Tragédia intelectual e ideológica é anterior e agrava a catástrofe ambiental no RS
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- IHU/ Baleia Comunicação
- 03/06/2024
Não há dúvidas de que o Rio Grande do Sul precisará ser reconstruído. O inventário da devastação ainda está por ser feito, sobretudo porque ainda não baixaram todas as águas e centenas de milhares de pessoas continuam longe de casa. Os professores de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS estimam investimentos da ordem dos R$ 150 bilhões nos próximos anos.
“Quando pensamos nesses números grandes pensamos em ‘gasto’; sim é verdade, são gastos, e temos de pensar como financiar esse gasto. Mas o que esse gasto cria ali adiante? Pode criar uma infraestrutura melhor, mais moderna e resiliente, empresas mais eficientes, capacidade logística melhor, que podem garantir no futuro que a economia cresça mais”, explica André Moreira Cunha, professor e pesquisador da UFRGS, em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
A projeção do pesquisador é muito mais robusta do que foi até agora anunciado pelo governo gaúcho, com uma visão de curto prazo e com uma mentalidade de “tapa buraco”. “Se ficarmos na ‘operação tapa buraco’, o que o governo tem sinalizado pelos números estimados, pela falta de uma reação estratégica e contundente, até agora, continuaremos vulneráveis. No Vale do Taquari, as estruturas foram reconstruídas com esse tipo de ‘operação tapa buraco’ e o que aconteceu pouco mais de seis meses depois? Tudo foi destruído de novo”, recorda.
A falta de visão estratégica e vulnerabilidade do RS não é mero acaso, mas resulta de uma incapacidade de planejamento de longo prazo ocasionado com o desmonte de estruturas de inteligência fundamentais. “O Estado tinha uma capacidade para isso e desmontou, que eram as fundações, como a Fundação de Economia e Estatística – FEE e outras, e desmontou por razões ideológicas. Boa parte dos servidores seguem trabalhando no Estado, só que desviados desta missão nobre de serem centros de excelência para pensarem aspectos do Estado”, ressalta Cunha. “Não faltam recursos humanos qualificados, mas falta visão de futuro e liderança política; isso tem de vir dos atores políticos”, complementa.
Embora o desafio dos recursos financeiros não seja pequeno, quando observamos os vultuosos valores destinados à amortização de juros do agronegócio, percebemos que a questão não é financeira, mas política. “Se olharmos os subsídios do governo federal, que são chamados de gastos tributários, eles são da ordem de 5% do PIB brasileiro, o que equivale a mais de R$ 500 bilhões por ano e o maior beneficiário individualmente é o agronegócio, por meio do subsídio de juros”, demonstra o entrevistado.
Quanto ao futuro, por outro lado, cabe à sociedade fazer sua escolha. Dobra-se a aposta e segue-se confiando no discurso negacionista ou se encara o novo regime climático global em sua complexidade. “Não sabemos qual vai ser a crise do amanhã. Mas sabemos que temos de ter alguma instituição dentro do Estado que não fique no dia a dia da gestão para apagar incêndios. Essas pessoas vão estar permanentemente articuladas, analisando os vetores de risco, verificando oportunidades, para quando ocorrer uma crise, saber mobilizar”, frisa o pesquisador.
André Moreira Cunha (Foto: UFRGS)
André Moreira Cunha é graduado em Ciências Econômicas pela UFRGS (1992), mestre em Ciências Econômicas pela Unicamp (1995), doutor em Ciências Econômicas pela mesma instituição (2001) e pós-doutor pela Universidade de Cambridge (2012). Leciona no Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS. Pesquisador do CNPq (desde 2005) e coordenador adjunto da Área de Economia na CAPES (desde 2015). Professor visitante na Universidade de Leiden (Holanda, 2006) e pesquisador associado do Centro de Estudios Brasileños del Instittuto Universitario de Investigación Ortega y Gasset (Espanha, 2004-2013). Foi professor da Unisinos (1995-2003) e assessor da diretoria do BRDE (1999-2003).
Confira a entrevista.
O RS continua debaixo d’água. Ainda vai demorar para a enchente baixar e fazer um inventário de todos os danos. Contudo, o que já é possível estimar de investimentos que serão necessários?
De fato, nesse momento, várias pessoas estão tentando fazer algum tipo de estimativa. O governo estadual inicialmente falou em um número de 19 bilhões de reais para a reconstrução. Outras estimativas estão bastante acima disso. Eu mesmo tenho trabalhado com um número que não tenho convicção que será o número final, porque ainda não temos como avaliar todos os estragos, e que é parte de uma estimativa do estoque de capital do Rio Grande do Sul.
O estoque de capital representa nossas infraestruturas: estradas, pontes, usinas que geram energia e distribuem, a parte física das empresas – máquinas e equipamentos –, as residências nas quais moramos, os estoques de matérias-primas de produtos que estão nas empresas. Esse estoque de capital, a estimativa que nós temos para o Brasil, a partir dos dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, a preços de 2023, está na casa dos R$ 20 trilhões. O Rio Grande do Sul tem pouco mais de 7% desse estoque, outra estimativa que nós temos ali na Faculdade de Ciências Econômicas – UFRGS. Isso nos permite estimar que o estoque de capital do Rio Grande do Sul é cerca de R$ 1,5 trilhão.
Desse estoque, a pergunta é: o que foi comprometido e o quanto foi comprometido? É isso que teremos de saber quando tivermos condições de avaliar. Se nós imaginarmos que 10% desse estoque foi comprometido, precisamos saber o que precisará ser reconstruído das estradas, das pontes, quantos imóveis foram perdidos e precisarão ser reconstruídos do zero, fábricas, máquinas em funcionamento ou não etc. Se 10% disso tiver que ser, de alguma forma, ou reparado ou reconstruído, estamos falando de uma conta que pode chegar a 150 bilhões de reais. Nota: eu estou falando que pode chegar. Isso é reconstrução.
Contração do PIB
Outra questão é a perda de renda no curto prazo. A perda de renda no curto prazo é um fluxo. O estoque de capital é o estoque. O que é esse fluxo? As pessoas que perderam ou talvez percam seus empregos, ou pessoas que perderam seus negócios ou estão inviabilizados, os produtores agrícolas ou o que iam colher ou os produtos que já estavam colhidos e armazenados, as empresas que não estão conseguindo produzir e o comércio que não está podendo operar normalmente. Tudo isso vai gerar uma contração do PIB, da renda, que terá um impacto muito forte nesses meses. Nós só vamos conseguir enxergar mais adiante quando tivermos as estatísticas. Isso vai implicar na injeção de recursos, que já vem acontecendo.
O governo federal está atento e atuando, o governo do estado menos, até porque tem menos recursos. Ainda não há uma estimativa muito clara de quanto vamos precisar de recursos, mas basta imaginar que nesse momento tem 250 mil pessoas fora de casa, em abrigos, sem condições de gerar renda. E outras tantas, cerca de 2,5 milhões de pessoas – segundo dados da Defesa Civil – atingidas que podem estar em casas de amigos e familiares, mas estão com sua vida econômica cotidiana atingida. Essa recuperação econômica pode ser um pouco mais rápida: ter uma queda e ter uma certa recuperação, a depender das políticas que vierem a ser adotadas.
Reconstrução
Já a reconstrução pode ser mais demorada e aqui temos claramente um dilema: como será essa reconstrução? Será uma reconstrução do tipo “tapar buracos”? Esse modelo de “tapar buracos” pode ser mais barato – um colega do nosso departamento está pesquisando e em breve teremos a publicação do documento, mas a estimativa deles é que para recuperar o mínimo desse estoque de capital, teremos uma conta perto de R$ 30 bilhões. O que é o mínimo? Recuperar aquele trecho da estrada em que o asfalto cedeu; recuperar a ponte que caiu.
