Correio da Cidadania

João, o neutro

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Segundo filho do ex-governador Eduardo Campos e bisneto de Miguel Arraes, João Campos (PSB) talvez seja a figura política mais expressiva das eleições municipais de 2024; junto, certamente, com o liberal caricato Pablo Marçal (PRTB). Se o último movimentou o campo político da extrema-direita brasileira, questionando a hegemonia bolsonarista a partir de São Paulo, o primeiro traz esperanças de renovação do mal chamado “campo progressista” (atualmente abarcando figuras da direita moderada ou centro-direita até a centro-esquerda ou esquerda liberal) (1). Esperança que, do ponto de vista eleitoral, se faz necessária diante do natural envelhecimento da principal figura desse campo político: o presidente Luiz Inácio ‘Lula’ da Silva (PT).

Aliando jovialidade com uso brilhante das redes sociais (em especial o Instagram e o TikTok, populares na atualidade) João Campos conseguiu modernizar e atualizar uma oligarquia e/ou clã político que vinha dando sinais de decadência em Pernambuco.

Depois da morte trágica de Eduardo em 2014, patriarca de uma oligarquia que se desenvolveu após o falecimento de Miguel Arraes, o clã Campos conseguiu superar e subordinar a família Arraes aos seus interesses. Eduardo Campos passou a ser o herdeiro político direto do avô que, nos anos 1960 junto com Leonel Brizola e tantos outros, cumpriu um papel importante de politização e mobilização das massas populares no contexto pré-golpe. Vale lembrar que Miguel Arraes defendia abertamente pautas históricas da classe trabalhadora brasileira, como a reforma agrária, infelizmente esquecida na linguagem política da atual esquerda (liberal) brasileira.

A oligarquia Campos chegou ao poder em Pernambuco em 2007. Juntando os dois governos de Eduardo Campos (2007-2014) e os dois de Paulo Câmara (2015-2022) foram 15 anos do PSB no Governo do Estado de Pernambuco. Somado a isso, o PSB dos Campos está na Prefeitura do Recife desde 2013, somando duas gestões de Geraldo Júlio (2013-2020) e agora as duas de João Campos (2021-atualidade). São mais de 10 anos do partido no comando da capital pernambucana. As desastrosas e impopulares gestões de Paulo Câmara no estado e Geraldo Júlio no município quase fizeram João Campos perder da prima, Marília Arraes, a prefeitura do Recife nas eleições municipais de 2020.

Em 2022, o candidato do PSB ao Governo do Estado, Danilo Cabral, amargou a modesta 4º posição. O PSB-PE (principal estado do PSB nacional) e a família Campos davam claros sinais de esgotamento no seu principal curral eleitoral. Mas as elites políticas nacionais têm uma capacidade ímpar de se renovarem e essa renovação chama-se João Campos.

Alinhado ao contexto societário atual em que as redes sociais têm impacto forte no cotidiano das pessoas, principalmente entre a população mais jovem, o penta-neto do Barão de Vila Bela (título nobiliárquico concedido a Domingos de Sousa Leão, senhor do Engenho Caraúna, atual Jaboatão dos Guararapes) após um início de gestão tímido ganhou um banho de marketing e conseguiu simpatia da população. Junto a isso, recebeu vultosos empréstimos em Washington via Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (2), considerado pela instituição como o maior para um município no mundo. Com sede no coração dos EUA, o BID foi fundado em 1959 como extensão da política imperialista norte-americana. No contexto histórico específico de Guerra Fria, buscou investir na redução da desigualdade na América Latina e Caribe diante do avanço do movimento socialista e comunista no continente. Esse mesmo BID segue liberando crédito no Brasil, sendo um dos braços dos interesses econômicos dos EUA no país.

