Ariovaldo Umbelino: sem enfrentamento, não haverá reforma agrária
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- Valéria Nader
- 02/05/2007
O mês de abril, em que tradicionalmente se intensificam as manifestações de movimentos sociais desde o episódio de Eldorado dos Carajás, e que neste ano teve a maior onda de protestos e ocupações do MST desde a chegada de Lula ao poder, trouxe à baila a polêmica sobre a reforma agrária em nosso país. Para comentar a esquizofrênica realidade em que está envolto esse debate, conversamos com o geógrafo aposentado da USP, um dos mentores do I Plano Nacional de Reforma Agrária do governo Lula, Ariovaldo Umbelino.
Correio
da Cidadania: O MST intensificou nos últimos meses as suas
ações por todo país, ocupando terras e promovendo manifestações, especialmente
nesse mês de abril, denominado de “abril vermelho”. Qual o sentido e
significado desse tipo de manifestação na atual conjuntura?
Ariovaldo Umbelino: Em primeiro lugar, é preciso compreender que as ações
de luta pela reforma agrária são conseqüência direta da não-implantação pelo
governo Lula do II Plano Nacional de Reforma Agrária. Cerca de dois terços das
famílias que estavam acampadas já em 2003 continuam acampadas em 2007. É
evidente que, a partir deste balanço, os movimentos sociais - particularmente,
o MST - são levados a fazer no mês de abril a intensificação da luta pela
terra. Isso não esquecendo também que o mês de abril é tradicionalmente o mês
de luta pela reforma agrária desde o episódio de Eldorado dos Carajás em 1997.
CC: O que significa uma reforma agrária efetiva
hoje em nosso país? Qual a importância de sua realização?
AU: Antes de dar a resposta
propriamente, é preciso ponderar alguns pontos. Primeiro, é preciso ponderar se
há de fato uma questão agrária no Brasil. O meu ponto de partida é que há essa
questão, e ela está centrada no fato de que a apropriação das terras no país
não se completou ainda. O Brasil possui 850 milhões de hectares cadastrados no
Incra; em 2003, tínhamos 436 milhões de hectares; como áreas indígenas,
tínhamos 128 milhões de hectares; como unidades de conservação ambiental, 102
milhões de hectares. O que quer dizer que há uma sobra de algo em torno de 200
milhões de hectares de terras devolutas, isto é, terras que foram cercadas e
que não pertencem a quem as cercou.
Então, a não discussão da reforma agrária
encobre justamente essa grilagem de um quinto do território brasileiro. Esse é
o primeiro ponto fundamental da questão agrária.
O segundo ponto refere-se às terras
improdutivas. A Constituição brasileira é clara em dizer que as terras
improdutivas, grandes e médios imóveis, têm que ir para a reforma agrária. Se
nós nos utilizarmos do cadastro do Incra – e, é bom que se diga, trata-se de um
cadastro declaratório, a informação que está lá foi o proprietário quem deu -, a
partir dos seus dados de 2003, tínhamos 120 milhões de hectares ocupados apenas
pelos grandes imóveis improdutivos, que envolvem um número total de 55 mil
imóveis, distribuídos em todo o país.
No estado de São Paulo, tido como o estado da
terra produtiva, temos um total de 3.880 imóveis improdutivos, ocupando uma
área de 2,5 milhões de hectares. Assim, a terra improdutiva está em todo o
país, mas, quando se faz o debate teórico acerca da viabilidade histórica atual
da reforma agrária, se abstrai esse quadro de base, o que interessa a todo o
sistema de propriedade privada da terra no Brasil. Com isso, está se abrindo a
possibilidade para que o Estado legalize essa grilagem massiva de terra que
esses números revelam.
CC: Nesse sentido, na avaliação quanto à
viabilidade da reforma agrária, alguns estudiosos, em uma visão mais
extrema, chegam mesmo a negar-lhe qualquer sentido atualmente, em
função de algumas circunstâncias, em sua
opinião, decisivas: a conclusão da urbanização, fazendo desnecessária a
reforma
agrária como propulsora do mercado interno; a diversificação do mundo
rural,
incrementando a oferta de alimentos de forma a suprir a demanda; e a
difusão da
informação, tornando inócua a justificativa política quanto à
democratização no
campo. Você desconstruiria esses argumentos?
AU: Essa argumentação tem o
propósito de encobrir ideologicamente todo esse quadro que envolve a
apropriação privada da terra no Brasil.
