'Governo não pode admitir qualquer readequação no quadro de pessoal das empresas'
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- Valéria Nader e Gabriel Brito
- 27/01/2009
Começou pelos bancos, chegou às montadoras e siderúrgicas e agora ameaça se infiltrar em diversos segmentos produtivos do país. É assim que o furacão da crise econômica inicia sua passagem pelo Brasil. E a partir desse ano, descobriremos em que pé a recessão mundial pegará nossa população e quais serão suas consequências na vida brasileira. O Correio da Cidadania conversou com Antonio Carlos Spis, dirigente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Militante de longa data das lutas populares, Spis aponta para uma postura irredutível dos trabalhadores na defesa de seus direitos conquistados como estratégia primordial. "Não podemos admitir que se dê tanto dinheiro às montadoras enquanto mandam embora seus funcionários. O governo precisa ter mais autoridade, fazendo exigências de contrapartidas".
Em sua opinião, há uma mistura de medo cênico em relação à crise com a clássica estratégia de repassar seu ônus aos trabalhadores, combinação que torna as negociações ainda mais hostis aos proletários. Dessa forma, Spis, que lembra que em momento algum as propostas de redução de direitos partiram do governo, ressalta que todo o movimento popular deve marcar posição e fazer dos seus direitos pontos intocáveis, especialmente agora que, após a bonança, nos depararemos com a tempestade.
Correio da Cidadania: A crise financeira chegou à economia real: é só ligar a TV ou abrir os jornais que imediatamente despencam notícias e mais notícias de demissões. Estas são realmente uma imposição para as empresas, muitas das quais lucraram tanto no período de bonança?
Antonio Carlos Spis: Bom, patrão lucra sempre, não é? Se não, as empresas fechariam. No entanto, é inadmissível que aceitemos qualquer readequação no quadro pessoal das empresas – bancos, serviço público etc. – por conta dessa crise, que é norte-americana e tem impactos concretos aqui.
No Brasil, já temos a tradição de ouvir demissão pelo rádio ou ler no jornal. A Microsoft está em crise na matriz e as conseqüências se vêem aqui; as montadoras estão em crise e haverá desdobramentos para o ABC e São José dos Campos.
Frente a isso, a CUT tomou uma posição firme em defesa do emprego e da reintegração dos demitidos como fruto da crise, já que, em face da primeira notícia de retração, os patrões já começam a despedir e os pedidos de produtos, a rarear. Há uma questão psicológica por trás de tudo também.
É verdadeiro que o patrão sempre lucra e que deveria adequar as empresas muito mais para garantir empregos que para ajustar demissões. Mas, infelizmente, o patronato brasileiro não tem essa visão; é um patronato nocivo e, na relação capital/trabalho, sempre tende a jogar a bomba no colo dos trabalhadores.
CC: O que você acha de uma das medidas que estão sendo constantemente propostas pelas empresas, e já em curso em algumas delas, que é a interrupção temporária do contrato de trabalho? Isso é permitido pela CLT?
ACS: Isso é uma manobra que começou com o Collor e que o FHC também abraçou. Chama-se lay-off e consiste em uma empresa que apresenta dificuldade em seus balanços poder afastar parte de seus trabalhadores. Estes recebem um valor, não o salário, através do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e a empresa pega o trabalhador de volta de acordo com o seu interesse. Neste momento, o empresário procura ajustar seu pessoal.
Geralmente, temos visto nessas situações que pessoas doentes - com histórico de doença ocupacional adquirida nas próprias empresas - e companheiros ativistas são colocados no grupo de demitidos; neste momento específico, na esteira da crise que está chegando ao Brasil. Se não estivesse chegando, o BNDES não anunciaria R$ 100 bilhões para alavancar o desenvolvimento. A crise é real, terá impactos aqui e isso já é inegável.
No entanto, o que precisa haver são contrapartidas. O governo põe dinheiro em bancos privados – que sempre ganham, principalmente na crise – e esses estão demitindo gente. Não podemos admitir que se dê tanto dinheiro às montadoras para produzirem carro e fazerem propaganda anunciando veículos a preços mais baratos enquanto mandam embora seus funcionários. O governo precisa ter mais autoridade, tem de negociar com o empresariado, os banqueiros, de cabeça erguida, fazendo exigências de contrapartidas.
Uma delas, que a CUT não abre mão, é a garantia do emprego. Outra é a aprovação da convenção 158 da OIT, que está na mesa do Lula e não permite a demissão imotivada. Não que proíba a demissão, mas deve haver motivos. O trabalhador tem direito ao contraditório, de ter um advogado e saber o que acontece; não é só passar no caixa, pegar o Fundo de Garantia e pronto.
