Pai de Santo tenta se eleger num Rio de Janeiro abandonado e cercado de violência religiosa
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- Gabriel Brito, da Redação
- 01/10/2024
Uma cidade desolada após anos de bonança econômica exterminados pelo golpismo que reinstalou a ideologia do Estado mínimo no Brasil. Este é o Rio de Janeiro que chega às eleições municipais, após agravamento de crises sociais, como moradia, transporte e saúde, além da emergência ambiental associada ao modelo de desenvolvimento que marca o ano de 2024. No meio disso, um aumento da violência religiosa diretamente relacionado ao poder evangélico na cidade, que atravessa as fronteiras da legalidade. É neste cenário que se insere a candidatura de Pai Dário Onísègun, que tenta ser o primeiro pai de santo da câmara dos vereadores.
Na entrevista ao Correio, pai Dário descreve um cenário comum a quase todas as grandes cidades brasileiras. Governadas por políticos ligados ao privatismo e de mandatos quase inexpressivos, às vésperas da eleição o discurso de corte de gastos some e uma série de intervenções do poder público é realizada. Por um instante, suspende-se a agenda que inviabiliza qualquer gestão pública focada em bem estar social, suas políticas de austeridade e regimes de recuperação fiscal paralisantes. De repente, o Estado tem dinheiro.
“O Rio está todo maquiado. Há viaturas novas na rua, espaços públicos estão cercados em obra, manutenção. Por que só agora, do meio do ano para cá? Mas o transporte público de massa continua o mesmo, as pessoas continuam esperando o mesmo tempo. Não adianta maquiar nada agora. A poucas semanas da eleição, tudo começa a acontecer e ser movimentado na cidade. Porém, a cidade precisa ser movimentada e as pessoas precisam ser atendidas sempre. Na saúde, todos precisam de bom atendimento. A clínica da família precisa funcionar sempre. Os teatros, os espaços de cultura, as lonas e arenas culturais precisam funcionar”, criticou.
Candidato que representa a religiosidade de matriz africana e sua cultura, pai Dário também é assumidamente gay, o que o coloca como alvo direto do ódio instalado o país pelas direitas brasileiras. No caso do Rio, um epicentro de conservadorismo, fundamentalismo religioso e crime organizado no comando da cidade, a situação é particularmente agressiva em relação a figuras como o babalorixá, que foi alvo de ameaças recentes. E há uma espécie de anuência silenciosa da prefeitura de Eduardo Paes, que se vende ao público como uma figura tolerante e amigo de uma cultura popular frequentemente agredida por tais expressões político-sociais.
“Estou falando de território. De pessoas de religião de matriz africana que precisam, dentro do Rio de Janeiro, sair do seu local de nascimento. Terreiros com 50, 60 anos de existência que foram agredidos. Num contexto onde se tem facção criminosa formada por pessoas que falam em “soldados de Jesus”, “Complexo de Israel”, essas pessoas e expressões culturais ou religiosas saem, já que não podem professar sua fé, andar com a sua roupa ritual. E essa prefeitura não faz um movimento para que isso seja cuidado. Além disso, os líderes religiosos que ocupam cadeiras no parlamento, e são muitos, não conseguem passar uma mensagem clara aos seus fiéis”.
Na visão de pai Dário, os tempos são difíceis e mesmo a vitória de Lula em 2022 pouco alterou a rota de esgarçamento social e ambiental que vive o país. Representante de movimentos sociais e culturais, tem clareza de que o caminho para mudanças sociais está quase interditado na via institucional, mas diminuir o monopólio político de alguns grupos tem efeitos práticos.
“Não é só a eleição que muda o país, mas contribui muito porque colocar pessoas que representam lugares e movimentos sociais incide na realidade. Nós que viemos de movimento social precisamos. E cada um levanta a sua bandeira. Precisamos ocupar o lugar de ‘candidatos enlatados’, isto é, alguém preparado para ser um político profissional, mas que não sabe o que está fazendo”, afirmou.
Confira a entrevista completa com Pai Dário Onísègun.
Correio da Cidadania: Como está o cenário eleitoral do Rio? Há possibilidades de avanço de figuras progressistas na Câmara de Vereadores, num contexto onde a eleição para a prefeitura parece decidida?
