Correio da Cidadania

Lula: as mudanças de um governo

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Reconhecidamente, o governo Lula foi quem mais investiu no social nos últimos 20 anos. Depois de tanto tempo se contorcendo na miséria, não admira que os pobres queiram mais um terceiro e, se possível, um quarto mandato de Lula. Dentro deste quadro, não é difícil explicar tamanha popularidade. Muitos preferem que a torneira do governo continue pingando os parcos recursos do Programa Bolsa Família do que voltarem à secura do descaso e do esquecimento dos governos anteriores, dos quais pouca gente ou ninguém sente a menor saudade.

 

Também reconhecidamente, este não é o governo pelo qual os movimentos sociais tanto lutaram. Por mais de 20 anos se gestou um governo com um projeto popular. Lula não foi para dentro do Palácio do Planalto sozinho, levou consigo o sonho de milhões de pobres deste país que amargavam uma escravidão de cinco séculos. Da mesma forma que não sentou na cadeira de presidente desprovido de projetos ou de pessoas que com ele caminharam nos momentos mais árduos desta gestação. Se algumas pessoas adentraram com Lula o Palácio do Planalto, os projetos não. Estes ficaram do lado de fora. Não obstante o esforço hercúleo destas mesmas pessoas para que o governo os assumisse.

 

A notícia de que 60 mil famílias tenham deixado a dependência chama atenção por dois motivos. Primeiro pelo número, num universo de 11 milhões de assistidos; segundo, pela admiração da civilidade dos pobres. Como se somente estes tivessem que dar lições à outra parte corrupta e podre, por isto rica, de nossa sociedade. E onde está a civilidade do Daniel Dantas, do Naji Nahas, do Celso Pitta? Importante observar que a civilidade dos pobres merece destaque somente na mídia, que exalta sua honestidade. Quando porventura a indigência os obriga a "furtar" um pote de margarina, aí entra a justiça, e esta é implacável. A justiça, no Brasil, pune os pobres quando a miséria os obriga a atentar contra a civilidade, mas absolve os corruptos quando por ganância surrupiam o erário público. Serve de exemplo o vergonhoso posicionamento do STF no caso da "Operação Satiagraha" e a proteção descarada que vem dando a Daniel Dantas.

 

Quanto aos programas compensatórios do governo, vez por outra somos "adoçados" com pequenas doses de dados estatísticos, afirmando que a situação da pobreza no Brasil está diminuindo. Até imagens de famílias que deixaram a condição de miséria são mostradas. Como num cardápio jornalístico: apresenta-se uma matéria, incrementam-se alguns dados, enfatiza-se com uma imagem ratificando sua veracidade e está pronta a refeição, é só servir.

 

No cotidiano não é bem assim. Muitas famílias atravessarão os dois mandatos de Lula apenas se alimentando das esperanças emancipatórias que o governo prometeu e não cumpriu. Entre elas, 140 mil famílias de sem-terra que aguardam do governo a reforma agrária. Sua opção pelo agro e hidronegócio e pelos transgênicos sepultaram de vez a esperança de que a agricultura familiar fizesse eco ao Programa Fome Zero e entrasse de vez na pauta do governo.

 

De paladino no combate à fome a mercador dos agrocombustíveis, Lula segue sua saga mundo afora, tentando convencer europeus e norte-americanos a fecharem negócio. E não conseguindo, pois eles também têm seus próprios interesses que não são os nossos, Lula arrasta a América Central e a África, convencendo-os de que esta é a saída para se resolver o problema do aquecimento global e que não afetará a produção de alimentos no mundo, além de favorecer a renda dos agricultores. Mesmo desmentido por várias fontes, Lula segue firme, vendo a fome grassar milhares de vidas aos seus pés. Esta realidade, no entanto, não o impede de disponibilizar nossas melhores terras para o plantio de cana, tratando os usineiros como "heróis" e se esquecendo dos camponeses que corroem a fome nos assentamentos e acampamentos, tendo à sua disposição apenas cestas básicas, enquanto precisam ocupar prédios públicos e enfrentarem a polícia para terem seus recursos liberados e fazerem valer seus direitos de cidadãos.

 

Segundo um estudo divulgado pelo BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento -, a inflação mundial de alimentos pode empurrar 6,16 milhões de brasileiros para a pobreza. O percentual de brasileiros abaixo da linha de pobreza pode passar de 28,3% para 31,5% da população se os preços dos alimentos continuarem altos. E em toda América Latina mais de 26 milhões de pessoas podem atingir a pobreza extrema. Esta desgraça pré-anunciada poderia ser evitada se o governo brasileiro tivesse, desde o primeiro mandato, investido maciçamente na agricultura familiar.

 

Lula mudou, sem, contudo, implementar as mudanças desejadas por aqueles que lutaram para que ele fosse eleito. Antes de pisar os pés no Planalto, ocupava suas atenções na causa dos trabalhadores, do povo pobre, que ele conhece melhor do que ninguém, nas suas andanças da "Caravana da Cidadania". Dentro do Palácio, suas atenções se voltaram para os grandes projetos, cujos maiores beneficiados não são os pobres. Ignorou praticamente todos aqueles que tinham nele uma esperança e paulatinamente assumiu o projeto das elites, da velha oligarquia. Nada fez para mudar a política macroeconômica, que tem consolidado uma transferência dos recursos públicos para a iniciativa privada sem precedentes na história. O lucro dos bancos e das multinacionais não possibilita desmentido.

 

O velho Lula, de semblante indignado ante as injustiças, foi e continua acorrentado aos interesses das elites deste país. Dentro das margens do sistema neoliberal, o governo comemora suas conquistas. Os movimentos sociais não. Estes sabem que as riquezas que deixam o país poderiam muito bem ser reinvestidas aqui, permitindo muito mais do que os programas compensatórios que o governo tanto enfatiza. Enquanto o governo se margeia pelo possível dentro de um sistema de neocolonização, os movimentos sociais lutam pelo respeito aos direitos, à dignidade e à liberdade dos povos excluídos e marginalizados, rompendo com as malditas cercas do sistema neoliberal. Os movimentos sociais sabem também que sua confiança no governo está se esvaindo por completo. Depois de uma longa e dolorosa recuperação da credibilidade quebrada, resta-lhes construírem o projeto popular que o governo abandonou. É hora do protagonismo do povo.

 

Lula seria mais respeitado, como líder mundial e do povo brasileiro, se tivesse continuado a empunhar a bandeira de combate à fome e, a duras penas, tivesse encampado a luta pela reforma agrária. Com certeza teria dado lições ao mundo de que a solução para os problemas mundiais está nas mãos dos pequenos, do povo pobre e sofrido, cuja história ele, retirante nordestino, conhece muito bem.

 

Wilson Aparecido Lopes é assessor da Pastoral do Povo de Rua (Osasco-SP).

 

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