Infraestrutura resiliente à crise climática
Esse mínimo – é a pergunta que tenho feito – será suficiente para que tais estruturas sejam resilientes aos choques climáticos? O documento que fizemos [A reconstrução do Rio Grande do Sul. Manifesto dos professores de Ciências Econômicas da UFRGS] traz estimativas do que o estado do Rio Grande do Sul e o Brasil já deveria estar fazendo para constituir novas estruturas que nos adaptem a esses choques que serão – já estão sendo – recorrentes ao redor do mundo. Agora chegou no Rio Grande do Sul e no Brasil com maiores intensidades. E agora os valores são mais desafiadores.
Esses valores desafiadores, por sua vez, que nós estimamos no Rio Grande do Sul entre 22 e 30 bilhões/ano, para um horizonte de no mínimo dez anos, eles também são fonte de desenvolvimento. Quando pensamos nesses números grandes pensamos em “gasto”; sim é verdade, são gastos, e temos de pensar como financiar esse gasto. Mas o que o gasto cria ali adiante? Pode criar uma infraestrutura melhor, mais moderna e resiliente, empresas mais eficientes, capacidade logística melhor, que podem garantir no futuro que a economia cresça mais.
Operação "tapa buraco"
Ou seja, se ficarmos na “operação tapa buraco”, o que o governo tem sinalizado pelos números estimados, pela falta de uma reação estratégica e contundente, até agora, continuaremos vulneráveis. Vai acontecer a mesma coisa que aconteceu após setembro de 2023, quando tivemos uma enchente. Citando o caso do Vale do Taquari, onde as pessoas foram reconstruindo suas casas nos mesmos lugares. As estruturas foram reconstruídas com esse tipo de “operação tapa buraco” e o que acontece pouco mais de seis meses depois? Tudo foi destruído de novo. Se for para “tapar buraco”, a conta é mais barata, mas ela não resolve o problema e não cria uma economia capaz de superar a crise e crescer com mais velocidade no futuro. Se essa for a opção, uma opção política, estratégica, o custo será maior, mas os retornos também serão maiores.
Por que reestruturar a dívida do RS com a União e apoiar empresas afetadas pela cheia são ações necessárias, mas insuficientes para dar conta da crise no RS?
Nós tivemos, há poucos anos, uma pandemia que paralisou as economias no mundo e que gerou uma recessão, uma queda no PIB Mundial. Se olharmos para os últimos 150 anos da economia mundial, nós tivemos cerca de dez episódios, ao longo de anos ou períodos, em que a renda mundial caiu – houve uma variação negativa. Isso aconteceu nas Primeira e Segunda Guerras Mundiais, na crise de 1929, em outros momentos de choque, como no Choque do Petróleo, com a crise financeira 2009, quando a falência do Lehman Brothers desencadeou a crise, e tivemos uma queda de mais de 3% no PIB Mundial na pandemia. Essa pandemia só não gerou um efeito maior, só não lançou a economia mundial em uma enorme depressão porque os governos mobilizaram um volume muito grande de recursos para sustentar rendas das pessoas, fundamentalmente.
Do ponto de vista fiscal, não foi menos do que 10% do PIB global. Do ponto de vista de recuperação de bancos, os créditos que vieram diretamente dos bancos centrais foram gigantescos. Se nós formos pegar Estados Unidos, Europa, Japão, China, nestes países, a expansão do balanço dos bancos centrais foi da ordem de 25 trilhões de dólares. Isso equivale a 25% do PIB mundial; então 11% da parte fiscal e a parte de expansão de crédito, cerca de 25% do PIB mundial – só nesses principais países.
A diferença, com essa pandemia, é que a estrutura produtiva não foi destruída. Mas pessoas perderam rendas, muitos negócios faliram ou quase faliram, porque as pessoas não podiam sair comprar, houve todo um processo de lockdown.
Depreciação do investimento gaúcho
No Rio Grande do Sul, uma parte da estrutura econômica foi destruída e vai ter que ser reconstruída. Supor que essa conta vai ser barata é complicado. A tua pergunta remete a pensar que o governo do estado do Rio Grande do Sul, há muitos anos, perdeu a capacidade de investir. Ou seja, de construir estradas, renovar infraestrutura etc.
A nossa infraestrutura, vinda de investimento público, estava muito depreciada, muito sucateada. A qualidade era ruim, porque o Estado investe pouco. Quando falo em “pouco investimento”, refiro-me aos gastos que o governo gaúcho faz em relação a outros estados. Por exemplo: o Paraná investe o dobro do Rio Grande do Sul. Em média, de 2015 a 2022, segundo o último dado que nós temos, o Paraná investiu mais de 2 bilhões/ano – transformando isso a preços de 2022 –; o Rio Grande do Sul investiu menos de 1 bilhão/ano; Santa Catarina também, que é uma economia proporcionalmente menor em termos de PIB, tamanho, e é um estado que tem uma população menor. Tanto é que os investimentos do governo de Santa Catarina, ao longo deste período, por habitante, foram maiores do que o próprio Paraná.
Infraestrutura sucateada
Portanto, nós já vínhamos de um processo de sucateamento da infraestrutura, pensando em investimento público. Se nós pensarmos o total do investimento do Estado, nesse período recente, a média do Estado foi 16% do PIB ao ano. Isso é pouco ou muito? Isso é abaixo da média do Brasil; a média brasileira está ao redor de 19%. Isso é pouco ou muito? Isso é pouco. Os 19% que o Brasil vai investir, em média, nos últimos anos, está abaixo da média mundial. O Brasil já é um país que vem investindo pouco e o Rio Grande do Sul vem investindo menos do que a média do Brasil. Não é à toa que o Brasil cresce menos do que a média mundial nos últimos 40 anos e o Rio Grande do Sul cresce menos do que a média no Brasil.
A despeito de tudo isso, a crise acontece pegando um Estado sem capacidade de investir, que tem uma dívida de mais de 100 bilhões junto à União. Essa reestruturação de dívida é necessária para duas coisas. Uma delas é para que o Estado possa investir. A outra, com a queda do PIB, é que a arrecadação do Estado vai desabar também e, com isso, o governador Eduardo Leite não terá como pagar salários e fornecedores em dia porque não arrecadará ICMS e outros impostos na mesma proporção. Na medida em que isso acontece, cria-se também um efeito em cadeia no conjunto da economia. Se os salários atrasarem, por exemplo, os servidores públicos não poderão pagar suas contas, suas dívidas. Há uma cadeia que é afetada: se o Estado começa a atrasar fornecedores, quem vende alimentos para as escolas, quem vende equipamentos, material de consumo para estrutura do governo, quem vende remédios para os hospitais públicos, tudo isso passa a ser comprometido e as empresas passam a ter mais problemas. Isso gera o que chamamos de um estresse financeiro, que contamina também o setor privado, que, por sua vez, vai ter dificuldade de honrar seus compromissos; há essa dimensão.
Apoio financeiro às famílias e às empresas
E as empresas e as pessoas que não estão tendo renda no momento também vão ter dificuldades de honrar seus compromissos. Como as pessoas vão conseguir pagar a escola, conta de luz, o supermercado etc.? Como é que as empresas vão pagar salários, fornecedores, se não estão conseguindo produzir? Isso lembra muito a situação da pandemia: tem que ter uma rede de apoio financeiro para as empresas e as famílias.
Lembrando que as empresas e as famílias, por sua vez, têm dívidas. Tem empresas que tomam dinheiro emprestado em bancos, tanto para capital de giro quanto para seus investimentos; as famílias adquiriram imóveis financiados, automóveis financiados, perderam parte ou tudo e não vão conseguir pagar as dívidas junto aos bancos. Isso também exige a renegociação e a reestruturação de dívidas do setor privado. Sem isso, eu posso levar a inviabilidade financeira, não só famílias, como empresas, o que vai gerar um efeito em cadeia muito negativo.
