido como “guerra não-convencional”, a Oban combinava ação política referenciada em quadros analíticos da ciência política liberal estadunidense, como a teoria dos jogos e a teoria dos sistemas, com incursões militares de captura, extração de informação e neutralização de inimigos combatentes. Essa perspectiva francesa da contrainsurgência irá informar tanto os militares estadunidenses quanto os latino-americanos no combate aos classificados como inimigos internos no contexto internacional da Guerra Fria.
No próximo Boletim, o LASInTec abordará especificamente a produção da contrainsurgência no Brasil ditatorial e sua atualidade, porém, destacamos dois princípios desse tipo de ação militar/policial que são importantes para olhar a Operação Verão: a necessidade de centralização dos elementos políticos e militares, e a importância da estratégia de empreender uma guerra psicológica. Para efetivar esses dois princípios são necessárias tanto operações discursivas-comunicacionais quanto ações de confronto letal com efeito espetacular.
Militarismo no estado democrático
Voltemos à Oban e à criação da ROTA. Informada pelas técnicas francesas, a Oban terá a seguinte composição: será liderada por oficiais do exército, formada por recrutamento de policiais (civis e militares) com destacada atuação de confronto com letalidade e financiada por empresários. A Oban será o laboratório para criação, em todo o país, dos DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operação de Defesa Interna), durante o governo Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).
Duas informações importantes sobre a Oban e os DOI-CODI: não eram destacamentos propriamente ilegais, pois foram instituídos por ato de governo em meio ao que se tratava juridicamente como um regime de exceção (após a promulgação do Ato Institucional No. 5, em 13 de dezembro de 1969), mas atuavam de forma extraoficial, com uma ampla margem administrativo-burocrática para captação de recursos e criação de centros clandestinos de tortura. Sua forma híbrida (político-militar-policial-empresarial) respondia às instruções da chamada guerra não-convencional, baseado no diagnóstico de que o inimigo era interno e lutava de forma não-convencional.
Essa autonomia relativa dos destacamentos como o DOI-CODI implicava, por exemplo, poder recrutar civis como pequenos ladrões para fazer o serviço sujo e até empresários e médicos que acompanhavam as sessões de tortura. Dando nome aos bois, a Oban era chefiada por oficiais do exército, como o comandante Carlos Alberto Brilhante Ustra, que promovia operações regidas por policiais matadores, como o delegado, fluminense de Niterói, Sérgio Fernando Paranhos Fleury, que liderava esquadrões da morte com policiais civis e militares. A Oban era financiada por empresários que se reuniam em torno da FIESP (10).
Havia também figuras que transitavam entre a formação militar, a atuação política e as ações policiais que compunham a Oban, como Antônio Erasmo Dias, nascido no interior de São Paulo, que era oficial do exército, historiador formado pela USP e atuou como político em partidos como a ARENA (1967-1979), o PDS (1980-1992), o PPR (1993-1995) e o PP (1995-2010). Em 1977, Erasmo Dias era secretário de segurança pública do estado de São Paulo quando comandou a invasão da PUC-SP para atacar um congresso da UNE (União Nacional do Estudantes). É nesse contexto que a ROTA é criada e essas são as referências que animam a formação de oficiais no Barro Branco da PM paulista, hoje devidamente reconhecida como instituição de formação acadêmica em Ciências Policiais.
Nas entrevistas de Derrite, um homem relativamente jovem para o cargo, com 38 anos, ele fundamenta seu conhecimento na questão de Segurança Pública por ter sido policial e conhecer “a realidade das ruas”. Apesar do ineditismo de ter um oficial da PM à frente da SSP-SP – o mais comum era nomear integrantes do judiciário como Procuradores para não melindrar as polícias (civil e militar) – Derrite se mantém há mais de um ano no cargo e não dá sinais de desgaste político. Pelo contrário, reiteradamente é elogiado pelo chefe, Tarcísio de Freitas, e goza de relativo prestígio em setores da mídia e camadas expressivas do eleitorado paulista.
Isso se dá, sobretudo, pelo apelo midiático que o chamado combate ao “crime organizado” possui e pela habilidade que um policial-político-youtuber tem de jogar com isso. Existem muitos trabalhos acadêmicos que mostram como o aparelho de contrainsurgência criado no Brasil do milagre para combater o inimigo interno personificado na figura do guerrilheiro subversivo se manteve funcionando. Mas agora, em tempos democráticos, ele funciona para combater um outro inimigo interno: o criminoso ou o que será classificado como delinquente (11).
Nos mais de 30 anos de pesquisas que partiram dessa premissa plenamente demonstrada, acreditou-se que a ampliação de dispositivos jurídicos democráticos, a atenção com os protocolos de direitos humanos em matéria de segurança pública e a criação de órgãos de controle civil como as ouvidorias de polícia, somados a uma formação democrática das polícias, levariam à transformação da orientação de combate das polícias em uma política de segurança pública democrática e orientada pelos direitos humanos. Essa perspectiva fomentou um gigantesco mercado político de formação e produção de pesquisa, público e privado, nacional e internacional.