Em primeiro lugar, não é
verdade que nós temos disponibilidade de alimentos: se olharmos a produção de
arroz, feijão e mandioca, desde 1992, não há nenhum crescimento na produção
desses alimentos que são básicos na alimentação dos brasileiros.
O argumento diz respeito a que já teria havido
um desenvolvimento técnico e o campo estaria produzindo mais. Pois bem, a área
ocupada com as lavouras atinge um total de 60 milhões de hectares apenas, e,
nesses 60 milhões de hectares cultivados, um terço é de soja, com 21 milhões de
hectares. À soja se soma, com 6 milhões de hectares, a cana; e, com 5,5
milhões, eucaliptos - mais da metade das terras ocupadas pelas lavouras no
país. Dessa forma, a questão da produção de alimentos no Brasil não está
resolvida. Se estivesse, por que precisaríamos importar arroz, importar feijão?
O que há é um discurso puramente ideológico, neoliberal, para tentar encobrir
um quadro de defesa do agronegócio, um quadro contrário aos movimentos sociais
e à sua reivindicação histórica da reforma agrária.
São esses os pontos que devem ser colocados. A
pergunta que deve ser feita é: quais são as provas desses argumentos, emitidos
por aqueles que estão no pólo oposto. O que eu leio nos jornais, revistas e na
internet é apenas discurso, não uma demonstração, com dados, de que a questão
da produção de alimentos está resolvida.
CC: E
sobre a questão da urbanização?
AV: Sobre a questão da urbanização, utiliza-se,
sistematicamente, o indicador do percentual de população rural em relação à população
urbana. E é claro que este vem caindo. Mas ninguém olha qual é o dado da
população rural total, número que não caiu como estão dizendo.
Com a população urbana
crescendo muito mais, esse percentual aparece sempre como menor, mas é errado
tomarmos apenas o dado relativo, e não os dados absolutos. Há também uma outra
questão: no Brasil, no final de 2006, tínhamos um total de 200 mil famílias acampadas.
Vamos continuar ignorando essas famílias, inscritas no programa de acesso à
terra, e a chamada reforma agrária virtual de FHC? Há mais de 800 mil famílias
inscritas nesse programa reivindicando a terra para a reforma agrária. Só aí há
um total de um milhão de famílias explicitamente reivindicando o acesso à
terra - como é possível, então, utilizar o argumento da urbanização?
Quando, no início da década de 50 do século
passado, houve a migração urbana, não se perguntou aos trabalhadores rurais que
migraram para a cidade se eles conheciam as profissões da área urbana. Agora, tem-se a pergunta inversa. Uma família que
nasceu na área urbana não teria condições de se tornar agricultora? Por que a
inversão não é válida? Se o país fizer um programa de reforma agrária como deve
ser feito, com escola, com acesso ao conhecimento técnico, por que você não
pode ter o desenvolvimento de uma agricultura intensiva?
E digo mais, será que há condições de defender
uma estrutura fundiária como a que nós temos no Brasil, onde 6 mil pessoas são
proprietárias de 15% do território nacional? Ou vamos defender que 22 sejam
proprietários de 8% do país? É essa estrutura fundiária que vamos defender, e
achar normal a sua existência no mundo de hoje? Onde é que existe, no mundo,
uma estrutura fundiária com as propriedades do tamanho das do Brasil? Nós,
intelectuais que estudamos a questão agrária, vamos ser coniventes com essa
estrutura fundiária violentamente concentrada?
Isso é o que deve ser
respondido por quem argumenta que a reforma agrária não é mais necessária.
CC: Quanto à nova arena de luta do movimento,
relativa ao destaque quanto às graves conseqüências ambientais e trabalhistas
do agronegócio, esses mesmos críticos enxergam a busca de polaridades
obscurantistas, vez que não se poderia imaginar o futuro de um país como o
Brasil sem a agricultura de grande escala, atraindo as massas urbanas novamente
para o campo. Há um certo determinismo
nessa visão? O que você responderia?
AU: Eu não conheço na
Europa - e acredito que quem estuda agricultura também não - uma agricultura
de grande escala como a que se defende no Brasil. A agricultura lá é baseada em
pequenas unidades camponesas de produção. No Japão, também não há agricultura
de larga escala.
Nos EUA, a grande maioria de sua produção
agrícola vem das family farms, ou
seja, das unidades familiares que lá existem. Não há, portanto, similares no
resto do mundo capitalista para os argumentos utilizados no Brasil. Eu não
entendo o por quê dessa defesa aqui no Brasil se, de fato, a maior parte das
terras não é utilizada produtivamente. As que são apropriadas privadamente
estão sem uso. Como então justificar uma produção capitalista de larga escala?
