Causas e desfechos da crise (1)
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- Pergentino Mendes de Almeida
- 02/04/2009
Que crise é essa?
Existe um esforço da mídia, dos governos e dos especialistas bem informados no sentido de ignorar as raízes mais profundas da crise por que passamos. Não acredito que esta crise tenha uma origem simplesmente financeira, nem que a causa tenha sido a precariedade dos empréstimos hipotecários dos Estados Unidos, ou a ganância dos banqueiros de Wall Street, ou dos derivativos e dos mecanismos de alavancagem desenvolvidos nos últimos 20 anos.
Não digo que seja um esforço realmente concertado da mídia e dos entendidos, no sentido de anestesiar o senso crítico de nós outros, telespectadores, mas é como se fosse. Mas agora, em março de 2009, o consenso é de que o problema é sério e que ninguém ainda sabe aonde vai dar – mas a culpa é deles, dos brancos de olhos azuis (o Lula consegue cometer gafes mesmo quando diz verdades, como o FHC às vezes fazia. Mas deixa prá lá, no caso do Lula, todos relevam).
No Brasil, os bancos recebem estímulos que se traduzem em mais dinheiro em caixa, mas os spreads continuam altos e a prudência manda que segurem o dinheiro em vez de arriscá-lo num momento de aumento da inadimplência e do desemprego.
No mundo (e no Brasil também), os mesmos liberais, que queriam o mercado totalmente livre e o governo fora de seu caminho, agora pedem que este socorra o setor financeiro, onde, de acordo com eles, originou-se a crise. Originou-se, assim, sem mais nem menos. Agora é preciso que o governo pague o prejuízo do setor financeiro para evitar uma crise sistêmica – o governo, isto é, o contribuinte, ou sejamos, nós.
Kenneth Rogoff, economista-chefe do FMI no período de 2001 a 2003, disse, em entrevista ao World News da BBC, em 9 de fevereiro de 2009, que, para debelar a crise, "a couple of trillion dollars are probably required" ("um par de trilhões de dólares provavelmente serão necessários"). O economista-chefe do Banco Itaú, sr. Guilherme da Nóbrega, deixou claro em entrevista ao Conta-Corrente da Globo News, em 8 de fevereiro de 2009: "É preciso que o contribuinte entenda que ele tem um preço a pagar".
Nós pagamos e eles ganham. Mas, afinal, o que está acontecendo, quem fica com o mico e de quem é a culpa?
As raízes da crise
No meu entender, esta é uma crise econômica que vinha amadurecendo e se anunciando há muitos anos – não se trata de uma crise financeira simplesmente. O problema está na evolução do Capitalismo Financeiro, na raiz do próprio Capitalismo.
Esta crise atual é o resultado de um excesso de liquidez. O dinheiro ficou tão abundante que ficou cada vez mais fácil de ser arriscado em operações duvidosas. É claro que isso iria fracassar.
A causa não é a ganância dos especuladores financeiros em Wall Street. Quem pode surpreender-se ou criticar o especulador por ser ganancioso ou o investidor por buscar maiores lucros para o seu dinheiro? Culpar a bolha financeira e os créditos podres é como culpar o gatilho pelo crime a fim de omitir o assassino.
O mercado, é verdade, sempre se ajusta e se corrige sozinho, como previsto na Economia Liberal clássica – e se ajusta exatamente assim, através de pequenas correções e de grandes crises. A crise é o próprio ajuste, é o remédio esperado.
As medidas que estão sendo adotadas nos Estados Unidos, na Europa, na China e no Japão vão sempre no caminho de aumentar ainda mais a liquidez, através do auxílio aos agentes econômicos fracassados. Que a atual crise era inevitável tornou-se patente desde que a política econômica do governo Bush ficou clara, há quase oito anos. E, na falta de uma União Soviética como contrapeso, o mundo todo se tornou cúmplice – inclusive a China, que comunista se diz.
Em primeiro lugar, vamos declarar expressamente o que todos já sabem e dão por sabido: os Estados Unidos são o motor da economia mundial. A ascendência da UE ou da China como possíveis rivais ainda é algo a ser verificado no futuro (previsões atuais são de que a China ultrapassará os Estados Unidos apenas em 2030).
Que outro país, afora os Estados Unidos, poderia ter políticas econômicas tão irracionais e ainda gerar crescimento interno e mundial, através de seu apetite de consumo? Qual outro país do mundo pode emitir títulos da dívida pública e ainda imprimir dinheiro a rodo, para financiar o consumo de engenhocas e bugigangas, que ele mesmo não produz mais, e ter uma política hegemônica arrogante, sem que o resto do mundo o denuncie como maluco? Qual outro país pode emitir dinheiro que serve de lastro a todos os demais países, em vez do antigo padrão ouro? Que outro país pode emitir dólares americanos?
Bush cortou impostos precisamente dos que mais podiam pagar – os mais ricos – e aumentou as despesas públicas com a sua política belicista e unilateral. Nenhuma nação pode escapar ilesa dessa estroinice, nem mesmo os Estados Unidos. Ora, por que as regras da aritmética econômica só se aplicariam fora dos Estados Unidos? Estava claro, desde o começo do governo Bush, e em particular desde sua política irresponsável pós-11 de setembro de 2001, que a coisa ia dar errado.