Na categoria petroleira já se aplica tal convenção – tive a oportunidade de negociar em 1996 com a Petrobrás – e não se vê por aí demissão de petroleiro. Na Petrobrás, vale a Convenção 158. Além desta, também queremos a Convenção 151, que garantiria o direito de greve e a negociação coletiva no serviço público, e outras garantias que diversos países estão aplicando e o Brasil infelizmente ainda não.
CC: Ou seja, trata-se de uma postura acintosa das empresas, que na euforia condenam o Estado e na crise querem uma ação paternalista por parte do mesmo – elas próprias propõem que o Estado banque essa fase de afastamento do trabalhador, com recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e/ou do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).
ACS: Essa é a velha estratégia de passar a crise adiante e tentar se isentar de qualquer responsabilidade e ônus nas empresas. No entanto, nessa época, com a sazonalidade do Natal e até fevereiro no carnaval, aumenta um pouco o trabalho temporário no Brasil. E mesmo com a crise, esse segmento não se retraiu, o que nos mostra que há demanda, que a economia brasileira é pujante e o país tem uma grande possibilidade de consumo. É sempre crescente tal necessidade no país.
Vemos que estão ocorrendo demissões pontuais em diversos setores, única e exclusivamente baseadas numa crise. Só que, em momentos assim, também se deve pensar em estratégias de saída. E, infelizmente, o patronato só concebe a estratégia da redução de custos e do corte de pessoas.
A CUT não foi à reunião da FIESP para participar da manobra com a Força Sindical que visava reduzir jornadas e salários, pois para nós tal hipótese não existe. E não admitimos também uma negociação que não inclua a garantia do emprego.
CC: E quanto à redução da jornada de trabalho - uma antiga demanda da classe trabalhadora, porém sem redução de salários -, qual a conotação que essa proposta pode adquirir nesse momento?
ACS: O ideal seria que viesse, mas não com essa caracterização de lay-off, banco de horas ou redução da jornada com rebaixamento dos salários. A proposta da CUT é de redução da jornada constitucional de 44 horas para 40. Criaríamos assim, em médio prazo, dois milhões de postos de trabalho. A ratificação, execução e fiscalização teriam de ser maiores sobre os turnos ininterruptos de revezamento, das jornadas especiais. Os bancários, por lei, têm jornada de seis horas há 40 anos, mas não a praticam. Os banqueiros enfiam mais duas horas goela abaixo e ainda por cima não pagam as horas extras.
Se efetivamente se reduzisse a jornada bancária para seis horas, seria criada outra turma de trabalhadores; se os turnos de revezamento das fábricas que nunca param fossem de 6 horas, e não 8 ou 12, seriam criados novos postos de trabalho também.
Para nós da CUT, redução de jornada só tem sentido se for pela inclusão social. Com a visão de que o trabalhador não vai ganhar menos para trabalhar menos, mas sim para que mais gente possa trabalhar. E dentro das jornadas condizentes com sua carreira profissional.
CC: Vem de longa data uma polêmica em nosso país, e que incide justamente na criação de empregos: por um lado, sabe-se que se pagam baixos salários, e, por outro, ressaltam-se os altos custos trabalhistas para as empresas. Como você se posiciona nesse sentido? Existe alguma justeza na reclamação das empresas quanto à oneração a elas imposta pela legislação trabalhista?
ACS: O Brasil tem uma das menores cargas do mundo sobre a folha de pagamento. Não é verdadeira essa afirmação do patronato. É sempre uma maneira de fugir da discussão e tentar impor mais cortes.
É a política do torniquete mesmo. O patrão quer sentar à mesa de negociação e conceder cada vez menos, deixando que o trabalhador absorva menos de seus lucros. É sempre essa a estratégia patronal.
Como fruto dessa situação, temos uma jornada de trabalho muito extensa, com muitas horas extras, e que não são pagas de forma condizente (muitos brasileiros têm medo de questionar suas horas extras com medo de demissão).
É uma política descolada da realidade e que visa o lucro a qualquer custo, mantendo as mesmas taxas de ganhos.
CC: Você acredita que caminharemos para uma flexibilização ainda maior das relações trabalhistas nesse momento de crise? De outra forma, antigas propostas de reforma sindical e trabalhista que ficaram na gaveta poderão emergir nesse momento?
ACS: Acho que até podem aparecer. Valorizam tanto a crise... Existem os meios de comunicação como grandes instrumentos para propagar o terror da crise e, em resposta a eles, não há outros meios que possam rebater no mesmo nível, para conversar com um país do tamanho de um continente. Este é o terrorismo.