O município de Sorriso, no Mato Grosso, é um
dos maiores produtores mundiais de soja do mundo. A maior parte de suas terras,
no entanto, é de propriedade do Incra, ou seja, está grilada pelos sojeiros, e
o Incra não pede a reintegração de posse. Em Primavera do Leste, no Mato Grosso
também, acontece a mesma coisa. Há um processo no Tribunal de Contas da União
em Cuiabá contra esses sojeiros, pressionando o Incra para recuperar essas
terras públicas, que deveriam ser destinadas à reforma agrária. Quem ocupa o
cargo de presidente do Incra não toma essa atitude de reintegração de posse.
Toda a faixa da rodovia Cuiabá - Santarém, 100
quilômetros de cada lado, é de propriedade do Incra, e estão sendo grilados.
O discurso contra a
reforma agrária é feito para encobrir essa realidade cruel da estrutura
fundiária brasileira, a serviço de interesses determinados e de grupos
políticos específicos.
E a maior parte dos intelectuais que discutem a reforma agrária conhece
o Brasil dos livros, não a realidade do país
e quem se apropriou privadamente das terras.
Voltando à primeira
tecla, há uma questão em aberto no Brasil: não há nem órgão do Executivo e nem
do Judiciário capazes de dizer quem é proprietário do quê no país. Nem o Incra,
nem os institutos estaduais de terra e nem os cartórios de registro de imóveis
sabem isso. A questão da propriedade privada da terra é uma questão em aberto
na sociedade brasileira, e o discurso contra a reforma agrária tenta encobrir
essa ocupação ilegal das terras no Brasil.
CC: Levando em conta essa realidade, o que você
responderia aos estudiosos que vêm apontando ainda o esgotamento de um
movimento como o MST, sob o argumento de tratar-se de organização não
democrática, portadora de uma estrutura interna nebulosa e autoritária, cujos
líderes se furtariam ao debate, chegando até mesmo a adotar métodos “violentos”
na educação dos assentados?
AU: É evidente que esta é a
opinião dos estudiosos neoliberais da questão agrária, e não está assentada no
âmbito das universidades. No meio acadêmico, não vejo essas questões que eles
dizem existir. E, novamente, acho que a pergunta está invertida. Eles é que têm
que provar e responder a essa pergunta, o discurso não pode ser o instrumento
da prova, que deve ser constituída a partir de dados reais. O que fazem é
montar um discurso e transferir o ônus da prova para quem está sendo acusado.
O que queria deixar registrado é que é
evidente que esta parte da intelectualidade brasileira defende os interesses
das elites do país, e é preciso que isso seja dito. Ela tem interesses, sejam
eles econômicos ou políticos, em defender os latifundiários e o agronegócio.
É evidente, também, que os movimentos sociais
não podem ser estudados como o são os partidos políticos. Os partidos têm
estatutos, diretorias constituídas, estão registrados e devem obedecer às
normas legais que regem o sistema político-partidário do país.
Os movimentos sociais se formam por ações de
parte da sociedade que não encontra na luta político-partidária respostas aos
seus anseios, e se organiza, portanto, de forma completamente externa à
estrutura jurídica existente. A partir daí, não se pode buscar uma relação
entre a organização dos movimentos sociais e a dos partidos políticos ou
movimentos sindicais.
Também teríamos que
argumentar que há no Brasil um conjunto de intelectuais que há muito não
realiza pesquisas de fato para estudar como o país está. Há muito não temos uma
grande obra sobre o Brasil que explique todas as características regionais e as
especificidades micro-regionais do país. A idéia de Brasil é uma idéia
construída sobre o discurso, e não sobre estudos concretos, e isso cria essa
nebulosidade no plano do debate intelectual, onde quem tem um veículo de
comunicação de massas mais poderoso acaba influenciando um maior número de
pessoas, e não um estudo mais aprofundado.
Há uma tendência também de desqualificar o
oponente para justificar a sua própria posição, o que, do ponto de vista
científico, é pouco aceito nas maiores universidades sérias do mundo.
CC: Qual deveria ser, nesse sentido, a seu ver,
e considerando o atual momento histórico, a estratégia de luta do MST?
