Lógica empresarial domina a saúde pública
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- Gabriel Brito
- 10/06/2008
Com uma saúde em crise, de qualidade, investimentos e transparência, o Correio da Cidadania conversou com o deputado estadual Raul Marcelo, do PSOL, a respeito de alguns temas correntes do setor.
Sub-relator da CPI dos gastos médicos no estado de São Paulo, Raul criticou a política de entrega da administração dos hospitais públicos ao setor privado - que se aplica através das chamadas Organizações Sociais, receptoras de investimentos públicos sem fiscalização alguma – e acusou as empresas beneficiadas de atingir as metas necessárias através da exploração de seus funcionários, que, sem estabilidade trabalhista, pouco podem fazer para reagir.
Aliás, essa lógica empresarial na prestação de serviço público é um dos pontos centrais das críticas do deputado, para quem o governo continua comprometido apenas com pequenos setores da sociedade, a quem interessariam a ineficácia do sistema público de saúde e a destinação do grosso do orçamento governamental para o pagamento de dívidas das quais são os maiores credores.
Confira abaixo a entrevista completa.
Correio da Cidadania: Que balanço pode ser feito após a entrega do relatório da CPI da saúde?
Raul Marcelo: Apesar da situação crítica da saúde no estado de São Paulo, assim como no Brasil, fazemos um balanço positivo do trabalho desempenhado na CPI e do nosso relatório, que, em nossa avaliação, deu conta de elaborar um amplo diagnóstico da situação da saúde pública em São Paulo, em particular o processo de privatização do setor que ocorre no estado.
CC: E tendo como base a apuração e o relatório, qual a situação da saúde pública de São Paulo?
RM:Bom, a CPI ainda não terminou os trabalhos. Quinta-feira haverá uma reunião para discutir o relatório final. A avaliação nossa é que estamos passando por dois processos fundamentais aqui em São Paulo.
Primeiramente, a privatização dos hospitais que estão sob administração direta, ou seja, geridos por funcionários públicos e que sofrem terceirização interna. Como se viu no Emilio Ribas, no Conjunto Hospitalar de Sorocaba, nos quais quase todas as áreas estão na mão de entidades privadas. Esse é um ponto, inclusive recomendamos que se abra uma CPI específica para investigar as terceirizações dentro dos hospitais, dado o volume de dinheiro envolvido nesses contratos. Antigamente, terceirizavam-se serviços como faxina, segurança, essas coisas. Agora, a farmácia e vários setores do hospital é que são terceirizados.
O segundo ponto é a privatização direta, ou seja, o hospital inteiro é entregue ao que o governo chama de Organização Social, que, na verdade, é quase uma empresa privada e, apesar de ter entre suas cláusulas a impossibilidade lucro – para caracterizar uma Organização Social –, capitaliza recursos de outras formas de acordo com o estudo que fizemos. Por exemplo, os diretores dessas OS ganham super-salários, de 15, 20 mil reais. Qual o problema central? O estado de São Paulo tem 13 hospitais sob administração de OS, ou seja, não mais sob gestão de funcionários públicos.
No ano passado, o governo deu 1 bilhão de reais a esses hospitais e todos os recursos foram gastos sem nenhum tipo de controle público. Isto é, esse hospital que está sob administração de Organização Social não precisa fazer licitação para contratar nada.
Temos casos, por exemplo, de OS cujos diretores são donos de empresas que prestam serviços ao hospital. Eles contratam empresas deles ou de amigos sem licitação. E também não há controle popular, como prega o SUS. Trata-se de uma massa cinzenta sem transparência alguma, em que tudo é feito à base de indicações.
Por último, um fator nacional, temos que lidar com a generalizada falta de recursos na área da saúde.
CC: Dessa forma, pode-se dizer que a realidade dos hospitais, e dessas organizações em especial, é de pouca eficiência e fiscalização?
RM: Ineficiência não é tanto o problema. Na realidade, eles têm apresentado alguns dados de certas áreas cujos relatórios mostram que eles fazem mais atendimentos que o hospital sob administração direta. Uma quantidade pequena, mas superior à dos outros hospitais. Porém, o que acontece? Esse atendimento não sofre controle público, não há ninguém para fiscalizar, para saber se o atendimento de fato ocorreu ou não.
Outra questão é que essa suposta eficiência divulgada pelo governo é construída através da super-exploração do trabalho. Isso porque as pessoas que trabalham nas OS têm poucos benefícios, trabalham com contrato temporário. Essas organizações fazem as pessoas se matarem no serviço e, depois de três meses, as demitem, promovendo um clima de terror nos hospitais. Tanto é assim que, em nossas visitas aos hospitais, era difícil os funcionários conversarem conosco, pelo medo de serem mandados embora.
Portanto, a questão central das OS é a falta de transparência, de controle público, e a inexistência de licitações. Existe margem para desvios de todos os tipos. Por isso, em nosso relatório, defendemos a reversão do processo de entrega dos hospitais para as Organizações Sociais. E não estamos sozinhos, pois o próprio Conselho Estadual de Saúde liberou uma resolução na qual aponta a necessidade de reversão desse modelo.
