Demora na regularização das concessões de rádio e TV é deliberada pelo ‘jogo político’
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- Gabriel Brito
- 13/10/2008
Em um país no qual as concessões de rádio ou televisão são autorizadas sob diretrizes determinadas constitucionalmente, o debate em torno do tema deveria ser algo natural no universo da comunicação social brasileira. Entretanto, não é com essa realidade que nos deparamos, como se pôde ver recentemente no momento em que se revelou que centenas de pedidos de renovação estão paradas há mais de uma década em Brasília.
Em face disso, o Correio da Cidadania conversou com o jornalista Hamilton Octavio de Souza, chefe do departamento de Comunicação Social da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. De acordo com ele, há um grave conflito de interesses na questão, pois os políticos donos de emissoras são alguns dos que apreciam os pedidos de renovação.Tal conflito ainda seria responsável também pela ausência de um debate mais amplo em torno da função social de cada emissora ao conseguir a concessão.
Na conversa, Hamilton ainda abordou a TV Brasil, apontando que a nova emissora ainda se baseia muito no modelo comercial das redes dominantes, e explicou que a incapacidade governamental em analisar os pedidos é parte do "jogo de empurra" encenado por políticos e donos de emissoras, afeitos ao atual estado de desordem na área.
Correio da Cidadania: Foi divulgado recentemente que os processos de regularização das concessões de rádio e televisão de 225 emissoras estão praticamente parados há anos. O assunto das renovações já havia vindo à tona em 2006, mas foi aos poucos sendo tirado de foco. Por que estamos diante dessa situação de tamanho atraso? Ela seria reveladora de interesses específicos?
Hamilton Octavio de Souza: Os processos de concessão precisam ser renovados a cada 10 anos para rádio e 15 para TV. Isso significa que todos os anos existem processos que deveriam ser apreciados pela Anatel, Ministério das Comunicações e Congresso Nacional. Porém, não é o que ocorre, pois não interessa aos donos de emissoras, aos deputados-empresários de radiodifusão e possuidores de concessão. A eles interessa deixar os processos engavetados pelo maior tempo possível. Isto é, o ministério faz corpo mole, pois não interessa fazer uma avaliação de cada emissora; saber se ela cumpre seu papel constitucional, que é o de levar informação, educação e cultura ao povo brasileiro; se ela está promovendo a produção regional e local, conforme estabelecido na Constituição que, por sinal, veta expressamente a existência de monopólios e oligopólios no Brasil.
Portanto, se formos olhar com mais atenção a relação de determinadas redes, suas ligações e seus verdadeiros sócios-proprietários, vai se descobrir que temos um processo altamente concentrado e constituído por oligopólios.
Na verdade, o Ministérios das Comunicações - comprometido com as empresas de rádio e TV do Brasil, leiam-se as grandes emissoras - não exerce o papel de defender o interesse maior da sociedade brasileira, age apenas de acordo com o interesse dessas grandes empresas de comunicação.
Dessa forma, ele finge que não dá conta de apreciar todos os processos de renovação de concessão, o que é um absurdo, pois vemos coisas malucas acontecendo como, por exemplo, grupos que às vezes obtêm novas concessões em tempo curtíssimo. Em meses se vê funcionando uma nova emissora que conseguiu uma tramitação super-rápida e eficiente, enquanto de outro lado temos esses outros processos paralisados.
Outra coisa é que os processos das emissoras comerciais são deixados na gaveta pelo ministério porque servem também como moeda de troca, no que se refere a apoio político ou sustentação de alianças políticas regionais. Utiliza-se tal pedido para também aproveitar que a emissora requerente atenda seu interesse político, econômico etc. Portanto, é uma das moedas de troca do tráfico de influências existente no Brasil.