O fato é que com tais investimentos externos, João Campos vem tocando obras públicas diversas na cidade do Recife. Várias com impacto positivo direto sobre a população periférica, como as obras envolvendo encostas (3). O foco na região dos morros dialoga com situação crítica enfrentada em Recife (e também por diversos municípios da Região Metropolitana) no ano de 2022, considerada pela mídia local como a maior tragédia ambiental do estado (4). Também dialoga com as notícias que, no mesmo período das chuvas em 2022, denunciavam o baixíssimo investimento das gestões do PSB nas áreas de risco da cidade (5).

Em suma, a oligarquia Campos estava com a corda no pescoço e os anos de 2023 e 2024 serviram para limpar a imagem de João Campos e utilizar os investimentos externos para amenizar o desgaste acumulado.

João Campos não só amenizou o desgaste como hoje se mostra como uma atualização de seu clã político. Uma atualização com impacto municipal a curto prazo, estadual a médio prazo (hoje ele é a figura que mais pode dificultar a reeleição da Governadora Raquel Lyra do PSDB) e nacional a longo prazo. Mas é uma renovação de modo, não de ideias. Assim como seu pai foi outrora, João Campos surge como uma figura técnica (sem vinculação com movimentos sociais, apenas tendo uma legenda partidária em que domina) e não se filia ideologicamente a nenhum lado.

Se por um lado Eduardo Campos começou sua vida política nas mãos do avô Miguel Arraes, tendo relações inicialmente amistosas com Lula, de quem chegou a ser seu ministro, por outro foi o mesmo responsável por uma aliança oligárquica ampla em Pernambuco (contendo famílias como os Lyra de Caruaru, os Coelho de Petrolina e todo o latifúndio pernambucano) e por flertes com Aécio Neves no contexto da eleição presidencial em 2014. Flerte que se confirmou após seu falecimento, vide o apoio do PSB à candidatura tucana no 2º turno daquele pleito.

A mesma relação de amor e ódio com o PT que Eduardo Campos teve em vida, vem sendo repetida pelo filho. Se em 2024 João Campos teve apoio do PT na chapa, em 2020 venceu com forte discurso antipetista e apoiando, de forma oportunista, o projeto nacional de desenvolvimento de Ciro Gomes (PDT).

O perfil técnico de Eduardo Campos, baseado em 2014 num discurso abstrato e vazio de “nova política”, é repetido pelo filho que quando questionado não se coloca como de direita e nem de esquerda. Muito pelo contrário, ele se coloca como eficiente porque entrega obras. O banho de marketing que o atual prefeito do Recife ganhou, investindo cerca de 1 milhão de reais em publicidade, expõe nas redes sociais um político técnico que faz vistoria em obras públicas e explica à população sobre essas construções usando seu conhecimento como engenheiro civil. Também se coloca como uma figura próxima do povo, apoiando expressões culturais periféricas (como o brega-funk) e surfando bem na onda de “memetização” que perpassa a sociedade brasileira. Os recursos adquiridos também serviram para realizar alguma política de valorização do funcionalismo público municipal, maltratado pelo PSB até pouco tempo.

Enquanto realiza e vistoria obras públicas com financiamento externo, João Campos segue a cartilha neoliberal na economia em que entrega até parques públicos para a iniciativa privada, via Parcerias Público-Privadas (PPP), bastante praticadas e defendidas pela centro-esquerda ou esquerda liberal. Um modelo que baseou as construções envolvendo as arenas para a Copa do Mundo FIFA 2014 no Brasil, revelando a verdadeira farra com o dinheiro público.

O loteamento do que deveria ser responsabilidade estatal também é observado nas creches da cidade em que João Campos se orgulha de ter ampliado o número de vagas. Tal modelo de gestão do capital é praticado também pelo Governo Federal, aliado do prefeito do Recife. Fato que fez a candidatura supostamente à esquerda de João Campos para a Prefeitura do Recife, a psolista Dani Portela, se silenciar diante de tais práticas, resumindo sua campanha a denunciar as antigas rixas do prefeito com Lula. Tendo em vista todo cenário acima de repetições de práticas, mas com novos modos e personagens, justifico João Campos como “fenômeno” entre aspas. Ou seja, um falso fenômeno.

