Ensino Público: Enlouquecemos?
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- Venceslau Alves de Souza
- 03/03/2009
Engana-se o leitor que imagina que um doutoramento em Sociologia em uma das mais reputadas instituições de ensino do país deva mais que qualificar o professor a lecionar esta disciplina na Rede Pública de Ensino do estado de São Paulo. Ilude-se também se imagina que uma larga experiência internacional tem algum peso nos critérios classificatórios dessa Instituição na seleção de seu quadro. Soa ridículo, mas é verdade, não qualificam! O irônico é ouvir as autoridades repetindo em coro que é necessário melhorar a qualidade do ensino, investir na formação do professor e tantas outras obviedades que soam como demagogia até para os mais leigos.
Um amigo me conta que, ao tentar retornar à Escola Pública como professor de Sociologia, depois de quinze anos ausente da sala de aula e cheio de idéias novas para discutir com os alunos, a Secretaria de Educação paulistana lhe informou que, embora tivesse mestrado e doutorado em Sociologia, (e esteja no pós-doutorado em História Social), não poderia lecionar essa disciplina na Rede Pública. Ele é graduado em História, o que causaria o impedimento.
Confesso que fiquei boquiaberto, muito menos por sua larga formação acadêmica, e muito mais por sua extraordinária experiência de vida, que não é levada em consideração pela Instituição.
Estamos falando de alguém que visitou diversos guetos da América do Norte e do Sul nos últimos quinze anos, verificando de perto o que pode melhorar, de fato e de direito, a vida das pessoas, conforme sugere o extraordinário educador Tião Rocha. Em sua diáspora, pôde ler de perto o histórico de opressão e humilhação por que passam as pessoas mais simples destas regiões e que as têm transformado em cidadãos de segunda classe. Percebeu que a ausência de ideologia fundada na igualdade de oportunidades e condições acarretou a falta também de uma política inclusiva e distintiva dos pobres no processo criativo, tornando mais intrincado o enredo de sua história. Assombrado com o que viu, tornou-se acadêmico e, enquanto muitos de seus colegas permaneceram repetindo o mesmo blá, blá, blá nas salas de aula, estudou com profundidade a realidade brasileira, comparando-a à de outros países, palestrando em lugares distantes e fazendo jus à nota 10, com louvor e distinção, na defesa de suas teses.
Ele que já tinha sido concursado no ensino público, lecionando também no ensino privado, abandonara a carreira por entender que, com aquela escolarização que era fornecida aos alunos, de forma alguma, construiríamos uma sociedade mais fraterna e justa, que deve ser a lógica da educação de uma sociedade. Depois de convencido de que a mudança teria de vir da base da sociedade, das indiscutíveis potencialidades juvenis, decidiu retornar às salas de aula. Daí que lhe disseram que não se qualificava para o posto de professor da Rede Pública de Ensino do estado de São Paulo, deixando-nos uma pergunta em aberto: enlouquecemos?
Em defesa do meu amigo, do bom senso e da boa educação brasileira, garanto que a excelente idéia do governo de retornar a Sociologia às salas de aulas, um lugar de onde ela nunca deveria ter se ausentado, tem sido acompanhada pela mesma lógica ruinosa que confunde educação com escolarização e impede o país de avançar mais rapidamente rumo a uma democracia de melhor qualidade.
A educação preza pela construção de gente, que se importe com seus pares, enquanto a escolarização precisa de técnicos e máquinas frias. Fomos envolvidos pelas artimanhas do mercado de tal maneira que já não conseguimos enxergar certos absurdos, e resgatar a educação das mãos do mercado simplesmente não nos passa pela cabeça. Mais vale o indivíduo que "prova" seu valor de mercado do que aquele que busca a mudança social. Meu amigo não está interessado em provar seu valor de mercado, mas em estimular a crítica e a reflexão, sublimando a essência da política. Por isso não serve.
Não é por outra razão que nos aborrecemos com as políticas afirmativas e não entendemos por que é dever do dinheiro público financiar a arte e a poesia. A escolarização nos ensina a nos irritarmos com o ‘peso abusivo dos impostos’ e nos impede de perceber que muito disso não tem outro fundamento que não a reinserção dos indivíduos no mercado, e a retroalimentação do sistema. Revelamos, assim, falta de discernimento, e não era exatamente esta a proposta da educação.
Ter sociólogos com tamanha experiência empírica deveria ser privilégio de nossa sociedade. Mas, no Brasil, eles não servem. Na lógica do mercado brasileiro, somente prestam aqueles que têm uma utilidade prática segundo a ótica deste mesmo mercado! É preciso escolarizar, e é nisso que nos querem fazer acreditar.
A hegemonia da escolarização mercantil sobre a educação deve muito à própria Secretaria de Educação, daí porque ela não quer ver para além do que seus olhos querem enxergar. Pensar a Sociologia como pedra angular na reversão desse quadro terrível em que o mercado nos colocou não lhe parece, de fato, interessante. O paradigma é ele: o Deus mercado!