Apesar de ser uma questão constitucional, com o envolvimento parlamentar, de prefeitos, governadores e do presidente, há também que se respeitarem os conselhos. No entanto, tanto o PSDB como a administração pública em geral no Brasil não respeitam os conselhos.
De toda forma, o relatório deles foi incluído no nosso relatório final, sendo que também apresentamos a mesma proposta feita por eles no ano passado. Estamos apenas à espera de mais dados e mais estudos para buscar uma reversão em todo esse processo.
CC: Como poderia ser feito esse processo de reversão e como o governo poderia direcionar as políticas em saúde pública?
RM: Primeiramente, esses empréstimos para os hospitais são todos com dinheiro público, esse bilhão de reais dado aos 13 hospitais. Com 1 bilhão de reais, o governo poderia contratar funcionários e equipar os prédios. Até porque vários deles já são do próprio governo.
CC: Sem ter de passar nada para terceiros.
RM: É claro. E fazendo isso de forma transparente, com concurso público, licitações para compra de material, coisas fundamentais. O que temos hoje é uma porta aberta para a corrupção.
CC: O fato é que as OS recebem um investimento crescente enquanto os hospitais sob administração direta vêem seus recursos diminuindo.
RM: O que acontece é que vem diminuindo o gasto com o funcionalismo público. É a política defendida pelo governo, a da diminuição do Estado, que acaba sendo substituído por esse tipo de prestação de serviços, sem controle público nenhum ainda por cima. A tendência de tal política é a deterioração no curto e longo prazo. É uma política defendida pelo PSDB, mas também pelo governo Lula e pelo ministro da Saúde, que defendem as organizações públicas de direito privado, como tem feito ultimamente o Ministério da Saúde. Porém, nesse caso, no plano federal, apenas com algumas diferenças.
Ao invés de colocarem dinheiro na saúde, algo fundamental, ficam arrumando formas de diminuir gastos. Qual o pulo do gato de entregar o hospital para certas organizações? É que, além de pagar menos salários, pois as pessoas não possuem direitos trabalhistas, fica mais interessante para o governo, já que não há a necessidade de arrecadar com a previdência, não sofre com gastos de longo prazo, enfim, não precisa fazer nada.
Portanto, na verdade, quem paga o pato é o trabalhador e o usuário do SUS. É um modelo que se constrói em cima da super-exploração, pois quem sustenta essa alteração política são os trabalhadores que têm seus contratos de trabalho precarizados.
CC: Além dessa precarização, não pode ser tido como grave o fato de esse modelo, cada vez mais aplicado, trabalhar com metas, configurando assim uma lógica empresarial?
RM: Isso mesmo, uma dita lógica de qualidade. Podemos ver que alguns desses hospitais dão alta muito rapidamente, algo extremamente questionável, pois não se sabe se o paciente poderia mesmo ser liberado.
CC: Um claro fruto das pressões por metas e resultados.
RM: Claro, e isso está no nosso relatório. E outra coisa: essas metas não sofrem um acompanhamento, uma fiscalização por parte dos hospitais. Na verdade, não sabemos se essas metas foram cumpridas de fato. Fazem um relatório, entregam para a Secretaria de Saúde e pronto.
CC: Secretaria de Saúde que, por sua vez, não forneceu os dados requisitados para a CPI, correto?
RM: Correto, vários dados não foram fornecidos. Há um mês a votação do relatório vem sendo suspensa na Assembléia, mas espero que nessa quinta-feira possamos discuti-lo, pois estão empurrando e atrasando todo o processo.
CC: De onde vem essa força para empurrar tudo com a barriga?
RM: Existe uma pressão por parte do próprio governo para que o relatório não seja aprovado, esse é o ponto central, pois, nesse caso, teria um impacto muito grande. Um relatório da CPI que aponte necessidade de revisão das OS não é pouca coisa.
E tudo isso sem contar as auditorias dos contratos do hospital Emilio Ribas, do Conjunto Hospitalar de Sorocaba, a necessidade de uma CPI específica para cuidar das terceirizacões, já que não pudemos dar conta dessa questão; enfim, vários temas.
CC: Com o limite de gastos imposto a cada ente da Federação, as OS não seriam, em tese, uma boa saída para incrementar investimentos na área?
RM: Na verdade, altera-se apenas a rubrica, pois o orçamento é um só. Saem recursos destinados a gastos com pessoal, os quais são direcionados para uma outra rubrica de investimentos, que é para onde vai esse bilhão de reais das OS. Portanto, não muda nada.
CC: E o fato de vermos empresas já terceirizadas contratarem outras empresas para serviços específicos não dificulta ainda mais a fiscalização e o controle dos gastos?