Se nessas eleições municipais de 2024 podemos afirmar que em São Paulo o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL) busca se mostrar uma atualização de Lula (como uma figura de origem nos movimentos sociais que ameniza o discurso com intenções meramente eleitorais) e Pablo Marçal revivifica Jair Bolsonaro, o cenário recifense desenvolveu uma atualização do clã Campos em que o filho segue os passos do pai. Passos que não buscam politizar a sociedade brasileira e pernambucana com base na defesa de pautas históricas, como realizou outrora Miguel Arraes. Apenas uma mudança de velhas práticas em que o vocabulário neoliberal como “eficiência” e “gestão” (ou gestão eficiente), baseada em obras públicas, esconde bandeiras que a esquerda abandonou a partir do processo de redemocratização.

As perguntas que ficam são as seguintes: qual o prazo de validade dessas “obras eficientes”? Qual modelo de sociedade é defendido por quem se coloca como “nem de esquerda nem de direita, faço obras”? Afinal, o que significa ser de esquerda? Seria realmente defender um projeto de transformação da realidade, seja por um viés revolucionário ou reformista, ou apenas reproduzir um discurso abstratamente progressista baseado na defesa de políticas sociais compensatórias?

Por último, enquanto as bandeiras históricas são abandonadas e desconhecidas pelas novas gerações, sendo tudo reduzido ao menos pior de políticas sociais compensatórias de impacto não estrutural, a esquerda enquanto campo político vai se desfigurando ideológica e politicamente. E nesta desconfiguração, o debate ideológico é vencido cada vez mais pela extrema-direita que atualiza seus quadros mantendo suas bandeiras históricas como o anticomunismo tosco, o ataque sistemático aos direitos trabalhistas, o avanço das privatizações em setores estratégicos da economia, ódio gratuito a minorias sociais etc. Também é vencido pela direita dita moderada, aliada eleitoralmente a tais setores progressistas e com eles se misturando cada vez mais.

Já do nosso lado, a renúncia a históricas pautas é acrescida pela ilusão de que o primeiro político de verniz técnico com alguma preocupação social já pode ser considerado exemplo de renovação qualitativa do campo político. Se assim for é porque o critério é baixo e estamos perdidos.

Notas

1) Tomo como centro-esquerda ou esquerda liberal um campo político que se afirma, abstratamente, como “progressista”, mas objetivamente não se enquadra dentro de uma esquerda reformista e muito menos revolucionária. Praticam a administração do capitalismo dependente com um discurso mais inclinado a minorias sociais, programas sociais e coisas do gênero. Entretanto, isso não se configura numa defesa de pautas históricas como reforma agrária, urbana, bancária, fiscal, reestatização de setores estratégicos da economia etc.

2) Prefeitura do Recife assina contrato de R$ 2 bilhões em Washington. https://www2.recife.pe.gov.br/noticias/15/05/2023/prefeitura-do-recife-assina-contrato-de-r-2-bilhoes-em-washington .

3) Prefeitura do Recife entrega 100º obra de contenção de encostas. https://www2.recife.pe.gov.br/noticias/10/06/2024/prefeitura-do-recife-entrega-100a-obra-de-contencao-de-encosta 

4) Maior tragédia do século em Pernambuco, mortes pelas chuvas de 2022 superam total da cheia de 1975. https://www.folhape.com.br/noticias/maior-tragedia-do-seculo-em-pernambuco-mortes-pelas-chuvas-de-2022/228963 

5) Recife executou 17% do previsto para áreas de risco. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/06/em-10-anos-recife-usou-17-do-previsto-para-melhorias-em-areas-de-risco.shtml#:~:text=Recife%20e%20Curitiba,locais%20de%20encostas%20e%20alagados .

Itamá do Nascimento é cientista social e historiador. Mestre e atualmente doutorando em Sociologia pela UFPE.

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