Entretanto, há um outro aspecto, que é o mais dramático e antidemocrático: o das emissoras comunitárias. A notícia que se tem é a de que existem mais de 7500 pedidos de autorização para o funcionamento de emissoras comunitárias parados há anos e anos. Eu conheço aqui em São Paulo grupos e comunidades ligados a setores da igreja, movimentos sociais, associações de moradores, que estão com pedidos de autorização que nunca são concedidos. Em São Paulo, a única emissora comunitária que recebeu alvará de funcionamento é a rádio de Heliópolis. E só porque houve uma interferência direta da presidência da República, na época em que o jogador Zidane fez uma visita à favela. Aí sim autorizaram a rádio, como uma demonstração de que o Brasil tem um sistema de comunicação social democrático, o que é uma mentira, uma enganação.
As rádios comunitárias estão solicitando esses alvarás há muito tempo e o Ministério das Comunicações não avança na questão, simplesmente não avança. E o gozado é que não há nenhum pedido da presidência da República, não há nenhuma manifestação dos partidos que dão sustentação política a esse governo, e assim o Ministério das Comunicações se finge de morto na questão.
Sabe qual o quadro que de fato interessa às grandes empresas? É o de um Estado sem lei, pois, não havendo lei, ordem e regulação disso tudo, aqueles que possuem emissoras, poder econômico e que conseguiram concessões na base da troca política vão continuar atuando. Não há contra eles nenhum tipo de fiscalização, punição, impedimento, censura ou exclusão da atividade que estão exercendo. O faroeste, a terra sem lei, interessa aos grandes grupos que dominam o sistema de comunicação social no Brasil.
CC: O site da Câmara dos Deputados avisa que, na verdade, os requerimentos de renovação foram devolvidos à presidência da República por não possuírem a devida documentação. A que se deve essa confusão de informações, que seguem pouco esclarecidas ao público?
HOS: Isso faz parte do mesmo jogo. Tanto os setores do Congresso Nacional quanto os do ministério ficam nesse jogo de empurra, o que poderia ser resolvido facilmente.
Em primeiro lugar, a documentação deveria ser uma coisa simples de ser apresentada; em segundo, deveriam ser estabelecidos prazos, tanto para o ministério como para o Congresso, para apreciarem tais documentos. Por exemplo, se o Congresso tem 30 dias para analisar o processo e o ministério tem mais 30, em dois meses estaria tudo resolvido.
Porém, a questão não é essa, e sim algo deliberado, no sentido de não regularizar as situações. Seja pelo interesse político, seja para evitar o risco de que alguma emissora tenha de perder a concessão por falta de atendimento às condições por lei estabelecidas.
CC: Até porque são 76 membros na Comissão de Ciência e Tecnologia a analisarem os pedidos, o que parece ser gente demais para tamanha paralisia.
HOS: Pois é, trata-se de enrolação deliberada. Se tal emissora de rádio está atuando e apresenta um pedido de renovação, o primeiro a ser feito é conferir se ela cumpre o que é determinado pela Constituição e pela legislação em vigor. Caso esteja cumprindo esses requisitos e esteja funcionando dentro da lei, não há motivo para deixar de renovar, a não ser que faça parte de algum monopólio da mídia.
Existe um limite no número de emissoras por rede e, no caso dos grupos de radiodifusão, ele está sendo ultrapassado de forma disfarçada, com diretorias formadas por pessoas que não são as verdadeiras proprietárias, os famosos laranjas que aparecem como donos dos veículos e na verdade não o são.
Além disso, há uma questão de compatibilidade: quem é deputado federal ou senador não pode ser proprietário, sócio-proprietário ou diretor de emissora de rádio ou TV. Isso porque tais emissoras são concessões públicas, primeiramente. Portanto, não podemos lidar com parlamentares que são beneficiados por concessões públicas. É incompatível, está expresso na Constituição que não pode ser configurada tal situação. Sendo assim, muitos deputados e senadores donos de rádio colocam na direção de suas emissoras membros fantasmas (o tio, a avó, o primo, o amigo), para não correrem o risco de ter essa incompatibilidade constitucional apontada.
Esse é um expediente que, num processo de fiscalização mais rígido em torno da renovação de concessões, seria descoberto. Em qualquer estado brasileiro, podem ser encontradas dezenas de emissoras de rádios vinculadas a algum deputado ou senador. No nordeste, em quase todos os estados, a maior parte das emissoras está vinculada a dois ou três grupos políticos.