A salvação está no investimento público
A experiência internacional nesses momentos de uma crise, como foi a pandemia e como outras, é que o único setor econômico que consegue gerar o oxigênio para que os demais não morram, é o setor público. É o setor público que consegue se endividar nesse momento, que consegue ter outras fontes de crédito. A “vantagem” é que essa é uma crise localizada no Rio Grande do Sul, então, se os recursos vierem, se o desenho de política econômica, a coordenação e uso desses recursos forem adequados, nós podemos evitar o pior cenário. Esse conjunto de efeitos encadeados de falta de renda inviabiliza pagamentos de compromissos, inclusive dívidas, contamina o setor financeiro, que não vai ter condições de emprestar ou não vai desejar emprestar crédito novo para quem já está endividado e não consegue pagar, exige presença estatal para que não se rompa.
E, ao mesmo tempo, é preciso ter um pacote muito ambicioso de construção. Por uma razão que eu não coloquei ainda, que é a seguinte: como vamos convencer empreendedores que estão no Rio Grande do Sul a reconstruírem seus negócios aqui, quando o estado se mostra tão frágil diante dos choques climáticos e com o setor público, com o governo do estado, uma prefeitura de Porto Alegre e outras instituições públicas tão incapacitadas para reagir por “n” razões?
Essa crise mostra a vulnerabilidade da nossa infraestrutura. Nós estamos desconectados do mundo; o nosso aeroporto está debaixo d’água e vai ficar meses assim. Como convencer uma empresa a se reconstruir no Rio Grande do Sul? Será que não é melhor ir para outro estado em que as coisas são tratadas um pouquinho mais a sério, sem as brigas políticas sem fim, sem o negacionismo? Não que isso não exista em outros estados, mas em diverso lugares há menos risco climático. Bom, alternativamente, será que a nossa elite política econômica vai abraçar um projeto de reconstrução com uma nova infraestrutura? Por exemplo, construir um novo aeroporto numa região mais segura, uma infraestrutura de acesso a esse aeroporto, um trem que nos ligue até lá, urbanizando a região no entorno desse aeroporto, criando centros logísticos para o comércio internacional, novas áreas para ocupação industrial também mais seguras, mais próximas desse “centro logístico aeroporto”, com uma rede de fornecimento de energia local mais segura?
Como o Rio Grande do Sul é um importador de energia, é preciso transmitir essa energia por redes. Como nós somos mais sujeitos a ventos fortes, a enchentes etc., isso sinaliza ao investidor que a rede de fornecimento de energia é potencialmente mais vulnerável. Nós temos que produzir energia mais perto, usar energia solar etc., para dar mais resiliência ao nosso setor produtivo. É isso que os nossos líderes deveriam estar pensando e fazendo. E não estão.
Como criar um fundo para a mitigação de riscos climáticos e qual sua importância diante do novo regime climático?
Tua pergunta tem a ver o Manifesto que publicamos, que é um primeiro documento, o início de um debate. Não tem detalhamento de nada, mas é resultado de coisas que nós estamos trabalhando há muitos anos. Essa própria ideia de fundo resulta, em parte, de pesquisas.
Tem um artigo que publicamos em vários portais, um deles na rede GGN, do Luís Nassif, em setembro de 2023, mas a ideia já estava lá e nós estávamos olhando para o Brasil como um todo. A questão fundamental é essa que nós estávamos tratando antes, que não envolve necessariamente a reconstrução, mas faz parte dela: teremos de mobilizar recursos.
Uma das ideias que pensamos é a criação de um fundo para mitigação de riscos climáticos para a região Sul. O Brasil já tem fundos constitucionais que foram criados com o objetivo de reduzir assimetrias de desenvolvimento dentro do país. A região Norte, por exemplo, tem níveis de renda per capita menores do que a região Sul, assim como o Nordeste, o Centro-Oeste. Essa diferença vem diminuindo – que bom – ao longo do tempo. Isso funciona, por exemplo, com uma parcela de imposto de renda que é destinada para esse fundo.
Tem o fundo do Nordeste, tem o fundo do Centro-Oeste e o fundo do Norte. O fundo do Nordeste é administrado pelo Banco do Nordeste, que é um banco federal. O fundo do Norte é administrado pelo Banco da Amazônia, para toda a região amazônica, os estados da região Norte e uma parte do Nordeste também, de bioma amazônico, como Maranhão.
O fundo do Nordeste pega inclusive uma parte de Minas Gerais. E o fundo do Centro-Oeste, que é administrado pelo Banco do Brasil, pega toda a região Centro-Oeste, uma região de grande crescimento e dinamismo hoje, em função da expansão da Fronteira Agrícola. A região Sudeste não tem um fundo constitucional, mas BNDES está lá e usa o Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT, outra poupança compulsória, para usar o termo técnico, que alimenta o BNDES. A maior parte do crédito do BNDES é para o centro do país. A região do Sul tem um Banco Regional de Desenvolvimento (BRDE) e ele não tem um fundo constitucional; ele basicamente repassa recursos de fontes como BNDES e outras.
O BRDE poderia ser o agente financeiro, assim como tem o Banco do Nordeste. O BRDE já trabalha com ênfase em projetos de investimento na região Sul e no Mato Grosso do Sul.
Origem dos recursos
Nós pensamos nesse fundo como um mecanismo e não sabemos se seria um fundo constitucional, porque envolveria uma maioria de 2/3 do Congresso para aprovar; é uma disputa política. Ou se seria um outro fundo que o Governo Federal poderia estruturar, mas que poderia ser capitalizado com recursos de emissão de títulos verdes que já estão regulamentados pelo Tesouro Federal, poderia utilizar recursos vindos de governos e de bancos multilaterais. A ex-presidente Dilma já anunciou o apoio do Banco dos BRICS, que parece que vai ser da ordem de R$ 5 bilhões e poderia ir para este fundo.
A reforma tributária criou a possibilidade de diferenciais de tributação, a maior para setores poluidores – aqueles setores que têm contribuído para a emissão de CO2, deveriam pagar mais impostos. Uma parte disso, dos impostos gerados na região Sul, poderiam ir para esse fundo. Há formas de capitalizar esse fundo, de colocar dinheiro, mas ele terá de ser usado por instituições especializadas em estruturar projetos de investimento. E nós temos essa instituição, que é o BRDE, altamente competente para fazer tudo isso.
A ideia do fundo vem casada com a ideia de usá-lo por meio dessa instituição, o que geraria uma enorme capacidade de alavancar créditos, que não são só para o Rio Grande do Sul, mas para a região Sul e o Mato Grosso do Sul, que são as áreas de atuação do BRDE. E, em parte, isso pode ser usado para a reconstrução do Rio Grande do Sul, mas os outros estados da região Sul e o próprio Mato Grosso do Sul, em função de queimadas, precisam ampliar a resiliência aos choques climáticos; esse dinheiro iria para tal função.
Não basta ter o dinheiro, esse dinheiro tem de ser bem direcionado. O BRDE já é uma espécie de “mini” BNDES. O problema do BRDE é que sua capacidade de atuar é muito mais limitada que o do BNDES, que tem mais dinheiro e mais fontes de recurso. Esse fundo seria para ampliar a potência de ação do BRDE. Também uma parte poderia ir para o Banrisul e para as agências de fomento, que funcionam como pequenos bancos de desenvolvimento. Tem o Badesul aqui no Rio Grande do Sul, o Badesc em Santa Catarina, tem o Fomento Paraná no Paraná; o Mato Grosso do Sul não tem uma agência de fomento. Desse modo, parte do dinheiro iria para a reconstrução do Rio Grande do Sul, mas parte iria para a questão da resiliência climática e o BRDE seria esse ator. Ademais, nós falamos de vários outros mecanismos de política, como o Fundopem, que poderiam ser melhor calibrados.
Desmonte das fundações escancara incapacidade do Estado de planejar o futuro
E o Rio Grande do Sul tem uma grande vulnerabilidade, que nós observamos agora, que é a incapacidade de ter planejamento de longo prazo, porque o Estado foi desmontando as áreas de inteligência. Boa parte da nossa inteligência, da nossa capacidade de olhar para o futuro, de ter estatísticas, informações e análises para podermos responder rapidamente a desafios que se coloquem com esse olhar estratégico de longo prazo. O Estado tinha uma capacidade para isso e desmontou, que eram as fundações, como a Fundação de Economia e Estatística – FEE e outras, e desmontou por razões ideológicas.
