Correio da Cidadania

Abolição tardia e inconclusa

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A 13 de maio de 1888 foi declarada extinta a escravidão no Brasil, revogadas as disposições em contrário. A chamada Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, marcava o tardio fim – em termos oficiais – da escravatura no único país das Américas onde a mesma ainda vigorava. São 120 anos de um ato de justiça que, no entanto, até hoje espera para ser plenamente concretizado.

 

Após uma longa campanha abolicionista e a assinatura de duas leis prévias à Lei Áurea – a Lei do Ventre Livre e a dos Sexagenários – era declarada extinta a escravidão no Brasil. Mas não se extinguia, assim, a questão, o problema nem o debate que continua tendo pertinência no país aparentemente alforriado. Pois, embora não exista mais escravidão no Brasil, o fato de tê-la tido por tanto tempo e até tão tarde marca sem dúvida o perfil brasileiro em relação à questão racial, fazendo com que o tema não deixe – tristemente – de ser mais do que atual.

 

O Brasil não é um país racista, mas, sem sombra de dúvida, ainda existe aqui o racismo. Não conhecemos o "apartheid" nos moldes sul-africanos, com guetos explícitos. E, no entanto, como deixar de reconhecer o "apartheid" social que segrega os pobres – dos quais muitos, tantos são afrodescendentes – nas periferias e favelas das grandes cidades, bem distantes da minoria branca, que vive amuralhada nos edifícios e condomínios de classe média?

 

Não temos nos transportes coletivos e públicos lugares reservados aos brancos nos quais os negros estão impedidos de sentar-se. Em nosso país, Rosa Parks – a corajosa militante negra norte-americana - poderia ter continuado seu trajeto no ônibus até o fim da linha sem ser instada a levantar-se para dar lugar aos brancos que subiam no veículo. E, no entanto, diversas moças como Rosa já passaram muitas vezes pela situação de, ao entrar em um prédio de apartamentos para fazer uma visita, serem conduzidas pelo porteiro à porta de serviço devido ao fato de serem afrodescendentes.

 

Em quantas batidas policiais – cada vez mais freqüentes em nossas cidades – muitos de nós não presenciaram, chocados, os afrodescendentes sendo brutalmente revistados e os brancos poderem seguir seu caminho tranqüilos? Ou quantas vezes uma mulher negra, ao preencher um cadastro, não é sequer indagada sobre qual é sua profissão, automaticamente registrada como "doméstica"?

 

Imensa dívida tem o Brasil para com os africanos que aqui aportaram depois de arrancados de suas terras e vendidos como escravos. Em três séculos de trabalho escravo, foram eles que ajudaram a construir as bases do desenvolvimento do país sem receber nada em troca a não ser o alimento para suportar o trabalho, a fadiga, os impiedosos castigos. À sombra da casa grande, a senzala era pasto dos mais diversos abusos, entre os quais talvez um dos mais graves tenha sido o sexual, com as jovens africanas devendo, ademais dos trabalhos domésticos, satisfazer os desejos sexuais do senhor e carregar-lhe a prole no ventre.

 

Cento e vinte anos depois, é tempo de reconhecer a dívida e lutar por políticas públicas que colaborem com a plena inserção dos afrodescendentes na vida cidadã e na plenitude de seus direitos civis. A abolição aconteceu legalmente em 1988. Hoje, no entanto, a lei assinada em 13 de maio requer um compromisso de todos para que seja efetiva e plena.

Último país das Américas a acabar com a escravidão, recordista mundial do tráfico de escravos africanos (cerca de 3,6 milhões de pessoas compradas e vendidas entre os séculos XVI e XIX), o fato é que nossa dívida para com os africanos e seus filhos e netos ainda não foi paga nem ao menos parcialmente.

 

A imensa maioria afrodescendente da população de um país onde o sangue africano corre na maioria das veias clama pela efetivação da igualdade anunciada na Lei Áurea. Os atabaques batem pedindo justiça. E a riqueza da cultura afro, presente no samba, na feijoada, na arte, na música, em tudo aquilo, enfim, que é o rosto do Brasil reconhecido no mundo inteiro só reforça essa urgência, que faz parte do verdadeiro "investment grade" ao qual o país deve aspirar.

 

Maria Clara Bingemer é autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor" (Ed. Rocco).

 

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