AU: O MST detectou
corretamente que o governo atual apóia o agronegócio. É isso que incomoda uma
parte da esquerda, pois esse apoio revela a faceta do governo no seu
entendimento sobre a questão agrária, ou seja, de que a reforma agrária não é
uma necessidade histórica do país. É por isso que, em quatro anos de governo, o
Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Incra assentaram pouco mais de
100 mil famílias, quando o Plano Nacional de Reforma Agrária mandava assentar 400
mil. Dizem que não, que assentaram 381 mil famílias. Isso é mentira, nua e
crua. Nos dados de 2005, há mais de mil famílias de um assentamento da época de
Getúlio Vargas, de 1942, e o governo Lula apenas reconheceu aquele
assentamento. E reconhecer não é assentar.
As reservas extrativistas foram todas contadas
como sendo assentamentos do governo Lula. Isso é uma ação de regularização
apenas. O que o governo está fazendo é tentar enganar os movimentos sociais. É
esse o motivo pelo qual, em abril deste ano, saíram à luta e abriram o combate
contra o próprio governo.
CC: Então a estratégia agora é romper com o
governo?
AU: Não se trata de romper
com o governo, mas sim de continuar com o processo de luta que os movimentos
sociais sempre utilizaram, e que se define na célebre frase "bate e
assopra".
CC: A propósito, quanto a essa relação do
movimento com o governo, ficamos diante de análises paradoxais: enquanto os
setores mais à esquerda enxergam um evidente distanciamento do atual governo
relativamente às demandas dos sem terra no que diz respeito à execução de uma
autêntica reforma agrária - a partir de uma grande ambigüidade em suas relações
recíprocas -, os críticos mais à direita acusam o MST de se utilizar dos
próprios recursos públicos para “simular” um ataque à política federal. Com qual dessas vertentes deveríamos ficar? Elas se encontram de alguma forma?
AU: Estamos diante de uma realidade cruel. Lula sempre defendeu,
pessoalmente, a reforma agrária. O PT sempre defendeu em seus programas a reforma
agrária, mas agora que está no governo não a faz. Isso é um paradoxo, que se
explica pelo fato de que a estratégia do governo durante o primeiro mandato foi
feita em cima do Fome Zero, e a reforma agrária era um dos componentes menos
importantes do programa, que trazia uma concepção sobre o campo e sobre a
reforma agrária de José Graziano da Silva, assessor especial de Lula.
A partir daí, o que o MDA
e o Incra implementaram foi essa concepção, de que a reforma agrária não é mais
uma necessidade histórica e, portanto, não pode se constituir numa política de
desenvolvimento econômico e social, devendo se constituir apenas numa política
social, uma política cuja finalidade é a de resolver localmente no país o
problema da fome. É essa a concepção que o MDA e o Incra têm, mas, na hora em
que vão se relacionar com os movimentos sociais, dizem que defendem a reforma
agrária. Vivemos esse paradoxo.
Uma última coisa que seria importante deixar
registrado é que o processo de conscientização por parte dos movimentos sociais
de que o governo Lula não iria fazer a reforma agrária foi um processo longo.
Participaram de reuniões e tiveram uma série de diálogos com o governo, e
ficaram aguardando uma reforma que não chegou. Inclusive, o Incra e o MDA, na
nota de divulgação dos dados de assentamentos de 2006, em janeiro último,
disseram que iam divulgar a relação das famílias assentadas, mas não fizeram
isso até hoje. E sabe por quê? Pois é daí que poderemos descobrir que não são
de fato assentamentos de reforma agrária. Estão negando informações.
CC: Mediante essa constatação, poderíamos
afirmar que a concepção do governo vai praticamente de encontro ao discurso ideológico da intelectualidade que
justifica a não importância da reforma agrária – o que configuraria mais um
“cruel” paradoxo de nossa realidade, já que essa intelectualidade é
historicamente inimiga do presidente-operário?
AU: Essa é, realmente, a concepção
que o governo Lula tem da reforma agrária.
Visitando acampamentos, no ano passado, vi que o Incra, em sua relação com os movimentos sociais, pede para eles informarem quais são os imóveis considerados improdutivos, para, daí, fazer a vistoria. Isso é um absurdo, o Incra tem um cadastro e sabe quais são as terras improdutivas. Os movimentos não sabem o que está no cadastro, e aí são enganados. Mas demoram para compreender isso.
CC: E agora, compreenderam? Haverá um enfrentamento maior?
AU: Acho que, agora, boa parte já compreendeu. E sem enfrentamento, não haverá reforma agrária, nem no governo Lula.
Colaborou o jornalista Mateus Alves.
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