Boa parte dos servidores seguem trabalhando no Estado, desviados desta missão nobre de serem centros de excelência para pensarem aspectos do Estado. Pensar aqui não é no sentido, digamos, de diletantismo, mas de ter informações qualificadas que permitam o planejamento e a ação. Que é o que nesse momento precisamos, pois não basta encher o governo de dinheiro se não souber o que fazer com esse dinheiro, ainda mais se eu tenho de reconstruir a partir de uma base voltada a pensar um futuro melhor. Se é para “tapar buraco”, vai ser como o exemplo que citei de setembro passado: destrói, reconstrói no mesmo lugar, sem planejamento, vem uma nova cheia e destrói de novo.
Ciência
Como é que fazemos isso? Com inteligência. Onde é que está aparecendo essa inteligência? Onde não foi destruída. Como a Faculdade de Ciências Econômicas, em menos de uma semana, produz um documento que é muito mais robusto do que tudo que o governo do Estado fez? Não é só nós que fizemos isso, outros estão fazendo.
Como que o Instituto de Pesquisas Hidráulicas – IPH da UFRGS consegue fazer aquilo que as consultorias privadas, que foram contratadas por municípios e pelo governo do Estado, não conseguiram fazer? Nossas áreas de Climatologia, Meteorologia, Geografia... Aliás, os colegas da Geografia fizeram todo o esforço no sentido de produzir é informações georreferenciadas.
Nós temos na Unisinos áreas de excelência, nós trabalhamos em conjunto, inclusive, parte das nossas reflexões são um trabalho em conjunto que nós fazemos em parceria com o núcleo da Unisinos, coordenado há muitos anos pelo professor Marcos Tadeu Caputi Lélis [Grupo de Pesquisa Competitividade e Economia Internacional]. É um núcleo com vários professores da economia, estudantes, que é, para mim, um dos melhores núcleos de estudos de competitividade internacional, de comércio internacional e de análise da economia gaúcha que nós temos no Brasil. Se eu tivesse que pegar três ou quatro dos melhores economistas do estado, eu e muita gente, ele é uma dessas pessoas. Estou falando da Unisinos, onde conheço mais diretamente e trabalho junto. As nossas universidades confessionais, como a PUC e a Unisinos, as universidades comunitárias e as universidades públicas, como a UFRGS, são repositórios dessas competências, que têm de ser – e precisam – ser utilizadas.
Mas o governo estadual não tem, ele perdeu. Tem pessoas muito qualificadas, mas que estão quase em “desvio de função”, pois as fundações foram extintas, as pessoas não foram demitidas, foram realocadas em várias secretarias, só que poderiam estar, neste momento, muito melhor equipadas para pensar suas questões e pensar para atuar.
O documento que nós fizemos não é um documento diletante, mas tem robustez, na minha avaliação, porque pega a experiência e a literatura internacional e, ao mesmo tempo, tem propostas concretas. Que num segundo momento, evidentemente não são propostas fechadas, vão precisar de um desenho mais detalhado, projetos de lei. Nós temos experiência. Um dos autores desse primeiro registro é o nosso colega, o professor Carlos Henrique Vasconcellos Horn, que foi diretor e presidiu o BRDE em duas ocasiões.
Portanto, tem uma experiência de oito anos como gestor no setor financeiro, na área de projetos de investimento. Ele presidiu também a Associação Brasileira de Instituições de Fomento – ABDE; assim como ele, temos outros. Eu mesmo trabalhei no BRDE com ele e vários outros colegas, que tem experiências em várias áreas dentro da UFRGS e outras instituições.
Déficit de visão de futuro
Não faltam recursos humanos qualificados, mas faltam visão de futuro e liderança política; isso tem que vir dos atores políticos. O que eles querem do futuro do Rio Grande do Sul? Vamos continuar com a decadência que temos – agora não tem mais como esconder, pois antes dava para, digamos, fazer de conta que não havia, agora não dá. Ou fazer uma coisa que permita reconstruir.
É interessante que a literatura de economia de desastre mostra que aquelas regiões que conseguem exatamente renovar o seu estoque de capital – com uma infraestrutura melhor e fábricas melhores –, conseguem crescer mais, uma vez que recupera a economia. E, aquelas regiões que não conseguem, ficam com aquela cicatriz permanentemente e não recuperam o dinamismo.
É isso que nesse momento se coloca no Rio Grande do Sul: se nós formos seguindo a toada, que pelo menos eu vejo as lideranças mais tradicionais, do olhar pequeno, do olhar do “tapar buraco”, o olhar de não querer ter a grandeza de admitir, por exemplo, que na questão ambiental, a maioria da Assembleia Legislativa, a partir da iniciativa do governo do Estado, simplesmente desmontou os sistemas de proteção ambiental do Estado. Isso tem que ser remontado e precisa dessa, digamos, humildade e visão de futuro, de perceber que não foi o acaso que nos trouxe até aqui.
Imagens de satélites feitas pela NASA mostram antes e depois das enchentes.
O prejuízo dos eventos climáticos extremos não é só da população atingida e, portanto, mais vulnerável, mas é também do agronegócio, cuja bancada ruralista sustenta a flexibilização da legislação ambiental. É possível estimar o prejuízo (se é que haverá) do setor agrosilvopastoril no RS?
Com certeza. A Emater publicou uma estimativa. O agronegócio, como um todo, é extremamente importante para a economia do Rio Grande do Sul. Quando falamos em agronegócio, falamos na produção primária e nas cadeias produtivas que estão ligadas: comercialização, industrialização e fornecimento de insumos. É um setor importante, muito dinâmico, inclusive é o setor que consegue se recuperar mais rápido com a nova safra.
Esse segmento, em alguma medida, se beneficiou nos últimos anos por uma forte elevação de preços, porque a demanda global aumentou por proteína animal, por soja, fruto do incremento da renda na China e em outros países emergentes. O que permitiu um dinamismo muito grande em tais setores. E isso estimula a expansão da fronteira agrícola, o uso da terra por vezes com uma visão mais predatória. Não se pode generalizar e dizer que todo o agronegócio tem essa visão.
Há um setor “moderno” que, inclusive, tem plena consciência que a dinâmica de comércio global está mudando muito rapidamente. Os mercados consumidores, até por conta dessa instabilidade climática, estão se tornando muito mais exigentes no que tange à certificação de origem dos produtos. Os consumidores se perguntam: será que essa carne que está sendo consumida veio de uma região que gerou desmatamento? A Europa está liderando isso, mas a China também vai começar a introduzir mecanismos nesse sentido. O agronegócio mais “empresarial”, com uma visão de mundo, tem essa perspectiva.
Agronegócio: visão ideológica
Mas o que predomina nesse setor é uma visão política de curto prazo e, talvez, ideológica. É preciso uma oxigenada no pensamento para entender o que é do interesse do próprio setor produtivo evitar a destruição da capacidade de produzir. O choque que nós estamos observando agora revela isso claramente, porque o sistema de transporte está sendo fortemente atingido negativamente, porque isso cria riscos diversos. Na próxima vez que alguém for plantar arroz vai parar e pensar: será que eu não vou perder toda a minha safra, vou plantar soja por causa desses eventos extremos?
Essa perspectiva precisa ser introduzida e terá de ser discutida no sentido de criar resiliência ambiental. Criar resiliência ambiental não é parar de produzir, não é descontinuar as atividades do agronegócio, mas é perceber que tem de ter um novo equilíbrio. Não precisamos expandir a fronteira da soja no Rio Grande do Sul, por exemplo, na região do Pampa e nas áreas que são protegidas, como se garantiu. Tem de fazer o contrário: proteger os biomas, proteger as nascentes e todas as margens dos rios, tentar recuperar partes da mata nativa, porque se ajuda a neutralizar a emissão de carbono, reduzir o uso de toda a química associada – pesticidas, fertilizantes –, reequilibrar, parar de usar.