CC: Nesse aspecto do conflito de interesses, o fato de alguns parlamentares donos de rádios ou TVs participarem de comissões de discussão e análise do assunto já não desmoraliza o processo logo de início?
HOS: Esse é o processo viciado que temos. Temos parlamentares que são donos de rádios e TVs, ou seja, têm interesse nisso e ao mesmo tempo atuam em beneficio próprio, dentro da Câmara e do Senado. É uma grande distorção. Não se encontra isso nem nos EUA nem na Inglaterra, para citar dois países ricos e de referência no capitalismo. Por lá políticos não podem ser donos de rádio ou TV e acabou.
Rádios e televisões não devem ficar nas mãos de quem atua na esfera política, por uma óbvia questão de conflito de interesses. Se o sujeito se propõe a fazer comunicação social, deve estar aberto a todas as posições políticas, movimentos sociais, enfim, deve prestar esse serviço com a máxima abertura de espaço democrático.
Se uma emissora pertence a um partido ou a um político, ela não vai cumprir seu papel, pois estará a serviço de interesses muito específicos. Se a pessoa é dona de uma emissora e se elege deputado, sua concessão deve ser devolvida ao poder concedente, no caso o governo federal, a União. A partir disso, a concessão é distribuída novamente através de concorrência pública, licitação ou de critérios de distribuição para setores que tiverem necessidade de expressão e não possuem um canal para se manifestar. O caso do Brasil é gravíssimo. Há setores que não têm acesso algum aos meios de comunicação, não chegam nem perto deles.
CC: A Constituição reza que para que toda emissora de rádio ou TV que deseja receber uma concessão, que é pública, deve cumprir função que atenda aos interesses culturais e sociais da população, tanto no âmbito nacional quanto no regional. Diante de sua análise, como confrontar essa determinação com a realidade dos conteúdos oferecidos hoje pelas emissoras?
HOS: Isso na verdade teria de passar por um critério de avaliação que fosse utilizado nos processos de renovação das concessões. Primeiro para que se dê a concessão, pois para isso não importa somente o dinheiro pago por ela. Importa a programação, a vinculação da emissora com setores da sociedade, sua participação e proposta de programação no sentido de atender às exigências constitucionais - levar informação, promover a educação, a cultura.
O correto seria que houvesse critérios definidos para se fazer essa avaliação. Uma emissora que opera há 10 anos oferece condições para que se saiba se ela está cumprindo sua função social, se permite de fato a abertura de espaço para vários setores da sociedade, entre outras coisas. Deveria ser este o critério, mas pelo visto nada disso funciona no país.
Na verdade, a renovação de concessão é algo técnico, muito mais burocrático do que de avaliação de conteúdo. E deve continuar assim. No Brasil, temos a maior parte da programação voltada aos interesses comerciais, ao proselitismo religioso, que, aliás, deveria ser proibido, ou ainda esses canais de vendas de produtos. Na Inglaterra, por exemplo, não se permite que se faça esse proselitismo através de meios de massa, algo totalmente impensável.
Outro ponto: temos uma programação voltada aos interesses do consumo, não aos valores de uma sociedade mais justa, igualitária, solidária, fraterna... Portanto, a programação acaba sendo de conteúdo danoso para a maior parte da população, sem falar nas programações de baixaria, o que deveria ser analisado com mais cuidado.
Toda vez que o Estado tenta atuar nessa direção, de tentar colocar algum tipo de critério para a melhora de qualidade, as emissoras reagem dizendo que se trata de censura, proibição, imposição. Na verdade, não é nada disso.
Na França, recentemente, a comissão que cuida do setor audiovisual ditou uma norma que proíbe a existência de programas dirigidos a menores de três anos de idade. Por quê? Há uma linha de programação para crianças muito pequenas que estava interferindo na vida delas, pois trazia embutida toda uma carga emocional que lhes era transmitida, causando perturbações ou distúrbios nessas crianças; desenhos ou cenas de violência com situações que fugiam da realidade e causavam distorções. Ora, a França proibiu. E não dá para dizer que o Estado francês é autoritário, ditatorial, muito pelo contrário. É historicamente um berço de liberdade, em todos os sentidos. Proibiu porque é prejudicial, e é mesmo, ter meios de comunicação veiculando programas que acabam provocando distorções na formação intelectual e psicológica das crianças.