Lembro-me de que, quando começou a conversa do plano real com o FHC, discutia-se redução de jornada com redução de salário dentro da fábrica e não se conseguia trazer o trabalhador para fora e realizar o debate. Isso era fruto do terror que o patrão espalhava lá dentro. O objetivo passava a ser não perder o emprego; o cidadão trabalhando até de graça para manter sua vaga.
O que analisamos aqui na CUT é a ampliação dos direitos dos trabalhadores. Na última vez em que, no governo Collor, se tentou modificar o artigo 618 da CLT, a fim de permitir que o negociado valesse mais que o legislado, em proposta conjunta com a Força Sindical, chamamos greve, mobilizamos mais de um milhão de pessoas e o projeto foi arquivado; passou na Câmara, mas não no Senado. Aqui na CUT fizemos cartazes de traidores do povo com os nomes de todos os parlamentares da Câmara que votaram a favor. Espalhamos mais de um milhão de cartazes pelos postes e muitos não se reelegeram.
Portanto, mexer com a flexibilização dos direitos mete um pouco de medo, por conta dessa cultura de denúncia e enfrentamento. O parlamentar fica lá em Brasília manobrando contra o trabalhador e pensa que ninguém vê. Mas hoje em dia existem instrumentos para denunciar as maracutaias em andamento. Sempre existe um perigo de que essas propostas malucas reapareçam, mas estamos atentos e mobilizados contra isso também.
CC: Como que você acha que o governo tem reagido às pressões patronais? Caminharemos para o tudo ou nada, com as negociações entre sindicatos e empresas prevalecendo sobre a lei, ou o governo caminhará para uma postura mais atuante a fim de evitar demissões em massa?
ACS: Não se pode passar por cima da lei. Nem com acordo coletivo. A lei é o piso mínimo a ser executado no Brasil. É institucional, aprovada no Senado, é a legislação brasileira.
Qualquer instrumento em que se pense agora, e que esteja abaixo da lei, tem de ser aprovado também. Não é assim, enviar a proposta e o governo aceitar. Ele não tem autoridade para aceitar nada. Pode propor alguma coisa, mas deve passar por tramitação institucional, na Câmara e no Senado. Estamos numa democracia, certo?
E as centrais sindicais já mostraram que não estão brincando. Algumas estão chamando até greve, como a Conlutas. A CUT chamou mobilização com mais de 30 mil no ABC, fizemos ato em frente ao Banco Central... Não estamos parados.
Não conto com o governo, conto com o trabalhador. Nós temos de firmar uma postura da CUT e exigir do governo que respeite o direito dos trabalhadores. Mas ressalto que, da parte do governo, não têm aparecido tais tipos de propostas que fragilizam os trabalhadores, somente das empresas.
CC: Como essa crise encontra os movimentos sociais e sindicais? Terão eles condições de agir de modo unificado de forma a tornar efetivas as suas justas reivindicações?
ACS: Sempre tentamos unir o movimento sindical, social e estudantil. A CUT investe muito na programação dos movimentos sociais – com a própria CUT, MST, UNE, Marcha Mundial de Mulheres e outras entidades na linha de frente das mobilizações. Estamos também atentos à criminalização dos movimentos sociais e dos próprios trabalhadores e essa frente mais ampla é organizada pela CMS – a Coordenação dos Movimentos Sociais.
Além disso, há a Assembléia Popular, que adota uma linha mais parecida com a da Igreja Católica, a Via Campesina, que também está conosco, e outras entidades que lutam contra a dívida.
O Fórum Social Mundial será um grande encontro, onde esses movimentos terão assembléias mundiais para tratar de estratégias combinadas de ação. Já existe a união, falta montar a estratégia de ação. Aqui na CUT, todo mês há uma reunião dos movimentos sociais, nas quais discutimos algumas dessas estratégias - para a CUT, movimento social e estudantil.
Dentro da crise, o governo tem colocado a Petrobrás como uma empresa que alavancará o desenvolvimento nacional, principalmente agora com a descoberta do pré-sal. Para nós, petroleiros e movimento social, os leilões são crimes de lesa pátria. Fizemos um abaixo-assinado pela modificação da lei, para garantir que sejam suspensos os leilões e que o petróleo seja extraído em beneficio da sociedade brasileira, através de direitos sociais - hoje as multinacionais vêm e compram áreas.
No último dia 18 de dezembro, invadimos a ANP, a sede da Petrobrás no Rio e o Ministério das Minas e Energia. Não adiantou e leiloaram do mesmo jeito.
Portanto, há a possibilidade de a Petrobrás alavancar o desenvolvimento. Mas é preciso modificar a lei, a fim de que se garanta que o petróleo extraído seja revertido em benefício da sociedade brasileira.
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