Na Europa se usam agroquímicos, mas não na quantidade que se usa no Brasil. Aqui, a quantidade de agroquímicos utilizados por tonelada produzida e por habitante é o maior do mundo; é algo que não tem parâmetro. Portanto, é um processo irracional. E, ao mesmo tempo, essa turma que fica se alimentando só de notícias falsas, de Twitter etc., precisa compreender que na medida que se destrói a Amazônia, como mostram as pesquisas científicas, afeta todo o processo de ciclo da água, de aquecimento dos oceanos.
Estava vendo um dado da Universidade de Stanford que pega, mês a mês, ano a ano, numa larga escala, a elevação de temperatura do oceano. O ano de 2024, desde o dia 1º de janeiro, é o ano em que a curva do aquecimento dos oceanos nunca esteve tão alta.
O sujeito que está plantando soja em Erechim só sabe pensar duas coisas na vida dele: no preço da soja e no preço que ele paga pelo adubo químico ao banco, o financiamento do carro novo que ele vai comprar, na viagem que ele vai fazer para Bariloche se a safra for boa. É isso que está na cabeça desse sujeito; ele não pensa em aquecimento global, no aquecimento do oceano Índico e como isso pode afetar a vida dele, mas afeta. O desmatamento da Amazônia afeta também porque esses regimes todos são integrados. Essa chuva do Rio Grande do Sul se deu porque uma frente fria ficou estacionada aqui e tinha uma frente de ar seco lá para cima. Os regimes de ventos estão se alterando pelo aquecimento dos oceanos, pela redução da umidade na região Norte, que é resultado de desmatamento. São intervenções do ser humano no clima ao redor do mundo e essas coisas estão todas ligadas.
É do interesse do agronegócio – ou pelo menos deveria ser – padrões mínimos racionais de proteção. É aquela história: ou aprendemos pela dor ou aprendemos racionalmente, pela inteligência. Agora estamos experimentando uma dose de dor. Se vai ser suficiente para esse pessoal sair do estado de não reconhecimento da importância de combinar a produção com níveis adequados de proteção eu não sei; isso é algo que nós vamos ter, enquanto sociedade, discutir.
Considerando o que já discutimos, não seria mais econômico investir em prevenção? É possível estimar o quanto é mais econômico?
É possível estimar. Não temos estimativas para o caso do Rio Grande do Sul, mas sabemos o quanto foi destruído ao longo dos últimos anos e que essa conta está aumentando ano a ano.
O Fórum Econômico Mundial – FMI, que são as lideranças na área de negócios do mundo, divulgou um dado que mostra que, em dólares, o valor acumulado em prejuízos aumentou devido aos eventos extremos – esse número cresceu dez vezes entre os anos 1970 e a década de 2010. Na década de 2010, os prejuízos causados por eventos climáticos extremos chegaram à casa US$ 1,5 trilhão no mundo. Isso significa uma perda de 1,5% do PIB global; não é pouco dinheiro.
A prevenção envolve magnitudes muito maiores. A estimativa, tanto das Nações Unidas quanto de consultorias privadas, como a McKinsey, fala de um número ao redor de 3% a 4% do PIB global, por ano, que nós deveríamos estar investindo para ter resiliência climática. Isto é, ampliar a capacidade de produzir energia limpa, aumentar a eficiência no uso de energia, adaptar às infraestruturas para uma situação sem volta – o que nós estamos administrando agora, pelo menos não tem volta no curto prazo, médio prazo, ao longo das próximas décadas. Nós estamos administrando como conviver com o mundo em que a temperatura aumentou quase 2°C e pode chegar a 3°C na média, mas que pode passar disso.
Assim, temos de nos preparar para evitar chegar aos 3°C e adaptar para essa elevação que já temos. Vou citar como exemplo as infraestruturas, os trens, que são o transporte predominante de cargas ao redor do mundo, muito importante para passageiros em várias regiões. Quando os trens foram feitos, ou mesmo as pontes, estradas e rodovias, os materiais utilizados e as estruturas feitas foram calculadas a partir de certos padrões de temperatura média e de certas variações climáticas. Quando as temperaturas começam, em média a subir, e os picos ficam maiores, essas infraestruturas se inviabilizam. Já estamos assistindo na Europa os verões, a cada ano, um mais quente do que o outro, a interrupção do tráfego de linhas férreas por medo de acidentes, porque aquela linha férrea foi construída 30, 40 ou 50 anos atrás e mantida no padrão. Os cálculos foram feitos para uma certa oscilação de temperatura, quando a temperatura em média fica mais alta e oscila mais, há maior de risco de aqueles materiais dilatarem de uma forma incompatível com a segurança do tráfego dos trens; literalmente, para uma parte da infraestrutura. Assim como a agricultura do continente, cada vez mais afetada porque não estava preparada pra secas. Estou pegando esse exemplo que posso passar ao redor do mundo.
Tudo isso envolveria novos investimentos, que são estimados em 3 a 4% do PIB mundial. Deveriam estar sendo investidos de 3 a 4 trilhões de dólares por ano desde a década passada até 2030, que era o cenário projetado, mas está muito abaixo disso.
Investir em resiliência climática
O Brasil deveria estar investindo em resiliência climática cerca de 300 a 400 bilhões de reais por ano; e o Rio Grande do Sul entre 20 e 30 bilhões de reais por ano. Não estamos fazendo isso, pelo contrário.
Esses investimentos podem tornar, não só, as economias mais resilientes, como mais eficientes, e, portanto, gerando ganhos de produtividade. Essa conta de investimentos não é uma conta de gasto, por isso que falamos de investimento, mas uma compra de melhorar a eficiência da economia e permitir que a economia cresça mais e gere renda. Eu estou gerando renda quando construímos uma usina de geração de energia eólica, quando há a instalação de painéis solares e a criação dessas fábricas de captação de energia solar; há geração de empregos, renda e o aumento da eficiência da economia. Portanto, esses investimentos têm de ser percebidos como oportunidades de crescimento das economias, o que de fato está acontecendo.
A China hoje lidera os investimentos em renovação de meio ambiente; é o país que mais polui, mas o que mais investe nisso. Esse investimento gera competências tecnológicas, inovação e uma série de coisas superpositivas associadas a essa necessidade de adaptação.
Prevenir é mais barato
Tu me perguntaste se é mais barato prevenir do que remediar, evidentemente que é. Os investimentos geram renda, inovação tecnológica e ganhos de produtividade. Não é dinheiro posto fora, é dinheiro investido. Esse número é grande e poderia ser o vetor para acelerar o crescimento. Infelizmente, hoje o Brasil está preso por um conjunto de regras fiscais. E mais do que isso, está preso por uma mentalidade, por interesses – você citou uma parte do majoritária do poder político do agronegócio –, que não conseguem ou não querem enxergar essa realidade de dificuldades e de oportunidades.
No nosso manifesto, diga-se de passagem, nós mergulhamos na análise dos grandes bancos de investimento, dos grandes fundos de investimento que estão trabalhando nessa área. Eles olham para a necessidade de investimento em resiliência climática como oportunidades de negócio e estimam o tamanho dessas oportunidades. Banco não rasga dinheiro, eles percebem que é o único caminho que nós vamos ter de trilhar, que cria possibilidades também positivas.
Por que rever a política de incentivos fiscais neste momento é tão importante? Qual seria o impacto financeiro?
Nós não chegamos a calcular o impacto financeiro. Usamos o caso do Fundopem, mas no artigo de setembro, nós tínhamos pensado, de alguma forma, em levar mais a sério o uso, por exemplo, dessas poupanças forçadas, compulsórias, fundos constitucionais do Norte, Nordeste etc. em que eles efetivamente trabalham com esse olhar da resiliência climática. No caso do Fundopem, tanto os decretos quanto as portarias que normatizam o uso, que é um crédito fiscal – a empresa vai se instalar ou expandir e pede isenção, por um período de tempo, de pagamento de impostos, uma espécie de adiantamento de financiamento. Isso é solicitado por meio do Fundopem. Para receber esse recurso, terá de demonstrar que vai gerar empregos, que não tem dívidas previdenciárias e uma série de requisitos que formalmente também envolvem questões de meio ambiente.
