Dilapidação do legado da natureza
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- Joaquim Francisco de Carvalho
- 24/04/2008
No Brasil, fala-se muito, mas se faz pouco para preservar o legado da natureza. O estado do Rio, por exemplo, já foi coberto por uma floresta exuberante, que ia até o interior de Minas Gerais, pela altura da cidade de Borda do Campo (atual Barbacena). Em algumas décadas de exploração desenfreada, mudou-se profundamente o panorama da região, com a floresta cedendo lugar a uma vegetação raquítica e retorcida, semelhante à do cerrado.
É verdade que as árvores derrubadas geraram riqueza, já que foi delas que veio a energia para alimentar por muitos anos as nascentes indústrias siderúrgicas fluminenses e mineiras. Mas foi uma riqueza que já acabou. E agora?
Numa conferência que fez em fevereiro de 1959, na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, intitulada "O homem e seu planeta", Aldous Huxley lembrou muito oportunamente o aforismo de Chateaubriand: "Les forêts précedent les peuples et les déserts les suivent". É o que estamos vendo acontecer em algumas regiões brasileiras, depauperadas pelo desmatamento. As populações, à míngua de meios para subsistir, vão aos poucos migrando para as cidades e deixando para trás o deserto estéril. A mesma coisa aconteceu há muitos séculos no Norte da África e depois na Ásia Menor, regiões que já foram cobertas por florestas.
Quem nunca ouviu falar das florestas de cedros do Líbano? Na construção do templo de Jerusalém, foram usadas vigas e pranchas de cedro, mediante um tratado celebrado pelo rei Hiram I, de Tiro, com o Rei Salomão, pelo qual as vigas e pranchas de cedro eram trazidas até a costa do Líbano e levadas de balsa para os portos indicados por Salomão, para serem arrastadas até Jerusalém, de onde, aliás, uma parte seguia para o Egito, local em que há palmeiras, mas não árvores adequadas para a construção. Hoje, os poucos exemplares de cedros daquela espécie que sobraram são admirados como peças de museu nos dois ou três minguados parques florestais do Líbano.
No Extremo Oriente, entretanto, a exploração das florestas tem uma longa tradição. O scholar chinês Xu Guanggi (1562 – 1633) relata que, já durante a Dinastia Han e mais tarde na Dinastia Ming, os recursos florestais eram manejados de forma racional pelos senhores das terras. Mas a produção sustentada de madeira pelo manejo sistemático das florestas só começou no Japão por volta do século XVI.
No Ocidente, a silvicultura teve seus primórdios na Idade Média, ainda de forma rudimentar, quando as terras eram controladas pelos senhores feudais. A silvicultura como atividade econômica p1anejada teve suas bases científicas formuladas e desenvolvidas na Alemanha nos séculos 18 e 19. Toda a tecnologia alemã do século 18 baseava-se preponderantemente na madeira, a começar dos processos de mineração e refino de metais, que dependiam de troncos para suporte das galerias, e de carvão vegetal, para a redução dos minérios e geração de calor.
A madeira era o combustível universal, além de ser o único material de construção que se oferecia como alternativa à pedra e à alvenaria, nas casas e obras públicas. Era também um material muito adequado para a construção de navios.
Naquele país, até fins do século passado, a madeira era mais importante do que hoje são o aço, o carvão mineral, o petróleo etc. Não se podia, pois, permitir que as reservas florestais se esgotassem. Por outro lado, os economistas alemães compreenderam que, para comprar o mesmo bem, era melhor gastar dois marcos no país do que um marco no exterior, isto é, a auto-suficiência em todos os setores era vantajosa, mesmo a custos aparentemente elevados.
Nesse quadro, teve início o desenvolvimento de uma economia florestal sistemática. Já no começo do século 19, existiam, na Alemanha, cursos regulares de silvicultura, nos quais se destacavam grandes professores como Hartig, Cotta, Heyer e um de seus filhos. Um aluno deste, Bernard Edward Fernow, emigrou para os Estados Unidos e desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento da silvicultura à norte-americana.
A prática da exploração florestal predatória foi um dos traços característicos da cultura árabe, com reflexos evidentes em Portugal, Espanha e sul da Itália. No início do século XX, entretanto, esses países também começaram a reconstituir as reservas florestais de onde se retirava lenha e peças para a construção de casas e navios.
No Brasil, os primeiros estudos sobre a importância da madeira para a construção em geral se devem a José Bonifácio de Andrada e Silva ("Memória sobre a necessidade e utilidade do plantio de novos bosques em Portugal", Lisboa, Typ. da Academia de Ciências, 1813); a Baltazar da Silva Lisboa ("Riquezas do Brasil em madeiras de construção e carpintaria", Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1823); e a Francisco Freire Alemão ("Breve notícia sobre a colleção de madeiras do Brasil", Rio de Janeiro, Typ. Nacional, 1867).
Na prática, entretanto, só muito depois que as florestas começaram a ser exploradas de maneira predatória é que surgiu, em São Paulo, o nome de Navarro de Andrade, com o mérito de ter iniciado os reflorestamentos de grande escala, especificamente planejados para fornecer matéria prima florestal para as indústrias de celulose e para a Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Anos depois, veio, no plano federal, Luís Simões Lopes, que em 1937 concretizou os antigos planos e recomendações de botânicos, geólogos e geógrafos, tais como Alberto Loefgren, José Hubmeyer e o Barão Homem de Mello, criando o Parque de Itatiaia, que foi o primeiro parque nacional do Brasil.
Apesar do grande merecimento desses homens, seu esforço não foi bem compreendido e ficou quase isolado, não chegando a lançar no país as bases de uma verdadeira política de utilização racional dos recursos naturais renováveis, baseada em princípios conservacionistas e numa silvicultura desenvolvida de acordo com as condições brasileiras, seja no tocante à geologia, clima e botânica, seja no que diz respeito aos aspectos econômicos, fundiários e sociais.
Um passo importante para o estabelecimento de uma economia florestal-madeireira compatível com o potencial do Brasil foi dado em 1967, com a criação do IBDF (atual IBAMA), concretizando os trabalhos de um grupo interministerial, do qual participei na qualidade de coordenador e relator e que contou com a colaboração de Benedito Fonseca Moreira, então secretário executivo do CONCEX; José Maria Bello Lisboa, do Ministério da Agricultura; José do Nascimento Ceccato, do Instituto Nacional do Pinho; Edmar Vargas, da CACEX.
A criação do IBDF foi um passo importante para a solução do conflito institucional que existia entre os conservacionistas do Departamento de Recursos Naturais Renováveis do Ministério da Agricultura e os madeireiros, apoiados pelo Instituto Nacional do Pinho.
Mas foi insuficiente, como bem demonstra a progressiva devastação da Amazônia.
Joaquim Francisco de Carvalho foi presidente do IBDF (atual IBAMA).
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