Pai Dário: Só existe eleição ganha depois que se conferem as urnas. E a cidade está muito acostumada com um prefeito que bota fama de bon vivant. Isso o Eduardo Paes faz muito bem. Mas isso não significa que não possamos reagir, não só contra o Eduardo Paes, mas principalmente contra o bolsonarismo que está aqui, como está no Brasil inteiro.
De algum modo, tentamos com as nossas forças, com a nossa ideologia, parar isso. Com relação à câmara, nosso campo progressista e de esquerda precisa começar a entender que todas as campanhas são válidas, seja ela majoritária (executivo) ou proporcional (legislativo). Estamos falando de uma cidade cuja câmara tem um número mínimo de mulheres. De 51 cadeiras, só 11 ocupadas por mulheres. Uma cidade que não tem um vereador eleito LGBTI assumidamente, um Pai de Santo. Precisamos dar uma virada de chave que sirva de exemplo para o resto do país.
Hoje, a eleição para vereador é uma coisa feita por bairros, por setores. É como se cada bairro e setor da cidade tivesse seu próprio programa, dada a diversidade de necessidades entre si. A minha candidatura, para além disso, vem com uma cara muito específica, que é o povo de terreiro, o povo de axé, do candomblé, da umbanda, das religiões de matriz africana, que sofrem muito dentro dessa cidade, com preconceito, racismo religioso e todo um histórico de intolerância religiosa, pois essas expressões são agredidas já há algum tempo.
O fundamentalismo religioso vem crescendo a cada dia dentro dessa cidade e deixamos de ter espaço. Para além disso, eu sou um homem ligado à cultura, à arte, à educação, tenho mil projetos de trabalhos enquanto movimento social, enquanto pessoa física, enquanto Babalorixá, que é o sacerdote de religião de matriz africana. Agora estou me colocando para representar este setor na vereança do município do Rio de Janeiro, justamente porque acredito nessa mudança.
Correio da Cidadania: Quais seriam as áreas e temas gerais onde uma câmara dos vereadores com sua presença poderia atuar positivamente?
Pai Dário: O Rio de Janeiro, de fato, é uma cidade maravilhosa, cartão postal, mas precisa ser maravilhosa de verdade para todo mundo. Quando eu me coloco no lugar de um homem preto, favelado, LGBTI, um homem de terreiro para disputar esse lugar, é porque essa diversidade precisa acontecer no parlamento também. Temos uma bancada enorme da Bala, da Bíblia, do Boi, em todos os lugares. No Rio de Janeiro não é diferente.
A cidade é majoritariamente preta, mas cadê esse empretecimento nos poderes dessa cidade? O maior espetáculo da terra está dentro do município do Rio de Janeiro. E o que deixa para o meu povo, que constrói esse espetáculo? O que fica depois que passa a semana do carnaval? A cidade precisa dialogar e ouvir, talvez até ouvir mais do que dialogar, com quem a constrói todos os dias.
Quem movimenta a cidade, quem mobiliza a cidade, são as pessoas como eu, os favelados, os que moram nas periferias, os mais pretos, os mais pobres, que de algum modo só somos lembrados em época de eleição ou no carnaval. Eu não quero ser lembrado só no carnaval. Eu quero ajudar a legislar para a cidade, porque estou dentro da cidade, eu faço parte disso.
Correio da Cidadania: Políticas culturais seriam um foco de seu mandato no sentido de serem um bom caminho para a inclusão social e econômica?
Pai Dário: Quando falarmos de educação, devemos cumprir a lei nº 10.639, e inserir cultura e história africana nas escolas de ensino médio e fundamental, também em creches, asilos e orfanatos. Através da arte-educação chegamos em espaços onde muitas vezes o poder público não chega, como se vê em nossa experiência com a Companhia de Aruanda.