No entanto, para além do que foi indicado acima como efeito de humanização e expansão dos controles penais, das polícias e da segurança pública, o que vemos hoje na dupla Tarcísio-Derrite é uma atualização das formas democráticas de contrainsurgência que se expressa nas ações como as Operações Escudo e Verão e tudo que elas mobilizam. Para além de serem insuficientes, a retórica em torno da necessidade de formação em direitos humanos para os policiais, praças e oficiais, e as soluções em torno de controles civis e judiciários, hoje, produzem ambiguidades e alimentam a continuidade de uma polícia matadora.
Além de funcionarem como mote para criação e/ou ampliação de mais polícias, alegando que ao estar a serviço da democracia (como se saúda a Polícia Federal hoje) ou serem criadas em contexto democrático (como a Força Nacional de Segurança, no Decreto nº 5.289/2004), estariam descoladas dessa herança ditatorial. Os que alegam isso esquecem, ou fingem esquecer, que polícia é polícia, seja qual for o regime em vigor.
Em tempos democráticos os profissionais da segurança gozam de enorme autonomia e operacionalização, independente da forma jurídica do regime. Isso se dá, sobretudo, porque o imperativo da segurança, em suas várias formas (Defesa, Segurança Pública, combate ao terrorismo, emergências humanitárias, guerra às drogas, combate ao crime etc.), se impõe como demanda popular, antes mesmo de tomar a forma jurídica da exceção ou a forma política da securitização. Em regimes democráticos, a segurança se destaca como principal desejo dos cidadãos, fazendo com que essas democracias possam ser adjetivadas como securitárias e a conduta desses cidadãos se caracterize como uma conduta policial. Portanto, o que temos diante dessas operações não é apenas a reminiscência de um passado ditatorial, mas a atualização das formas, táticas e técnicas de contrainsurgência por parte desses profissionais que, em países do sul global como Brasil, somam-se aos elementos coloniais e escravocratas de seu histórico sócio-político.
Polícia e política
Quando olhamos para operações como a Escudo e Verão e como há todo um ecossistema comunicacional em torno delas, verificamos a mobilização dessas tecnologias de contrainsurgência operando. Não se trata exatamente de combate à criminalidade, mas de controle político-militar-policial da massa de cidadãos envolvidos ou não envolvidos com a ação. Para os alvos presumidos da ação, trata-se de criar terror físico e psicológico; para o restante, trata-se de ganhar corações e mentes para a causa que, hoje, se condensa no combate ao chamado crime organizado em nome da lei e da ordem.
Isso se justifica pela forma como a contrainsurgência aplica sua divisão da sociedade, partindo da premissa de que toda sociedade é um campo de batalha político-militar. Há uma minoria ativa que deve ser neutralizada (no caso atual, o que se constrói como crime organizado); uma grande maioria que se encontra passiva e que deve mostrar adesão à causa do combate ao crime; uma minoria ativa que faz efetivamente a guerra contra os elementos que devem ser neutralizados: os policiais em operação. A guerra não acabou, ela se generalizou como condição permanente da sociedade e, em regimes democráticos e de intenso fluxo comunicacional, ela torna a própria condição da política que se faz como guerra discursiva permanente, com sazonais incursões letais para alimentar esse quadro de divisão da sociedade.
Os efeitos políticos dessa tecnologia de governo das populações em regimes democráticos são a separação, feita no front de combate pelo policial, entre bandido e cidadão de bem, a manutenção do objetivo final (sempre inexequível) de derrota final do crime e da criminalidade e o efeito de gestão governamental de uma ordem social viável e mantida pelas armas. São os meios pelos quais se promete uma vida segura. A diferença em democracias é que o objetivo estratégico de ganhar corações e mentes para a causa do combate ao crime se torna central, o que explica a conduta espetacular de políticos e o engajamento direto de policiais no front comunicacional. No caso das operações Escudo e Verão em curso, ela é comandada politicamente por um militar, Tarcísio de Freitas, que, apesar de carioca, representa as elites latifundiárias do interior paulista, operacionalizada por um policial, Derrite, e conta com um imensurável ecossistema comunicacional que faz com que até mesmo setores da população que são virtuais alvos das ações de execução as apoiem entusiasticamente.
Nesse ponto está o nó a ser desatado: encarar o fato de que o cidadão-polícia nas democracias securitárias deseja e aplaude incursões assassinas como as operações Escudo e Verão. A ponta desse nó está nos dispositivos de segurança. Não se trata de criar controles civis ou regulá-los segundo protocolos; sem a desativação deles, a guerra vai seguir, haja vista serem eles mesmos os produtores da violência. É por isso que falamos de abolição. As reformas, os monitoramentos (de câmeras ou de ONGs) e o propalado controle civil são, hoje, os meios de atualização deste software da contrainsurgência.
Se há disposição, de fato, em estancar o derramamento de sangue que as operações produzem, só se pode falar em abolição da polícia, ainda que essa proposição incomode os ouvidos dos profissionais da democracia que fazem das reformas penais e policiais um grande negócio e seu meio de vida.