Nos últimos três anos do governo Bush o déficit americano foi de 734 bilhões de dólares (nos últimos três anos do governo Clinton o governo americano tinha um superávit de 431 bilhões de dólares – uma diferença de cerca de 1,2 trilhão de dólares contra a nação americana).
No final do governo Bush haviam sido criados 369.000 empregos (contra 31,6 milhões de empregos no governo Clinton). Ao final do governo Bush havia 36,5 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza nos Estados Unidos, contra 31,6 milhões ao final do governo Clinton.
Numa jogada eleitoral bem sucedida, Bush jogou o país e o mundo numa guerra sem perspectiva nem sentido no Iraque, com um custo adicional de vários bilhões de dólares por semana, além do que o governo americano já vinha gastando regularmente para policiamento do Iraque, desde a primeira invasão deflagrada pelo seu pai. Resultado: a dívida pública americana, que Clinton deixara em torno de 55% do PIB em 2001, subiu para 75% em 2008/2009.
Nenhum outro país poderia escapar impune dessa situação por tanto tempo. O que aconteceu então no caso americano? É que, desde Nixon, foi decidido por este – e aceito pelo resto das nações – que o lastro de todas as demais moedas seria o dólar americano e não mais o ouro. Então os Estados Unidos podiam emitir dinheiro (moeda viva, papel moeda, títulos, créditos etc.) à vontade e o resto do mundo ia absorvendo tudo.
Houve um aumento de liquidez que, em qualquer outro país, poderia gerar uma hiperinflação, mas que no caso gerou apenas excesso de liquidez mundial, um excesso de dinheiro que beneficiou o Brasil e os países emergentes, com envio para cá de capitais especulativos e semi-produtivos. Como nação, os Estados Unidos tornaram-se duplamente devedores: primeiro, ao importar produtos baratos da China e de outros países, o que ajudou a controlar a pressão inflacionária interna; e, depois, pelo reenvio desse mesmo dinheiro pelos chineses para aplicação no mercado americano, onde ele ajudou a financiar os créditos podres do setor imobiliário.
E por que não seria assim? Pois se você é banqueiro e vive de emprestar dinheiro a juros, e tem mais dinheiro do que os seus devedores confiáveis estão pedindo, o quê você faz? Deixar o dinheiro parado não tem sentido. Então você começa a emprestar a devedores menos confiáveis, pois qualquer coisa é melhor do que nada. Eu já escrevi sobre isso aqui mesmo no Correio da Cidadania ("Ativo e Passivo: O Jogo do Mico", 21/10/2008): você sabe que a bolha vai estourar logo mais, mas até lá você pode ganhar mais uns trocados – e quem sabe a bomba arrebenta na mão de outrem?
O mundo inteiro se beneficiou e se enforcou com essa enxurrada de liquidez. Mas tudo tem um limite. O aumento especulativo dos preços de petróleo e das commodities foram sinais de que o mundo estava alcançando esses limites, que os mercados todos não obedeciam mais a leis de mercado e sim a manipulações de especuladores.
Da mesma forma como a Guerra do Vietnã sinalizou claramente a expansão do mercado de drogas e da criminalidade, e a inevitabilidade de uma crise como a dos anos 70 (que a OPEP haveria de deflagrar, mas que já estava madura para acontecer), dessa mesma forma a política neoliberal e a um só tempo antiliberal do governo Bush anunciou a crise que hoje enfrentamos em todo o mundo. Neoliberal ao impor o Consenso de Washington aos emergentes. Antiliberal ao praticar o oposto de sua própria ideologia, cevando o Leviatã que é o governo americano, com seus déficits crescentes.
O(s) desfecho(s) da crise
E aonde isso vai parar? Essa é a grande pergunta, da qual todos ignoram a resposta certa. Nem sequer ainda existe uma estimativa confiável do tamanho do rombo. Europa e Estados Unidos ainda divergem sobre o que fazer. Talvez o G-20 aponte caminhos. Será?
De qualquer modo, qualquer aposta no futuro, hoje, parece precária. Podemos então contemplar a possibilidade de alguns cenários alternativos, além das nuances, combinações e gradações que cada um de nós pode imaginar entre esses cenários e outros, à nossa vontade.
O que procuramos, ao desenhar cenários diversos, não é acertar uma previsão, mas entender as dinâmicas envolvidas nas perspectivas de futuros possíveis, perspectivas essas que nos são, por definição, desconhecidas. Os cenários servem, então, como "caricaturas" de alternativas futuras e não como previsões. Eles servem para que entendamos e discutamos as forças em jogo, mas não são profecias.
Nesse sentido, sua utilidade reside mais em desvendar as forças e antagonismos que temos de considerar, hoje, mais do que na probabilidade de sua realização no futuro. O que temos, então, como caricaturas de horizontes futuras?
Pergentino Mendes de Almeida é diretor da LPM, empresa de pesquisas atuante desde 1969. Website: http://www.lpm-research.com.br/home.htm
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