Venceslau Alves de Souza é professor de Comunicação Social na PUC-SP e pesquisador do NEAMP – Núcleo de Estudos de Arte, Mídia e Política.
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Comentários
É isso (também)! Excelente observação! De qualqeur forma, é necessário que se consulte a população e, particularmente, o professorado, antes de fechar os parâmetros, os currículos escolares e as condições de trabalho da categoria; afinal, não é consenso que o professor é imprescindível na construção de uma sociedade saudável? Abraço.
Não faça isso! Mesmo com o perfil mercadológico, a pós-graduação é muito importante e, em alguma medida, ajuda a melhorar a sociedade como um todo! Quem sabe não avançamos, a partir dela, para um novo paradigma? Abraço.
Concordo quando disse: "do bom senso e da boa educação brasileira, garanto que a excelente ideia do governo de retornar a Sociologia às salas de aulas, um lugar de onde ela nunca deveria ter se ausentado."
Você foi muito feliz ao se utilizar sabiamente de seu conhecimento de causa na defesa de seus pontos de vista sobre a questão educacional no país. A realidade brasileira, entretanto, não permite que sejamos tão “racionais”. Talvez na França ou na Dinamarca, países que já resolveram problemas de base, sua excelente tese se aplicasse melhor. Por que?
É fato que a Sociologia deve ser considerada complementar às demais disciplinas, mas, nem por isso, menos importante. A ”ciência da sociedade” pode impedir que o conhecimento se fragmente em demasia e, com isso, se fragmente também o entendimento sobre a realidade (esta sim, proposta do neoliberalismo). Dessa forma, ela ajuda a evitar, em alguma medida, que o conhecimento opere como aparelho legitimador da ordem social e das relações de poder nela existentes, podendo vir a ser um instrumento de transformação da vida social.
Em sociedades compostas de seres humanos, devem prevalecer, em tese, relações de solidariedade, por mais que a modernidade nos tente convencer do contrário. Quando isso não acontece, o mercado sente-se fortalecido para criar relações de competição desenfreada, operadas pela lógica do consumo, como no caso do ‘taylorismo’. Aqui, a competição entre os trabalhadores e a individualização alienante (dos salários, dos prêmios individuais por maior produção) é quem dá o tom, objetivando o aumento da produtividade do trabalho, evitando qualquer perda de tempo na produção.
E foi mesmo ele, o mercado, quem esteve designado a determinar o destino das pessoas desde muito cedo no Brasil, procurando incutir em nossas mentes que não há diferença entre uma sociedade de seres humanos e uma de sociedade de consumidores frenéticos. Isso tem uma relação um tanto estreita com o tipo de escolarização, de acúmulo de conhecimento, que nos foi historicamente apresentada. Defendendo o sectarismo, defendemos também o próprio mercado! Forte abraço.
As propostas que tenho para uma seleção não são viáveis dentro do modelo educacional apresentado. Insisto que poucas instituições parecem ter sido pensadas historicamente no Brasil com o intuito claro de auxiliar na criação de uma sociedade solidária, e o processo educacional nacional ilustra bem o que se está sustentando aqui. Sem uma grade curricular que abarcasse enfaticamente valores, de fato, humanos e emancipadores, onde os diversos atores sociais pudessem se exprimir igualitariamente e onde a necessidade de equilíbrio entre o conjunto da fauna e da flora não soasse demasiado excêntrico, coube ao mercado, desde sempre, determinar que modelo de escolarização teríamos. A educação que se ofereceu nos ensinaria que “quem pudesse mais choraria menos” – como no modelo organizacional da produção taylorista/fordista e toyotista –, nos presenteando com agruras matérias e subjetivas de toda ordem. A partir dali, poucos indivíduos brasileiros deixariam de sofrer as conseqüências de uma educação voltada para o mercado – independentemente da classe social em que estivessem inseridos –, conseqüências estas materializadas particularmente na violência material e simbólica diária. Abraço.
Me solidarizo enormemente com seu caso e reafirmo que a educação deve ser a estrutura pela qual nos enxergamos no mundo e com a qual delineamos as nossas vidas pessoais e no modo como formamos laços e ligações com outros: nossa sexualidade, nossos relacionamentos, nossos casamentos, nossas famílias, enfim. E nada há de romântico nisso. O que se pode esperar, pois, de um sistema educacional monstruoso que nos diz, a todo o momento, que estudamos não por outro motivo, mas para sermos os melhores no mercado de trabalho – e em todas as instâncias da vida social? Que futuro nos reserva um sistema escolar que nos induz nocautear nossos colegas, vizinhos, parentes e nos superar permanentemente – para não sermos arremessados na lata do lixo da história? O fordismo já nos dissera que o aumento da produtividade, dos salários reais dos trabalhadores e do consumo de massa dependia da competição entre os próprios trabalhadores e que somente venceriam os melhores, o que mostra o eixo central do tipo de educação que chamamos aqui de mercadológica. Abraço.
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