Como membro do movimento cultural de Madureira, terra do jongo e do samba, destaco que a cidade, que tem o segundo maior PIB do país, não chega a 2% de orçamento para a cultura. Como uma cidade vendida enquanto referência e patrimônio cultural não reconhece, não valoriza a sua própria cultura? Não só escolas de samba, são também rodas de jongo, os artistas populares, pessoas que às vezes não conseguem se inscrever num edital, porque o edital é exclusivo, não inclusivo. Deve-se ter determinado tempo de CNPJ, e outras exigências que afastam. Gente que tem um trabalho lindo numa praça pública, mas não tem um CNPJ, fica fora. O edital é preparado para que não se consiga fazer inscrição.
Falo isso pois tive, com o perdão da frase, de me capacitar e institucionalizar no que hoje chamamos de Companhia de Aruanda, a fim de escrever um projeto e captar recursos para trabalhar com arte, educação e cultura. Colocar um espetáculo dentro dos teatros hoje é dificílimo, porque são as mesmas companhias que ocupam os mesmos espaços, os horários nobres, ganham os mesmos editais. Não tem alguma coisa errada aí? Precisamos de alguém que vá legislar para o povo.
Não dá para o Rio de Janeiro do tamanho que é, com a diversidade cultural que tem, ficar preso a um único grupo. Sempre são os mesmos que ganham os mesmos editais e não tenho nada contra nenhuma companhia que ganha edital. Mas sou da política quilombola, que pensa em compartilhamento, pensa que todo mundo precisa ser atendido, desde quem mora na zona sul até quem mora em Santa Cruz, Sepetiba, bairros esquecidos. Madureira, de onde venho, ainda é famoso pelo samba, o jongo, mas existem bairros com uma população enorme que não estão bem cuidados.
Correio da Cidadania: Como avalia a atuação desta mesma câmara nos últimos anos e nesta legislatura?
Pai Dário: O Rio está todo maquiado. Há viaturas novas na rua, espaços públicos estão cercados em obra, manutenção. Por que só agora, do meio do ano para cá? Mas o transporte público de massa continua o mesmo, as pessoas continuam esperando o mesmo tempo. Não adianta maquiar nada agora. E aí eu quero ver em janeiro, por exemplo, depois que passar a eleição, ou já em novembro.
Repito: as coisas têm de ser feitas para todo mundo. A poucas semanas da eleição, tudo começa a acontecer e ser movimentado na cidade. Porém, a cidade precisa ser movimentada e as pessoas precisam ser atendidas sempre. Na saúde, todos precisam de bom atendimento. A clínica da família precisa funcionar sempre. Os teatros, os espaços de cultura, as lonas e arenas culturais precisam funcionar.
Outra coisa importante é ter um funcionalismo público para esse lugar, não pode funcionar como acerto político partidário. Se estou legislando, governando um espaço, não pode ser o meu partido político que vai governar aquilo ali. Precisa ter um funcionário público, concursado, capacitado para reger, tomar conta, dirigir ou coordenar um espaço público.
Não dá pra ser um lugar onde só é aceito aquilo que convenha ao partido que governa no momento. As ruas do centro da cidade estão tomadas por pessoas em situação de rua. E a prefeitura tentou criar um sistema de internação forçada de tais pessoas. O que é isso? A prefeitura precisa ter uma rede de apoio com assistente social, isso sim.
Além disso, por que tais pessoas estão em situação de rua? Ninguém deve tirar as pessoas da rua à força para levar ao abrigo, mas vamos dialogar para entender o que está acontecendo. E 80% dos abrigos da sociedade são evangélicos. Nada contra o evangélico. Mas por que uma denominação religiosa abriga essas pessoas? Porque é um outro acordo político. Acredito que possamos juntar a política com religiosidade, sim. É o que estou fazendo quando levanto a bandeira do povo de terreiro. Mas não podemos pegar uma denominação religiosa, promover seus interesses particulares e fazer dela a cereja do bolo da campanha de ninguém.
Correio da Cidadania: Há uma política de privilégio tácito a igrejas evangélicas na gestão Paes?
Pai Dário: O espaço religioso precisa ser cuidado como espaço religioso, até porque o Estado é laico. Por um Estado laico é que eu me coloco nesse momento, nesse lugar, como pai de santo, como Babalorixá, por conta desses últimos quatro anos, quando o número de crimes e episódios de intolerância religiosa só aumentou.