CC: A TV Brasil, envolta em muita polêmica, vem cumprindo de alguma forma uma missão social ou cultural importante?
HOS: A TV Brasil, em primeiro lugar, tem uma captação muito limitada. No estado de São Paulo ela é vista em sua maior parte. Ao assisti-la, vejo que repete o mesmo modelo das emissoras comerciais. Embora tenha uma dedicação maior à questão cultural, programação regional, ainda é uma emissora pouco ousada e pouco comprometida com o conjunto da sociedade brasileira. Ela ainda está presa ao modelo de televisão comercial.
A TV Brasil precisaria passar por um processo de transformação, para que então seja uma televisão realmente pública, uma rede que abra o debate para as grandes questões nacionais, que abra espaço para todos os segmentos políticos e ideológicos, que abra espaço a toda produção cultural e artística do país, sem restrições, censura ou quaisquer limitações. Nesse caso, sim, ela poderia cumprir um papel importante na sociedade brasileira.
Acho a TV Brasil ainda muito presa ao modelo vigente, mais preocupado com a audiência do que com a qualidade e a possibilidade de ser um canal de expressão da riqueza e diversidade existentes no Brasil. Creio que ela deveria trabalhar nessa direção, mas sinto que as pessoas estão com dificuldades de fugir do atual modelo comercial.
CC: Desta vez você acredita que poderemos ter um debate mais amplo e transparente em torno do tema? Pode-se ter a esperança de que o momento seja aproveitado para uma discussão a respeito da democratização das mídias, como, por exemplo, no que se refere às rádios comunitárias?
HOS: É difícil acreditar em iniciativas que venham do governo ou de setores das instituições majoritárias. O debate pode até ter alguma ressonância na sociedade se vier dos movimentos sociais, entidades de classe e coisas assim. Pelo seguinte: existe, há mais de um ano, uma movimentação bastante grande para que se realize uma conferência nacional de comunicação social. É algo em que o governo já havia tocado, tendo iniciado até alguns preparativos. O ex-ministro da Cultura Gilberto Gil estava muito empolgado com a idéia da conferência, mas ela também esbarra no ministro das Comunicações. O Hélio Costa sentou em cima disso e está criando todo tipo de dificuldades. Alguns estados já tinham até iniciado o processo de preparação das conferências estaduais para discutir comunicação...
Ora, uma conferência nacional certamente teria em sua pauta a discussão em torno da regulação das concessões, novos marcos regulatórios do setor. Entrariam na pauta, muito provavelmente, a questão dos limites das redes; a questão da propriedade cruzada, na qual deve ser impedido que uma empresa tenha vários veículos na mesma localidade; a questão da concentração, entre outras. A própria legislação dos EUA impede que alguma emissora de TV tenha audiência acima de certo patamar, em torno de 35%. Enfim, todos esses pontos entrariam no temário de uma conferência nacional.
No entanto, não temos essa discussão organizada. Temos um debate que aparece às vezes, em função de um caso muito específico, quando sai matéria no jornal denunciando, como a Folha fez há pouco tempo, que várias emissoras estão com a concessão vencida, sendo que algumas delas há mais de 10 anos. O assunto entra em pauta, é discutido por umas duas semanas e morre, pois os grandes veículos não têm a intenção de debater tais pontos.
Portanto, como mobilizar a sociedade para debater o sistema de comunicação se as emissoras que têm alcance massivo não entram nesse jogo? Elas não fazem nada, gostam de esconder essa questão do interesse nacional. Dessa forma, o debate fica truncado, aparece e desaparece, pois o interesse sempre está em abafá-lo, não se conseguindo avançar nunca.
Gabriel Brito é jornalista.
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