RM: Dificulta muito mais. E tem outro aspecto que prejudica ainda mais, o da ‘quarteirização’, algo também ocorrente. Para começar, a OS pega o hospital sem licitação, pois o governo ou o secretário de Saúde resolvem achar que essa determinada entidade tem competência para tal e pronto, entregam o hospital assim mesmo. Depois, esta empresa contrata outra para trabalhar dentro do hospital, e esta, por sua vez, contrata outras para certos tipos de serviço. Quer dizer, o que tem de gigolô da mão-de-obra não é brincadeira, é muita gente ganhando dinheiro à custa dos trabalhadores.
CC: Que justificativa o governo possui para não investir mais em saúde pública por meio de outros modelos?
RM: A justificativa deles é que esse modelo é mais eficiente, mais ajustado ao mercado. Tanto é assim que o governo do estado promove um processo de recuo na contratação de funcionários públicos, concursados. Isso porque tal tipo de funcionário tem estabilidade, pode se sindicalizar, é um funcionário ativo dentro da estrutura administrativa do estado. E com o trabalhador terceirizado não é assim, pois, se ele vê alguma coisa errada e levanta a voz, é mandado embora sem justificativa. Para quem é contra a transparência, é muito melhor dessa forma.
CC: E por que se tem investido menos nos serviços de média e básica complexidade, os mais requeridos pela população, deixando-os na mão dessas organizações? É a força do interesse empresarial por trás disso também?
RM: Nessa questão, temos uma divisão. A prefeitura é a responsável pelo atendimento básico, mas os hospitais, que deveriam atender casos de média e alta complexidade, acabam fazendo o atendimento básico também, já que quase todas as prefeituras do estado não possuem uma rede básica estruturada.
E se formos falar de saúde pública no Brasil, com tudo aquilo que está na Constituição, precisaríamos ter um governo ajudando os municípios a construírem uma eficiente rede básica de saúde. Isso diminuiria muito os atendimentos em hospitais, que ficariam responsáveis somente pelo atendimento de média e alta complexidade. Porém, nada nesse sentido acontece, pois os convênios médicos, grandes financiadores de campanhas eleitorais, se envolvem na questão e fazem lobby para que o governo não invista numa rede básica de saúde.
Temos cerca de 40% das famílias em São Paulo com convênio médico, imagina o dinheiro que esse mercado movimenta. Se tivéssemos uma saúde universalista, como se fala, certamente esses planos médicos estariam falidos.
CC: Que caminho as políticas públicas deveriam tomar na área da saúde, caso o governo realmente pretendesse mudar o quadro atual?
RM: O fundamental seria cumprir a emenda 29, garantindo que todos os entes da Federação gastem ao menos o mínimo necessário com saúde, além de fazer um orçamento público que tenha capacidade de dar conta da contratação de pessoal, uma área essencial.
O estado de São Paulo vai pagar de juros da dívida pública, que nunca foi investigada, 8 bilhões de reais, conforme previsão para este ano. Se com 1 bilhão dá para sustentar 13 hospitais, calcule o que seria possível fazer com 8 bilhões. Pelo menos com metade disso já poderíamos ampliar, e muito, a rede do estado.
Portanto, recursos existem, o problema é o comprometimento, que não sabemos até onde se estende, do governo paulista com os credores, que faz o estado trabalhar para pagar a dívida, ao invés de trabalhar para a maioria da população.
CC: Encerrados os trabalhos da CPI, o que você imagina que ocorrerá no curto prazo?
RM: Acima de tudo, estamos divulgando a questão. Foi o primeiro trabalho de fôlego a respeito das Organizações Sociais do estado de São Paulo, foco do relatório. Passamos por muitos lugares e a primeira contribuição que demos foi a de jogar luz sobre este tema, algo bem importante.
Agora, vamos acompanhar o resultado da CPI, mas, independentemente do que aconteça, a idéia é trabalhar para que a posição do Conselho Estadual de Saúde, e também a nossa, consiga eco na sociedade, no sentido de reverter esse processo. E, se possível, vamos protocolar um pedido de nova CPI no próximo ano, para investigar as terceirizações do estado.
CC: Partindo para uma discussão que está no plano federal, o que você pensa a respeito da criação da CSS (Contribuição Social para a Saúde)?
RM: Vejo como mais uma forma de não atacar o problema. O governo de São Paulo dá 8 bilhões de reais para os juros da dívida pública e o Lula, 185 bilhões. Ou seja, dinheiro existe. Ao invés de o governo comprar o debate com os credores, que já são milionários – são 20 mil famílias, de acordo com o IPEA, que possuem a maioria dos títulos dessa dívida nunca investigada –, e apertá-los, ele prefere atacar os de baixo. São esses que vão pagar o pato.
CC: Ou seja, a escala estadual é tão somente uma reprodução da escala maior, nacional.
RM: Essa é a maior crise do Brasil. O governo é totalmente comprometido com uma pequena casta de famílias que administram esse país há séculos. Para haver mudanças no longo prazo, devem-se criar grandes mobilizações na sociedade. No curto prazo, podemos denunciar as mazelas que se sucedem.
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