Mas, na prática, todas as decisões que são tomadas por esse conselho, não há nenhum olhar externo que possa “fazer aquele papel de Grilo Falante” ou de quem está enxergando por esta ótica mais voltada pela ótica científica ou das questões científicas, específicas ambientais. As decisões de conceder ou não o benefício fiscal pelo Fundopem se dão por um conselho gestor formado por representante do governo, secretários de Estado ou seus substitutos, representantes dos bancos – BRDE, Banrisul –, representante do setor privado, que é quem está recebendo benefício. Não tem ninguém do mundo da ciência, mas deveria, porque tem de olhar se, de fato, as questões ambientais estão sendo levadas a sério ou se é aquilo que a literatura chama de greenwashing ("lavagem verde"). Isto é, o pessoal coloca um selo ambiental, ou diz que está cumprindo, mas é só proforma, não tem, de fato, compromisso.
Este olhar, do especialista com uma perspectiva mais técnica poderia ajudar, assim como, pelo menos, um assento de algum representante dessas instituições especializadas em temas de meio ambiente. Ao menos ampliar o conselho, trazer alguém com conhecimento científico e alguém do mundo do meio ambiente já ajudaria a rever esses processos. E, antes de chegar na decisão, existe uma etapa que é de enquadramento do projeto: o pedido para fazer parte do Fundopem é submetido na Secretaria de Desenvolvimento do Estado e tem uma primeira análise técnica, que é feita pelos servidores do Estado – certamente pessoas competentes, que querem zelar pelo bom uso do recurso público. Eles fazem uma análise do cumprimento dos requisitos legais formais e há um sistema de pontuação. O sistema de pontuação poderia ser aprimorado para que esse viés ambiental entrasse mais forte ou o viés da resiliência climática.
E, adicionalmente, além de um parecer técnico interno da Secretaria, deveria ter um parecer técnico externo à Secretaria, não por consultores privados que adoram entrar nessa hora, mas por instituições - há várias instituições públicas capacitadas para fazer – com um olhar mais técnico, científico, para verificar se essa questão, por exemplo, da residência climática, de alguma forma está lá na nos requisitos, está sendo atendida.
O mecanismo adicional de um olhar externo talvez contribuísse para um uso mais eficiente desses recursos. Porque, acima de tudo, cada vez mais, não podemos destinar dinheiro público, subsídio, dinheiro dos nossos impostos para financiar atividades que vão contribuir para o aumento da destruição da nossa capacidade de sobreviver no planeta.
Subsídios para quem destrói o meio ambiente
Se olharmos os subsídios do governo federal, que são chamados de gastos tributários, eles são da ordem de 5% do PIB brasileiro, o que equivale a mais de R$ 500 bilhões por ano e o maior beneficiário individualmente é o agronegócio, por meio do subsídio de juros. Eles recebem benefícios e uma parte desse benefício é usado para a destruição do meio ambiente. Estou comentando de forma muito simplificada, mas esses instrumentos precisam ser recalibrados e nós temos ferramentas tecnológicas para isso.
Quero citar mais um exemplo: os bancos públicos que financiam o agronegócio, como o Banco do Brasil, o BNDES, o Banco da Amazônia – BASA e o Banco do Nordeste – BNB, que são as principais fontes de financiamento para o agronegócio, deveriam ter uma política de juros que cobrassem juros de mercado, sem subsídio, naquelas regiões em que há desmatamento. Além disso, que tivessem uma taxa de juros fortemente subsidiadas naquelas regiões que estão reflorestando ou recuperando ou não estão desmatando. Portanto, política para recompor biomas, reflorestar, é reflorestar para que os turistas sobrevoem, vejam a floresta, porque isso captura carbono, joga mais umidade no ar, reequilibra esses processos que estão sendo desequilibrados.
Nós temos R$ 500 bilhões de subsídio – uma boa parte disso vai para o agronegócio –, nós temos bilhões de reais por ano de crédito subsidiado, mas nenhum mecanismo que permita premiar quem está fazendo o certo – preservando as águas, as margens dos rios, não destruindo para ampliar fronteira agrícola, pelo contrário, reequilibrando o meio ambiente. Esses não estão sendo premiados porque não recebem juros menores proporcionalmente, o subsídio é igual para todo mundo, e aquele que está destruindo está sendo subsidiado.
A ação envolve todo um volume de bilhões e bilhões de reais de créditos que vão para o setor agrícola, que o Governo Federal deveria ter uma política que rebalanceasse esses instrumentos. Não é fácil fazer isso. Se o Lula ou qualquer presidente que estiver ali lançar uma ideia como essa, o Congresso, a bancada do agronegócio [bancada ruralista] vai pedir o impeachment no dia seguinte. Agora, eu quero saber se a sociedade vai seguir tolerando esses choques que nós estamos tendo. É um trabalho de diálogo político, um diálogo com as lideranças racionais – há lideranças positivas e racionais para o agronegócio, para convencer o conjunto do sistema. Quando pensamos em instrumentos como Fundopem, não é necessariamente para eliminar incentivos fiscais que podem ser importantes, mas para que o seu uso seja mais alinhado às necessidades que a crise climática está impondo.
No Manifesto escrito e assinado por dezenas de professores da UFRGS, uma das medidas é rever marcos legislativos. De que ordem é o desafio dessa tarefa considerando um Congresso bastante conservador e neoliberal em sua composição e uma Assembleia Legislativa com características semelhantes?
Vai depender muito da sociedade. Não é à toa que nesse momento, se nós olharmos as representações políticas desses grupos que nós chamamos aí de liberais de extrema direita, grupos e liberais de extrema direita, ambos brigando entre si, tentando capitalizar a tragédia. Tipicamente os grupos liberais de extrema direita, que cresceram muito no Brasil, procuram negar a ciência, negar que há o aquecimento global e isso deixa o terreno fértil para a redução dos mecanismos de proteção ambiental.
De fato, no Congresso Nacional é muito difícil. E essa tragédia que nós estamos vivendo é no Rio Grande do Sul, o resto do país segue funcionando, as pessoas estão na praia, fazendo turismo, trabalhando, estudando, viajando. Nós, no Rio Grande do Sul que estamos isolados e vivendo isso. Uma parcela do Brasil, extremamente solidária, uma maioria empática – isso é do povo brasileiro –, está ajudando, mas segue com sua vida; não faz sentido o que as pessoas estão sentindo aqui.
Desse modo, no Brasil como um todo, será mais difícil que o eleitor, que a sociedade pressione. No Rio Grande do Sul, as pessoas estão sentindo isso, resta saber se elas vão continuar acreditando no grupo de WhatsApp do tiozão do churrasco dizendo que o aquecimento global é uma mentira, uma bobagem. E os políticos e liberais desses grupos reproduzindo isso. Eventualmente vai continuar assim e o setor político e a elite política não vão se sentir pressionados para mudar o rumo.
Redesenhar a legislação ambiental
Eventualmente pode acontecer. Vamos imaginar que o governador tenha um insight profundo e perceba que errou. Todo ser humano pode errar. Ele poderia ter essa grandeza que só aumentaria sua imagem perante a história de dizer que os marcos regulatórios da área ambiental do Estado têm de ser revistos para proteger o nosso Estado de situação como essa. E, se é verdade, ele dizendo à sociedade que está disposto a rever, a sentar com a Fundação Estadual de Proteção Ambiental - Fepam, com as áreas técnicas que alertaram riscos e com a comunidade científica e redesenhar a regulamentação.
Redesenhar significa a criação de uma legislação equilibrada, que proteja os biomas, o que ainda existe e o que precisa ser recuperado, que proteja as águas. Hoje nós temos enchentes, amanhã vamos ter seca; e ter um planejamento de longo prazo.