Notas:
1) A contagem de corpos depende de como se agrupam os dados relativos a cada operação específica. Oficialmente, são duas operações deflagradas em momentos distintos. A operação Escudo iniciou-se em 28 de julho de 2023, como resposta à morte do PM da ROTA Patrick Bastos Reis, e teve duração de 40 dias. Neste período, a Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo (SSP-SP) contabiliza, com a operação encerrada, 28 execuções de suspeitos. A Operação Verão teve início em 3 de fevereiro de 2024 e até agora contabiliza 47 execuções. G1 Santos. “Operação Verão é 60,7% mais letal do que Operação Escudo no litoral de SP”, 16/3/2024.
2 ) A fala de Tarcísio de Freitas dizendo “não estou nem aí”, que se poderia chamar a ONU ou a Liga da Justiça, que as operações (e execuções) iriam seguir, é uma reação à iniciativa da Defensoria Pública do estado, junto aos Institutos Conectas e Vladmir Herzog, que pediam à ONU o fim da operação. G1 SP. “Defensoria e entidades pedem à ONU o fim da operação policial na Baixada Santista e o uso de câmeras corporais”, 16/02/2024.
3) Estadão. “‘Caveirão do mar’, tanque do Haiti e cães de faro: como Marinha caça drogas no Porto de Santos”, 19/03/2024.
4) Vale lembrar que Rafael Telhada, quando ainda fazia parte do COE (Comando e Operações Especiais de São Paulo), ganhou as manchetes nacionais em 2019, após executar, junto a outros quatro policiais, Djaedson Robson da Silva, na cidade de Osasco. Na ocasião, o corpo do jovem de 23 anos – morto com quatro tiros – foi removido pelos policiais e a Polícia Civil não solicitou uma perícia no local da execução. Telhada, que foi promovido de tenente a capitão poucos meses depois do ocorrido, celebrou a execução de Silva no Instagram, ao publicar: “(...) Graças ao bom Deus, todos os guerreiros do COE estão bem. Cf. Ponte Jornalismo. “A caveira sorriu mais uma vez”, 2019.
5) Sobre essa “nova fase” de atuação política dos policiais políticos, em especial da trajetória de Derrite, ver Nicole Nascimento Santos. “Policiais Youtubers no Estado de São Paulo: a cultura policial nas mídias sociais e as políticas de segurança pública”. TCC em Ciências Sociais. São Paulo: UNIFESP, 2022.
6) Além de ministro da Infraestrutura do governo Jair Bolsonaro (2019-2023), Tarcísio de Freitas também foi Diretor-Geral do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes da administração Dilma Rousseff, entre 2014 e 2015.
7) Sobre essa história, ver José Eduardo Azevedo. “Governamentalidade, especialização e profissionalização da polícia militar de São Paulo no século XX”. In: Revista LEVS/Unesp-Marília Ano 2010 - Edição 5 – Número 05 Maio/2010.
8) No site oficial da ROTA, é possível ter algumas informações, embora o layout seja horroroso. No entanto, uma breve busca na internet te leva a uma infinidade de sites, histórias e panegíricos da corporação como um todo e da ROTA em especial. Destacam-se os inúmeros canais de Youtube com entrevistas, vídeos de operações, comentários e histórias na maioria produzidos pelos próprios policiais. Não iremos reproduzir os links aqui, mas após perder um certo tempo vendo esses vídeos e lendo esse material é pertinente destacar três pontos: 1) o esforço em ganhar corações e mentes para a corporação, o que pode ser avaliado como exitoso porque a audiência é gigante, com milhões de visualizações; 2) os elogios rasgados à truculência e ao terror psicológico como modo de ação da ROTA (há longas digressões sobre como os policiais olham para um suspeito para arrancar a verdade dele) e condição de eficiência, inclusive com os policiais usando o que poderia ser classificado por eles mesmos como “linguagem de bandidos”; 3) os vídeos registram uma série de violações de direitos humanos gravadas e transmitidas pelos próprios policiais e seguem circulando sem maiores contestações. Uma conclusão provisória, após essa análise, é que essa comunicação “não oficial” é uma política da corporação, hoje ela faz parte do trabalho da PM, ainda que não seja uma designação direta de chefia. Não é fortuito que o Secretário de Segurança Pública seja um PM youtuber. E a querela em torno das câmeras corporais revelam a importância para a corporação em controlar a narrativa desses vídeos de exaltação da tropa.
9) Adalton Marques. Humanizar e expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo. São Paulo: IBCCRIM, 2018, pp. 13-31.
10) Sobre isso ver o documentário de Chaim Litewski, “Cidadão Boilesen”, de 2009.
11) Sobre isso, ver em especial o trabalho de Cecília Maria Bouças Coimbra. Guardiões da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “Milagre”. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.
O texto é a edição de março do Boletim do Laboratório de Análise Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (LASInTec), produzido por grupo de pesquisadores da Unifesp.
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