Correio da Cidadania

Eleições de 2024 e o crime organizado: os centros viraram periferia

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O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do MP-SP, e o prefeito de SP, Ricardo Nunes (MDB). — Foto: Reprodução/TV Globo
O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do MP-SP, que acusou o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB, à direita) de omissão na investigaçao de 
relações de empresas de ônibus com o PCC. Reprodução TV Globo

As eleições têm se mostrado, cada vez mais, um espaço tácito para o avanço dos interesses de grupos criminosos em todo o país. Se até o início deste século as periferias eram vistas como locais socialmente reservados para que criminosos construíssem suas carreiras no mundo político, as eleições municipais de 2024 convidam o mundo a observar as capitais do Brasil como espaços igualmente sujeitos a essa disputa. Este texto se restringe às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, pois são locais nos quais transito rotineiramente e observo mais de perto. No entanto, sem recair em generalizações, apresento traços que podem ser replicados em outras realidades do Brasil.

No Rio de Janeiro, com o assassinato de Marielle Franco, expôs-se, mais uma vez, a intrínseca relação entre capital político e criminoso. Refiro-me aqui "mais uma vez" à CPI das Milícias, realizada em 2008, pelo então deputado estadual Marcelo Freixo, que transformou a luta contra as milícias em uma agenda nacional. Foi um fogo de palha. Como demonstrou a reportagem de Igor Mello, do UOL, por meio do estudo intitulado “Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro”, as milícias cresceram quase 400% em domínio territorial no estado entre 2006 e 2021. A deputada estadual Lucinha, do mesmo partido do prefeito Eduardo Paes, PSD, foi afastada do cargo por suposta relação com a milícia de Zinho, que aterroriza a Zona Oeste da cidade.

De acordo com as investigações do Tribunal de Justiça do Rio, Lucinha seria uma espécie de representante dos interesses do miliciano na Assembleia Legislativa. No âmbito federal, o deputado Chiquinho Brazão (hoje sem partido, mas anteriormente filiado ao União Brasil) pode ter seu mandato cassado por possível associação com a execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, em 2018.

No Rio, a lista de relações entre milícia e política institucional parece interminável. Porém, não é apenas a milícia que participa desse jogo. O então deputado estadual TH Joias (MDB), ao assumir a suplência do partido após a morte do deputado fundamentalista Otoni de Paula Pai, é investigado pela Polícia Civil por suposta lavagem de dinheiro para as três maiores facções do Rio: Comando Vermelho, Amigos dos Amigos e Terceiro Comando Puro.

Em São Paulo, o estelionatário Pablo Marçal utiliza o algoritmo para tergiversar sobre questões envolvendo a relação de seu partido com o PCC. Leonardo Avalanche (PRTB), presidente do partido e figura próxima de Marçal, teve um áudio vazado no qual afirmava contar com correligionários do Primeiro Comando da Capital. O chefe da Inteligência da Polícia Militar do Estado de São Paulo deu uma entrevista recente, na qual afirmou que a atuação do PCC nas eleições é “muito maior do que ele imaginava”. Os contratos públicos são disputados pela facção como uma forma de fazer e lavar dinheiro.

O braço econômico de grupos criminosos atua em simbiose com o braço político. Se, antes, na Baixada Fluminense, periferia do Rio de Janeiro, estudos foram realizados para compreender a contravenção e a atuação de grupos de extermínio no território com o respaldo de prefeitos, deputados e membros do Judiciário, algumas capitais estão sendo sequestradas pelas brechas do jogo democrático. O ilegal e o legal não são mais fronteiras distintas, mas duas faces da mesma moeda para aqueles que compreenderam a fragilidade da burocracia estatal e das regras da política institucional.

De maneira prática, a extensão do domínio desses grupos, cada um com suas características próprias, pode ser compreendida, de forma sintética, como resultante da regulação e prestação de serviços, da atuação em mercados ilegais de drogas, armas etc., da atuação em diferentes mercados legais, como o imobiliário e o financeiro, do controle de fronteiras e da disputa de contratos com o poder público.

No entanto, a compra de votos já não é suficiente. O que esses grupos buscam é a tomada — às vezes, a conquista — do próprio Estado para a execução de seus planos. Se as capitais dos centros urbanos já não conseguem conter o avanço desses grupos e a periferia deixou de ser o espaço privilegiado para sua atuação, a antítese para essa problemática ainda está longe de ser encontrada. Em um microscópio social, torna-se cada vez mais difícil delinear territorialmente as especificidades da atuação desses grupos, seja na periferia, seja no centro.

Tento emular aqui o que foi dito, com maestria, pela antropóloga e professora da UFRRJ, Carly Machado, na 34ª Reunião Brasileira de Antropologia, ao afirmar que, dependendo da perspectiva adotada, está cada vez mais difícil separar a periferia do centro. De maneira prática, ela afirma: “na verdade, podemos dizer que é tudo Baixada!”.

 

Augusto Perillo é periférico, sociólogo, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRRJ e um dos autores do livro “Desaparecimento Forçado: Vidas Interrompidas na Baixada Fluminense”.

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