A sociedade também tem de estar atenta. O trabalho da imprensa é fundamental. Não tem como olhar para essa realidade e não começar a pensar minimamente; as pessoas têm que ter algum grau de racionalidade, mesmo pessoal do grupo de WhatsApp do tio do churrasco e do meme de que não existe aquecimento global perderam parte do seu patrimônio e está perdendo agora, de novo, se conseguiu reconstruir. Será que as pessoas não vão se dar conta que isso não é aleatório? Será que não vale a pena ouvir outra perspectiva? A saber se as pessoas conseguem romper essas bolhas.
Eu não vejo a possibilidade ou algum sinal, até aqui, de que o governador do Rio Grande do Sul ou a elite política, econômica e social assumirão essa questão da mudança climática como decisiva e que o Rio Grande do Sul está vulnerável por razões que a ciência está já alertando algum tempo. Foi resgatado agora aquele estudo de 2015, contratado em 2014 pela presidente Dilma, intitulado Brasil 2040: Cenários e Alternativas de Adaptação à Mudança do Clima, que vale a pena dar uma olhada. Esse estudo disse tudo o que está acontecendo agora; está lá escrito as razões típicas de porque a região sul é mais exposta – porque nós temos a umidade que vem do sul – e o clima cada vez mais seco ao Norte e essas precipitações extremas acontecendo aqui, além daquilo que nós já tínhamos naturalmente.
Historicamente, na região Sul e no Rio Grande do Sul o clima oscila muito. Nós temos quatro ou cinco anos de um clima bom, daqui a pouco vem um período de estiagem, que vai voltar a acontecer, só que podem ser mais prolongadas e intensas, porque todos os sistemas de ventos de unidade estão sendo bagunçados. Trago aqui na minha leitura leiga dos fenômenos meteorológicos para os quais eu não tenho competência para falar, mas eu tento entender minimamente.
Esse conjunto de forças da natureza estão muito bagunçados e a nossa região é mais vulnerável do que outras a tais manifestações extremas. Temos que nos preparar. Se a elite política vai ou não reagir, dependerá da sociedade: se ela ficar inerte e aceitar que basta "tapar buraco", provavelmente eles vão fazer a mesma coisa, vão ficar inertes. Fazer essa operação para "tapar buracos" e seguir com a própria vida como se nada tivesse acontecido.
Outra proposta do Manifesto é flexibilização das regras orçamentárias e da legislação para uma rápida construção do RS. Como evitar, porém, que o dinheiro seja mal investido e até mesmo usado para beneficiar financiadores de campanha?
Em nenhum lugar do mundo a corrupção foi eliminada. Se pode tentar mitigar o problema, o que envolve governança em muitas dimensões. Se eu tivesse que dar uma resposta, tem que ter o máximo de transparência e controle social. O problema do Brasil é que toda a legislação que envolve contratos públicos, licitações etc. produziu uma impossibilidade de o Estado gastar eficientemente. Qualquer denúncia ou desconfiança do Ministério Público, o procurador vai lá e paralisa uma obra e não necessariamente aquela, aquele mal feito, aquele desvio existe e mesmo que exista, o custo para a sociedade de parar uma obra pode ser muito maior do que o custo daquele potencial desvio.
A primeira questão a fazer é separar a pessoa física que eventualmente cometeu um ilícito da pessoa jurídica. Eu estou dizendo isso à luz de alguns exemplos que ocorreram com a Lava Jato. Agora estamos vendo, cada vez mais, transcendendo uma boa prática de servidores públicos preocupados com o bom uso do dinheiro público; passou a ser mais uma espécie de contaminação de órgãos de Estado por pessoas que estavam querendo fazer política.
O resultado prático concreto da Lava Jato foi a destruição do setor de engenharia do Brasil, de um setor que era extremamente competente do ponto de vista técnico. É possível afirmar que há problemas de mau uso do dinheiro público em grandes projetos, que essas empresas de engenharia têm práticas muito ruins, mas uma coisa é pegar a pessoa responsável pela prática, o seu CPF, remover e fazer com que ela responda. Outra é inviabilizar o CNPJ, a empresa e as competências técnico-produtivas que essa empresa tem; foi o que aconteceu com a Lava Jato.
A nossa preocupação, como do resto da sociedade, é que esses bilhões de reais que vamos necessitar para a reconstrução sejam canalizados da forma melhor possível. Não existe solução mágica, mas os marcos que nós temos hoje, das leis de licitação etc., também não evitam a corrupção e certamente geram ineficiência.
Licitações com empresas pré-qualificadas
O que observo, também como gestor público – ocupo o cargo de vice-diretor da Faculdade de Ciências Econômicas –, é que, muitas vezes, as empresas que ganham licitações por menor preço não têm capacidade de fornecer os bens e serviços ou esses bens e serviços não têm qualidade. Para tanto, deveria haver um sistema monitorado pelos tribunais de contas ou pela procuradoria que fizesse um processo de pré-elegibilidade e seleção de quais empresas estariam aptas para participar de processos de concorrência. Por exemplo, determinar quais empresas de engenharia são aptas a fazer obras estruturais acima de certo valor. Essas já estariam “pré-avaliadas”. De forma que os órgãos de controle, como Tribunal de Contas e Ministério Público ou até auditorias privadas fariam trabalhos específicos de monitoramento, de como essas empresas estão atuando. O "grosso" das grandes obras públicas está concentrado em poucas empresas.
Atualmente, a lógica dos órgãos de controle é ir lá na ponta do setor público, ao invés de controlar quem está usando esse dinheiro. É necessário ter essa pré-seleção. No fornecimento de serviços e bens com o setor público da mesma forma. Outro exemplo é a questão da compra de passagem aéreas no serviço público, que fica concentrada em um pequeno grupo de agências que pratica valores acima do mercado. Por que não voltar para práticas que tínhamos no passado em que o dinheiro é distribuído para a unidade de gasto. Essa unidade de gasto, até um certo valor, vai comprar a passagem diretamente, porque vai querer economizar, quanto menor o valor da passagem, mais recursos e mais recursos vão sobrar, e assim sucessivamente. E ter um controle específico sobre esse gasto.
Mecanismos de controle do gasto público
Não necessariamente os mecanismos atuais de licitação resolvem o problema. Ajudaria a minimizar esse sistema que eu estou chamando de “pré-qualificação”. É pegar um conjunto de empresas robustas, idôneas e que vão ter uma fiscalização muito grande em cima delas e que vão ser pré-qualificadas para os processos licitatórios de tomadas de preços, para tirar desse mercado aventureiros e evitar licitações direcionadas.
Isso, de alguma forma, rompe com certos princípios jurídicos, de “impessoalidade”, porque vai ter uma pré-seleção, talvez alguns juristas possam interpretar assim. Mas isso gera também um ganho de economicidade, que é um princípio norteador da gestão pública. As regras, como estão, não permitem o Estado gastar, muito menos gastar com eficiência, além de não evitarem a corrupção. Portanto, é preciso pensar estruturas novas.
A solução de curto prazo vai ser a adoção de medidas de emergência que aceleram os processos. Eu não gosto muito dessa solução, mas aparentemente, é a que vamos ter. Será necessário centralizar o controle. O Governo Federal nomeou um gestor, o ministro Paulo Pimenta, para acompanhar, mas é muito provisório, deveria ter um outro mecanismo.
Lembramos, na questão do Plano Marshall – foi o plano de reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra, tem sido muito aludido no momento. É uma boa analogia, mas ele só existiu porque os Estados Unidos subestimaram os custos de reconstrução e também na hora que foram colocar dinheiro, criaram um comitê para selecionar os projetos. Esse comitê depois se transformou no que hoje é a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE.
Algo que está conectado à questão anterior, para que se tenha racionalidade com a coisa pública, é a construção de políticas públicas, baseadas em estudos técnicos e estatísticas. Do ponto de vista econômico, como fazer isso no curto, no médio e no longo prazo?