Estou falando de território. De pessoas de religião de matriz africana que precisam, dentro do Rio de Janeiro, sair do seu local de nascimento. Terreiros com 50, 60 anos de existência que foram agredidos. Num contexto onde se tem facção criminosa formada por pessoas que falam em “soldados de Jesus”, “Complexo de Israel”, essas pessoas e expressões culturais ou religiosas saem, já que não podem professar sua fé, andar com a sua roupa ritual. E essa prefeitura não faz um movimento para que isso seja cuidado.
A cidade precisa tomar conta de todos os territórios. Mas tem alguma coisa acontecendo que precisamos entender. Para além disso, os líderes religiosos que ocupam cadeiras no parlamento, e são muitos, não conseguem passar uma mensagem clara aos seus fiéis: parem de tacar pedra no semelhante, parem de agredir as pessoas de terreiro, parem de remover, de tirar as pessoas da força de forma brutal dos seus territórios.
Correio da Cidadania: Como observa essas eleições municipais no meio do mandato de um presidente eleito pela esquerda em um contexto social, econômico, ambiental, institucional tão duro como o que se vive hoje no Brasil?
Pai Dário: Estamos passando por um processo muito ruim, mesmo com a vitória de um candidato de esquerda nas eleições presidenciais. Mas a carga do impeachment e do golpismo continuem pesadas. Nem precisa dizer o que foi o mandato do inominável, o número imenso de mortes na pandemia o fascismo que ele desperta em grupos que flertam com o terrorismo. Eles já existiam, estavam dormindo, acordaram e ganharam força. Agora, se não tivermos uma esquerda pensante e unida pra combate-los, não adianta nada ter o Lula na presidência.
Vemos que a situação geral não está nada maravilhosa, como deixa evidente a crise climática e outras questões, como economia, dentro de um contexto de forte influência das direitas neste e outros temas. Mas me coloco na esquerda politicamente porque é onde vejo possibilidades de futuro melhor. E acredito na importância de criarmos um processo político que possa eleger, por exemplo, um pai de santo, quilombolas, homens e mulheres pretos, por todo o país.
Afinal, se pudemos construir esse país, também podemos legislar e sabemos comandar. Esse país é construído por mãos de homens e mulheres pretas. Por que não podemos tirar a mão do cimento e colocar na caneta? Passou da hora.
Correio da Cidadania: Diante de todas as crises e dilemas aqui mencionados, ainda é possível modificar a realidade das desigualdades estruturais do país por meio das instituições, no atual estágio de predomínio do capital sobre os sistemas políticos tradicionais?
Pai Dário: É um momento onde todos os dias sofremos todos os tipos de preconceito. Eu acabei de sofrer um ato de intolerância religiosa a 200 metros da minha casa. A pessoa que pichou o meu carro poderia ter me dado um tiro ou uma facada. É um momento muito delicado. Vemos um circo de horrores e barbárie todos os dias na TV, promovido por quem gosta disso pra vender e, de forma dissimulada, fazer campanha para certas candidaturas.
Mas tem jeito, sim. Não é só a eleição que muda o país, mas contribui muito porque colocar pessoas que representam lugares e movimentos sociais incide na realidade. Nós que viemos de movimento social precisamos. E cada um levanta a sua bandeira. Precisamos ocupar o lugar de “candidatos enlatados”, isto é, alguém preparado para ser um político profissional, mas que não sabe o que está fazendo. Assim não conseguimos mudar nada.
Nada está crescendo e avançando. Ainda assim, realmente acredito na representatividade. Quando se tem um candidato preto, uma candidata preta, um candidato LGBTI, um candidato de terreiro, um candidato quilombola, a sociedade passa a olhar tais setores de um jeito diferente e quem se identifica também se sente de forma diferente.
Mas não é só eleição que muda a realidade. Investir em movimento social, em arte e educação na juventude é algo que precisa ser feito sempre, diariamente. É fundamental investir na juventude. Por fim, precisamos governar para o todo social e suas distintas representações, acabar com a cultura dos acordinhos de espaço no poder de grupos específicos, que fazem dessa forma de atuação política um fim em si mesmo.
Gabriel Brito é jornalista, repórter do site Outra Saúde e editor do Correio da Cidadania.
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