Voltando um pouco para a ideia fundamental [do Manifesto]. As competências técnicas estão aí – no caso do Rio Grande do Sul –, assim como os dados e as pessoas sabem fazer, mas elas não estão organizadas de forma racional e funcional para tanto, por isso que estamos propondo a deia da construção de uma nova estrutura. Que não vai necessariamente implicar em gastos adicionais, porque as pessoas que fariam parte dessa Fundação de Estudos Estratégicos – essa é uma ideia de nome – já estão empregadas no Estado, em várias áreas, em “desvio de função”, ou seja, não sendo utilizadas no seu máximo potencial.
Essa instituição, com uma boa governança e com um mandato claro, pode articular, nas suas várias áreas novas a serem construídas, as inteligências que já estão na sociedade, nas universidades e nos centros de pesquisa para o enfrentamento e o desenvolvimento de projetos específicos. Por exemplo: precisamos reconstruir e deslocar pessoas de regiões que são mais expostas porque estão em áreas que podem ser inundadas em futuros períodos de chuva mais elevada – Vale do Taquari, dos Sinos, Porto Alegre, o que precisa ser feito e de que áreas de competência nós precisamos?
Vão ter equipes da Geografia, da Geologia, de estudos hidráulicos que vão nos mostrar quais áreas e em que circunstâncias são mais vulneráveis e como essa vulnerabilidade pode ser diminuída. Já existem ferramentas de georreferenciamento prontas para identificar quais populações precisam ser deslocadas. Outra equipe vai pensar a questão da urbanização. Temos competência nas universidades para fazer isso, não virá tudo do governo do Estado, mas tem de ter um órgão com um mandato para trazer as questões e a fazer as articulações de forma mais ágil. Além disso, tem que ter a parte da execução. Para tanto, tem os bancos de investimento e os setores de engenharia que vão poder fazer.
O planejamento não é algo que envolve longo prazo, tem de estar com aquela equipe mobilizada, trabalhando permanentemente, dando respostas para demandas diversas de curto prazo. Mas sempre com a capacidade de olhar para frente e pensar alternativas. Nós nunca sabemos quando isso vai ser necessário, como nessa crise. Dentro das universidades, por exemplo, nós temos essa competência e podemos entregar rapidamente.
O pessoal da Geografia organizou muito rapidamente uma ferramenta que qualquer pessoa pode usar e saber quais são as áreas que vão ser inundadas ou não – estou citando os casos da UFRGS porque são os que conheço, certamente as outras universidades estão fazendo também. O IPH conseguiu ter os modelos de previsão, que se mostraram extremamente apurados, do que vai acontecer, do ritmo e das hipóteses. São modelos matemáticos e computacionais que essas pessoas dominam e que rapidamente se transformou num instrumento de gestão. Quando houve a pandemia aconteceu a mesma coisa, os epidemiologistas da UFRGS, da Universidade Federal de Pelotas – UFPEL e de várias universidades estiveram na linha de frente para auxiliar nas políticas públicas.
Imagem de satélite divulgada pela NASA mostra a enchente em Porto Alegre
Não sabemos a crise do amanhã
Não sabemos qual vai ser a crise do amanhã. Mas sabemos que nós precisamos de alguma instituição dentro do Estado que não fique no dia a dia da gestão para "apagar incêndios". Essas pessoas vão estar permanentemente articuladas, analisando os vetores de risco, verificando oportunidades, para quando ocorrer uma crise, saber mobilizar. Se essa estrutura existisse hoje ou viesse a ser constituída hoje, no primeiro indício de evento climático extremo se poderia mobilizar as pessoas para dar as respostas, sobre o deslocamento das populações de uma região para outra, por exemplo. Na medida em que identificamos isso, saberemos o tipo de infraestruturas de que precisamos e quem consegue estabelecer os melhores parâmetros técnicos. É possível chamar o Banco de Desenvolvimento que consegue fazer isso, é esta a articulação para construir um planejamento para o uso dos recursos de longo prazo.
Renegociação da dívida gaúcha: a proposta é de “cair os butiás do bolso”
Vou dar um exemplo, mas eu fiquei até certa forma chocado ao ler o documento do Governo Federal que estabelece essa renegociação de dívida – cerca de 11 bilhões em um primeiro momento.
O governo do Estado vai deixar de pagar juros e o principal da dívida por um período de três anos e isso abre o espaço de R$ 11 bilhões. Quando se olha o documento, verificamos que o governo do Rio Grande do Sul terá um prazo de até 60 dias, a contar de quando se decretou calamidade pública, para encaminhar os projetos de investimento para o uso dos recursos.
Quando eu li aquilo, para usar aquela expressão, “os butiás caíram do meu bolso”. Porque ninguém tem condições de fazer projeto de investimento de nada, porque não se tem estimativa nenhuma. Agora, se nós tivéssemos que fazer projetos de investimento? Qual é o setor, qual é o órgão do governo do Estado que teria alguma competência para fazer isso? O governo do Estado está simplesmente desaparelhado para fazer esse tipo de coisa. Pode recorrer às universidades? Sim, em muita coisa poderemos ajudar, mas também sem um mandato para fazer isso, por voluntarismo, não vamos conseguir. O uso desses R$ 11 bilhões está atrelado a ter projetos de investimento. E o governo do Estado não tem nada disso, os governos locais, municipais, menos ainda. As únicas soluções que eles conseguem vislumbrar é contratar alguma consultora internacional para resolver o que eles não conseguem fazer, porque em alguma medida, estão paralisados por essa coisa ideológica, eles não acreditam que o Estado tenha que ter competências para fazer essas coisas. Tem que ter, não tem esse campo atual.
Deseja acrescentar algo?
A primeira observação, que eu peço a gentileza de registrar, é que vivemos uma crise humanitária. São mais de 150 pessoas já mortas, um número de desaparecidos, milhares de pessoas que estão fora de suas casas porque as perderam tudo e milhões de gaúchos que estão com uma enorme angústia e uma enorme incerteza sobre as suas vidas daqui para frente. Há que se ter um olhar muito atento para as necessidades de hoje e de amanhã, do dia a dia dessas pessoas; a nossa solidariedade total.
Quero registar também o imenso orgulho que eu tenho – certamente as pessoas da Unisinos, da PUCRS e de outras universais estão fazendo a mesma coisa – e é preciso fazer a referência à enorme mobilização que a comunidade da UFRGS, em todas as suas áreas de conhecimento, está tendo. Isso não é um mérito só da nossa universidade, mas quase todas as instituições estão mobilizadas e a sociedade está mobilizada para ajuda humanitária e para acolhimento. Na nossa área de educação física o ginásio está lotado, são centenas e centenas de pessoas abrigadas, sendo alimentadas, tratadas por profissionais da área da saúde. Cada unidade, especificamente, está atuando da forma que pode, não só ajudando as pessoas das suas específicas comunidades. Eu falo da economia, nós temos um grupo que está trabalhando exclusivamente para atender os nossos estudantes. As pessoas que ficaram sem nada, sem água, pessoas que são de fora do Estado, que tinham apartamento na Cidade Baixa [bairro de Porto Alegre afetado pelas inundações e onde está localizada a Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS], que não conseguem chegar nesse apartamento e foram deslocadas para um hotel. Nós estamos tentando conseguir moradias solidária ou recursos para pagar o hotel. Esse trabalho de formiguinha toda a sociedade está fazendo e nós também.
Além disso, estamos fazendo os trabalhos técnicos de debater, de criar ferramentas em várias áreas tecnológicas, do atendimento direto à população, em áreas como a saúde, todas elas. Então é só fazer esse registo de agradecimento a toda a sociedade do Rio Grande do Sul e em particular ao que a UFRGS, a PUC e a Unisinos, assim como outras instituições de ensino totalmente mobilizadas, trabalhando diuturnamente, estão fazendo. Nós não estamos dando aula porque não há condições de dar aula, mas não paramos de trabalhar um dia desde que essa crise começou.
Publicado originalmente em IHU Online.
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